Numa época em que se comia lentilhas e romãs, na mesa antes da morte do Messias serviu-se pão, vinho e ainda um molho de uma espécie de guisado.
A Última Ceia, reproduzida nestas páginas, é o fresco de Leonardo da Vinci para a Igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão, Itália, obra que se presume ter sido iniciada por volta de 1495-96.
A representação que Leonardo fez do episódio bíblico da Última Ceia de Jesus com os apóstolos antes de ser preso e crucificado, mais precisamente o momento em que Jesus revela o seu traidor, é uma das imagens mais reproduzidas no Mundo - ainda perduram por aí, em algumas casas, as réplicas que foram moda nas salas de jantar portuguesas há já algumas décadas.
Na época da vida de Jesus, a dieta de um judeu do Médio Oriente, rico ou pobre, incluía já produtos como grão de bico, favas, lentilhas, romãs, uvas, figos e carne provinda de cabras e ovelhas, segundo conta o padre americano Douglas E. Neel, no livro ‘The Food and Feasts of Jesus: Inside the World of First Century Fare’.
E se na mesa pintada por Da Vinci nenhum destes produtos aparece representado, as diversas outras representações feitas ao longo dos séculos mostram que nem todos os artistas imaginaram a mesa do Messias católico da mesma maneira. Se Jesus se sentou à mesa com os apóstolos para cear, antes da sua morte, o que poderá ter de facto comido à luz dos textos bíblicos e daquilo que as pessoas da sua condição comiam à época?
"Eu peguei na simbologia do ato que tem a ver com a despedida, a passagem para uma vida nova, e com a partilha da mesa. Os documentos da Igreja apenas referem dois produtos alimentares, que são o pão e o vinho, e que havia azáfama na preparação dos cordeiros para a Páscoa judaica. Não há mais nenhuma palavra sobre produtos alimentares. Há outra referência muito importante que é quando Jesus molha um pedaço de pão no molho e o dá a comer a Judas, como forma de identificar o denunciante. Mas molho de quê?", interroga Virgílio Nogueiro Gomes, professor e autor de livros de História da Alimentação, nomeadamente ‘Dicionário Prático da Cozinha Portuguesa’, ‘Doces da Nossa Vida’ e ‘Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional’, entre outros. "Era molho de carne? Será que já comiam cordeiro? Era uma outra carne? O molho que poderá ter sido servido a Jesus para denunciar o traidor Judas teria de ser de um guisado, já que um assado tem pouco molho", frisa Virgílio Gomes. "Seria uma mistura de estufado-guisado porque para ser só guisado, tal como o entendemos, teria de ter refogado primeiro. Só no estufado põe-se tudo em cru e isto, à época, seria o mais plausível."
"Quando estudamos a Bíblia encontramos muitos outros alimentos, que servem para criar parábolas porque a linguagem relacionada com a alimentação é uma linguagem que toda a gente entende, é uma linguagem fácil. É por isso que em todas as religiões, mesmo as mais antigas, a forma de comunicar com as entidades superiores foi sempre com a oferta de alimentos, desta forma os terrenos, os devotos, conseguem aproximar-se das entidades superiores", continua Virgílio Gomes.
A Última Ceia é o sentido da partilha, da despedida e da sacralização de dois grandes produtos que são o pão e o vinho: "O pão, a maior invenção da Humanidade." O pão à mesa de Cristo e dos Apóstolos era um pão ázimo - ou seja, sem fermento - e adicionado de ervas não doces.
"Era um pão de não prazer, um pão associado ao sentido da Quaresma. A carne, que sempre foi um alimento de luxúria, sem pre criou medos e proibições nas religiões. Na Quaresma há abstinência de carne. Até ao século XV, mesmo em Portugal, havia 132 dias de abstinência de carne. E veja-se o que acontece com o porco em algumas religiões - embora nós, portugueses, o aproveitemos na totalidade, inclusive as tripas. Já os muçulmanos e os judeus não comem porco porque é considerado impuro. E porquê? Porque o porco come tudo."
A cena bíblica que é a base estrutural da eucaristia foi uma das mais reproduzidas através dos séculos, mas não podemos inferir através destas representações sobre o que ali se comeu - até porque o espírito do artista ou a luz da época sentou e deu de comer de forma diferente a Jesus e aos doze Apóstolos. "Na última ceia de Giotto [ver caixa] aparece em cima da toalha peixe, porque o peixe é um símbolo da Igreja cristã. Os devotos de Cristo faziam no chão o símbolo do peixe para se identificarem uns aos outros. O peixe que é utilizado no milagre da multiplicação é o peixe-galo. Como é que se chama o peixe-galo em francês ou inglês? Saint Pierre ou Saint Peter (São Pedro), por causa daquelas duas marcas que o peixe tem na cabeça. Diz-se que são as marcas que Deus deu ao peixe por serem as marcas dos dedos de São Pedro quando puxou o peixe da água", conta Virgílio Gomes.
Do mesmo século da representação de Da Vinci, a ‘Última Ceia’, de Teófanes, o Cretense (1490-1559), que está no Mosteiro de Stavronikita, no Monte Athos, na Grécia, mostra os apóstolos reunidos à mesa em círculo e onde a comida presente não tem particular significado, ao contrário do óleo sobre madeira do pintor catalão Jaume Huguet (c. 1412-1492), que está no Museu Nacional de Arte da Catalunha, em Barcelona, Espanha, onde os convivas comem nitidamente carne e envergam vestes faustosas.
Tremoço amaldiçoado
"Nos textos dos três evangelhos há a menção à despedida, à partilha, daquela refeição que, como qualquer outra, é um ato convivial por excelência. Fui educado na província e, em minha casa, as refeições eram um sistema educacional por excelência, à mesa é que se decidiam coisas. A refeição é o ato de convívio mais importante da sociedade. À volta da mesa pode ter-se uma conversa e concertar opiniões e foi isso que Cristo terá querido fazer na Última Ceia", diz Gomes, que lembra que, embora dessacralizado, o pão obrigava a atos que perduram na memória de um certo Portugal católico. "Lembro-me que se por acaso se deixava cair um pedaço de pão ao chão, apanhava-se, soprava-se e beijava-se e era pão comestível outra vez. O pão nunca se estraga, nunca é um desperdício."
Além do episódio bíblico das Bodas de Caná, em que Jesus transforma água em vinho e a mesa é farta, no Novo Testamento aparece ainda a referência ao tremoço. "Porque é que o tremoço não tem sabor? Porque foi amaldiçoado por Deus. O tremoço, que continua a ser muito importante naquela faixa de Israel, Líbano até ao Egito, quando está na fase de maturação - está seco - e se atravessa um campo de cultivo faz um barulho desgraçado. Deus terá tirado o sabor ao tremoço porque denunciou a passagem da Sagrada Família", conta Virgílio Gomes, que frisa que a religião se apropriou da linguagem da comida porque esta é uma linguagem percetível por todos. "Tudo o que é de comer é universal e é utilizado por todas as Igrejas para dar ensinamentos."
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