O realizador Jorge Pelicano narra a aventura do seu protagonista no Brasil. Para Herminio do “Ainda há pastores” foi a primeira vez que viajou.
DOMINHO, 10 DE JUNHO
A grande aventura começa hoje. Pelas 16 horas chego ao vale dos Casais de Folgosinho. O dia está cinzento. Avisto Hermínio, o mais novo pastor do vale e o grande protagonista do filme. Ainda está com o rebanho. Um total de 100 ovelhas e cabras. Pela primeira vez na sua vida vai ter férias e sair dos arredores da grande montanha. Está tenso, sinto-o. Depois da mala feita, Hermínio despede-se dos patrões, Dona Emília e Ti Albino que desde os 13 anos o acolheram no seio da família.
Ti Albino deixa cair uma simples lágrima. É uma despedida temporária mas sentida. Hermínio está agora mais calmo mas a ansiedade aumenta.
O primeiro destino é a Figueira da Foz, minha terra natal. Hermínio nunca viu o mar. Vai vê-lo agora. Deixo o carro a 500 metros da praia. Pego na câmara e começo a filmar. Sigo-o. Quando avista o imenso oceano fixa-o em silêncio. Depois questiona – “É daqui que vêm os peixes?” Após resposta positiva, segue em passo largo mas cauteloso para junto do mar. Sente receio e não medo. Molha as pontas dos dedos apenas. Retira uma garrafa do bolso e recolhe amostras de conchas e areia “É para construir uma casa lá na Serra!”, justifica.
SEGUNDA-FEIRA, 11 DE JUNHO
São 5 da manhã. Iniciamos uma viagem que só irá acabar 24 horas depois no lado de lá do Atlântico. Figueira da Foz a Lisboa faz-se em duas horas. Hermínio nunca tinha estado tão longe do “abrigo” da montanha. A cara está estatelada no vidro. Observa e quase tudo lhe é novo. Os inúmeros camiões que circulam na A1 parecem ser o ponto alto do fascínio. “Estás a ver aqueles aviões? É aqui o aeroporto.” – indica João Pelicano, o meu pai, que nos foi levar ao aeroporto.
A TAP já estava informada da nossa ida. Rapidamente fizemos o check-in e avançámos para o terminal. De olhos bem abertos, o jovem pastor observa o movimento nas placas e pistas do Aeroporto de Lisboa. Não são as aterragens e descolagens que mais lhe interessa. A atenção recai para os carrinhos que levam as malas para os aviões. Preocupa-se com a sua.
Sinto-o cada vez mais ansioso. Fala pouco, não insisto. Após os procedimentos de embarque o avião começa a rolar na pista. “Já estamos no ar?” questiona. “Ainda não… agora sim! E então?” obtive resposta depois de uma trégua de 2 minutos. “É bom.”
Hermínio está fascinado. Diz de imediato avistar a Serra da Estrela. Na realidade era a de Sintra. Os olhos estão colados à janela. Sinto-me bastante orgulhoso por lhe proporcionar estes primeiros eventos.
Após a primeira refeição somos convidados pelo comandante Carlos Mota a visitar o cockpit. “Já chegamos ao Brasil?” questiona. O piloto, depois de um tenro sorriso responde – “Ainda faltam 8 horas!” Hermínio vai questionando o funcionamento do “pássaro”, pede uma bebida e aceita o convite do piloto para visionar a aterragem dentro do cockpit. Para quem nunca andou de avião, esta primeira vez foi um luxo. A aterragem foi supersuave. Depressa felicitámos os pilotos e pisámos solo brasileiro. “Agora é que já estamos no Brasil.” Hermínio concorda e acena com a cabeça. Pela frente estão ainda mais duas ligações domésticas que nos vão levar ao aeroporto de Goiânia, capital do Estado de Goiás, em pleno interior brasileiro.
Após a última aterragem seguimos de carro até Goiás onde irá decorrer o FICA – Festival Internacional de Cinema Ambiente de Goiás. Foram cerca de 24 de horas de viagem. Estamos ambos bastante cansados.
TERÇA-FEIRA, 12 DE JUNHO
O dia começou com o credenciamento no festival. Pela organização e acolhimento, cedo percebi que estava a participar num dos maiores festivais de cinema ambiente do mundo. Cada realizador tinha um intérprete para as respectivas traduções e para acompanhar nas visitas a Goiás. É uma cidade património da humanidade, simples e rural, que nesta altura se transforma para acolher o festival. No final do dia, tempo para trocar as primeiras impressões com os realizadores que, a conta gotas, estão a chegar ao hotel.
Martin Cumpanel, realizador queniano, alto, forte e bem-disposto rapidamente cativou a atenção de Hermínio. Chama-o de ‘Caipirinha’.
QUARTA-FEIRA, 13 DE JUNHO
Hoje é dia da apresentação do ‘Ainda Há Pastores?’. Pela manhã participei num workshop de ‘Documentário Contemporâneo’ – um pouco maçudo, mas importante para aumentar os meus conhecimentos teóricos sobre o tema. Depois do almoço com os realizadores e intérpretes, entrei pela primeira vez no CineTeatro para apresentar o filme. Hermínio estava ao meu lado, nervoso como sempre. Cada realizador apresentou o seu filme para de seguida iniciar uma verdadeira maratona de filmes desde as 15h00 às 22h00. Um verdadeiro massacre!
A vez do ‘Ainda Há Pastores?’ chega poucos minutos depois das 18h00. A sala está composta. O filme começa e poucos minutos depois surgem as primeiras gargalhadas. As primeiras de toda a tarde. A meio do filme a sala está cheia. Ninguém arreda pé. O final ficou sonoramente marcado com uma ovação superior a um minuto. Surpresa pela positiva foi a reacção geral do público, realizadores e intérpretes. Apesar de estarmos no primeiro dia de competição oficial senti que éramos candidatos a um prémio. Hermínio não parava de tirar fotografias. Está rodeado. “Congratulations, congratulations” dizem os realizadores ao jovem pastor. Ele percebe.
Hoje o nosso filme foi, na minha suspeita opinião, o melhor do dia. À noite, as conversas passaram pelo pastor. Nas ruas as pessoas reconheciam-no. Não era difícil, o “casaco” de pastor não o largou. Num ápice, Hermínio transformou-se na figura do festival.
QUINTA-FEIRA, 14 DE JUNHO
Acordei cedo. Hermínio ainda acordou mais cedo, mas mais tarde que a rotina dura na Serra da Estrela. Com o resto do grupo de realizadores e intérpretes fomos conhecer o Poço da Sucuri – uma fantástica cachoeira a 10 minutos de carro do centro da cidade. Porque é Inverno a água estava um pouco fria, mas a temperatura superior a 30 graus ajudou a ganhar coragem para os primeiros mergulhos. Hermínio foi dos últimos a entrar. Tirava fotografias com todos. Notei que havia um carinho especial para com ele. Ele estava a adorar estar junto desta nova “família”.
O lazer acaba duas horas depois. Seguimos rapidamente para Goiás. À nossa espera estavam já duas equipas de reportagem para entrevistas. Os jornalistas gostaram imenso do filme – a fotografia e a história foi o que mais os cativou.
O “assédio” prolongou-se até ao final da tarde. A esperança aumentou um pouco mais.
Depois do jantar seguimos para o mítico ‘Morro do Macaco Molhado’ uma espécie de discoteca rural. Hermínio soltou-se, falava com toda a gente. A linguagem era universal. Apenas queria divertir-se. Fiquei feliz por saber que estava feliz.
SEXTA-FEIRA, 15 DE JUNHO
A ansiedade é agora maior. Os filmes que tinha visto ontem não me convenceram totalmente, sobretudo de realizadores profissionais com mais de meia dúzia de filmes no currículo. A tarde foi passada no CineTeatro a ver filmes. Hermínio ficou a dormir no Hotel. Mais habituado à liberdade, estar fechado numa sala ainda é muito complicado nesta sua primeira saída da imensidão da montanha.
À noite, Hermínio saiu com os novos amigos brasileiros até de madrugada. Preferi ficar na tranquilidade do hotel na conversa com os realizadores menos noctívagos. Os festivais são óptimas ocasiões para trocar informações, ideias e contactos para próximos projectos. Recebi convites para trabalhar com realizadores em vários pontos do globo. Senti-me orgulhoso. Deitei-me já passava da uma da manhã. Estava tenso. Amanhã é o grande dia.
SÁBADO, 16 DE JUNHO
Saltei da cama muito cedo. Não consegui dormir mais. Hermínio acabou de se deitar. Fui para a varanda do hotel para reflectir. Lá no fundo imaginava um prémio. Como será se isso acontecer? Os minutos passaram depressa e por volta da 10h00 eu, Hermínio, os realizadores e mais de 800 pessoas entrámos no Cinemão – o local da entrega de prémios do FICA 2007.
Levei a minha câmara para filmar. Filmei Hermínio muito tenso. Eu tremia um pouco. Os prémios começaram a ser entregues. As várias categorias e respectivos premiados estavam a ser anunciados e nós a sofrer. Chegou a nossa categoria – Longas-metragens de ficção – e nada! Restava o Grande Prémio Cora Coralina do IX FICA. O coração já não aguenta mais. O governador de Goiás é chamado ao palco para anunciar o vencedor. Olho para Hermínio pela última vez, está com os olhos fechados. Concentro no visor da minha câmara que gravaram as seguintes palavras: “… e o vencedor é… ‘Ainda Há Past…’. Não ouvi mais nada pois gritei “Ganhámos, ganhámos!” e virei a câmara para o Hermínio que sorria “perplexo” com tudo. Na assistência ouvia-se muitas palmas. Em lágrimas, puxei Hermínio para o palco. Recusou. Segui sozinho com o público a gritar “Hermínio, Hermínio!” Timidamente veio. Ainda com algumas lágrimas vertidas agradeci à minha equipa, aos meus colegas realizadores e intérpretes e ao povo brasileiro. Hermínio só conseguiu soltar um “obrigado”.
Depois das fotos, fomos assediados por um verdadeiro batalhão de jornalistas, entrámos em directo para as televisões e trocámos inúmeros abraços e felicitações. Tempo ainda para comunicar o prémio para Portugal.
Ganhei o prémio no maior festival de cinema ambiental do mundo. Único!
DOMINGO, 17 DE JUNHO
Pelas 5 da manhã, partimos de Goiás. A despedida foi particularmente dura para Hermínio, que no meio de algumas lágrimas trocou as últimas palavras com o fantástico grupo de amigos que nestes dias fizemos. Foi o concretizar de um sonho para Hermínio. Sentia-me imensamente feliz, não só pelo prémio mas por ter sido responsável pelo realizar do sonho do jovem pastor. Hermínio viajou algo tenso e triste por voltar, mas ansioso para chegar à Serra. “Já sinto saudades da bicharada”– confessou.
SEGUNDA-FEIRA, 18 DE JUNHO
Chegámos a Lisboa de madrugada. À nossa espera estava uma equipa de reportagem que levou Hermínio a conhecer alguns locais emblemáticos da cidade. Ao contrário de mim, Hermínio não descansa, está fascinado com a capital. Amanhã espera-nos um grande dia – o lançamento em DVD de ‘Ainda Há Pastores?’. O culminar de uma grande aventura que começou há mais de 8 meses, desde Outubro de 2006, depois da participação do documentário no Cine’Eco, onde arrecadou o Prémio Lusofonia e uma menção Honrosa. Desde então, o filme já participou em mais quatro festivais e foi reconhecido com mais três prémios. Já realizámos mais de quarenta apresentações pelo país e também no estrangeiro.
Hoje, olho para trás, e vejo que todo o trabalho e esforço não foi em vão. Conseguimos derrubar barreiras e quem sabe se abram outros caminhos para o documentarismo e cinema português.
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