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Proibição de canais russos abre precedente e decisão deveria ter sido debatida

Conselho Europeu proibiu no início do mês de março todas as atividades dos canais russos.

17 de março de 2022 às 13:00

A proibição dos canais russos RT e Sputnik abre um precedente e a decisão devia ter sido debatida, defenderam esta quinta-feira os intervenientes do 'webinar' "A liberdade dos media: vítima da guerra", iniciativa do Grupo Informal sobre Literacia Mediática (GILM).

Na sequência da invasão da Ucrânia, o Conselho Europeu proibiu, no início deste mês, todas as atividades dos canais russos Russia Today (RT) e Sputnik News, sendo que a medida abrange o território da União Europeia e assenta em que estes dois meios veiculam desinformação.

Sobre esta proibição, o jornalista e comentador Daniel Oliveira começou por colocar três questões, durante o 'webinar'.

A primeira é se a questão é a desinformação, pois neste caso "temos aí uns tabloides para fechar em toda a Europa e não são poucos", considerou.

Ora, "com esse critério abriu-se um precedente complicadíssimo de explicar (...), vamos começar a encerrá-los", questionou.

Se a questão é a propaganda, "aí a decisão ainda é mais complicada", apontou Daniel Oliveira, porque passa-se a considerar que há propaganda aceite e outra que não é aceite.

"O que temos para dizer aos russos quando falamos da censura na Rússia se o que damos como resposta é o encerramento" da RT e do Sputnik, questionou.

Mas o "mais grave disto tudo" é ser a Comissão Europeia a "tomar uma decisão destas", um órgão que não foi eleito e que tomou uma decisão que não está assente em qualquer decisão judicial ou em qualquer lei existente, prosseguiu.

"O precedente que isto abriu é de uma gravidade imensa", apontou, salientando que a Europa "não está tecnicamente em guerra com ninguém".

Para Daniel Oliveira, outro precedente grave é o facto de "não ter havido imediatamente uma revolta dos próprios jornalistas a dizer 'isto não é aceitável'".

Neste momento, sublinhou, existem menos correspondentes do Ocidente em Moscovo.

"Estamos a fazer o que Putin faz, uma das razões porque a guerra está a correr mal a Putin -- tudo indica -- é que já só lhe diziam o que ele queria ouvir, e nós estamos a chegar a esse ponto como comunidade, que já só estamos disponíveis para ouvir o que nós queremos ouvir", enfatizou Daniel Oliveira.

Uma das consequências desta proibição é deixar de ter acesso a informação do que se passa na Rússia e da própria propaganda russa, que é um instrumento de informação.

"O que mais me assusta nisto tudo é o precedente que se abriu de uma Comissão Europeia", reforçou, recordando que durante a guerra do Iraque a estação Al Jazeera foi considerada como promotora de ódio aos americanos.

"Só não foi encerrada porque nessa altura não havia esse instrumento" e, por isso, "temos de ter muito cuidado" com os precedentes que se abrem "e com o qual nós, jornalistas, somos coniventes", advertiu.

"Devo dizer que há não sei quantas coisas que nós jornalistas dizemos permanentemente sobre a censura, perdemos a autoridade para o dizer nesta guerra", rematou Daniel Oliveira.

Por sua vez, Rita Figueiras, professora e investigadora da Universidade Católica, salientou que "entre não haver uma discussão e o precedente" da proibição, "há questões muito complexas".

Uma delas é saber "o que era a RT do ponto de vista internacional, aquela que era transmitida em inglês, dentro desta estratégia obviamente de 'soft power' da Rússia", apontou.

Isto porque "é muito diferente o que é a RT nas suas emissões domésticas do que é a RT nas suas emissões internacionais, que recorria e recorre principalmente às fontes ocidentais e que a sua principal função era questionar essas fontes ocidentais numa espécie de promover o projeto anti-hegemónico do que era Ocidente na perspetiva da Rússia", prosseguiu a investigadora.

"Portanto, tinha muito menos -- e há muitos estudos que têm sido feitos, nomeadamente no norte da Europa -- no sentido de promover a agenda oficial da Rússia e muito mais no desafiar a legitimidade dos media ocidentais, oferecendo uma outra perspetiva sobre uma mesma realidade" desta guerra.

Ou seja, "há aqui esta questão de discutir que emissões eram estas que foram cortadas e juntarmos também outra questão: quanto das democracias, nomeadamente em contexto eleitoral, aprenderam todas as estratégias de propaganda e de desinformação através do espaço digital que inicialmente foram inovadas nestes regimes autocráticos", prosseguiu Rita Figueiras.

Neste sentido, há "uma hibridez no mundo muito maior e esta simplificação de dizer 'cortar' porque dali só vem o mal merecia pelo menos o debate de perceber que órgãos são estes que foram retirados do espaço europeu", qual a legitimidade para o fazer e o procedimento.

"Quem é que decide o que é que é boa informação e não é boa informação" e a necessidade de retirar estas emissões do ar, questionou a investigadora.

"Creio que se pode tratar de um precedente perigoso, independentemente da função desses canais" e, sobretudo, "das suas edições em língua estrangeira, em inglês", considerou Pedro Caldeira Rodrigues, jornalista da editoria Internacional da Lusa.

"Creio que todas as televisões internacionais, sobretudo estatais, que têm programas internacionais na sua língua ou em língua estrangeira, têm um pouco essa função de promover a imagem do país", sublinhou o jornalista.

Relativamente às reações sobre a proibição da RT e do Sputnik, Pedro Caldeira Rodrigues apontou que houve "reações em vários países europeus" e deu o exemplo de França, onde o sindicato dos jornalistas se "indignou com o encerramento da RT France e do Sputnik, mesmo considerando que a sua linha editorial era uma linha que fomenta a propaganda do Kremlin".

Recordou ainda que na quarta-feira (16 de março), quando a Rússia foi expulsa do Conselho da Europa, "o polícia russo [regulador] das telecomunicações bloqueou os 'sites' de pelo menos 30 medias" no país, além de ter bloqueado o 'site' da BBC.

Trata-se também de uma "guerra de informação", com resposta e contra resposta, o que "comprova a importância fundamental da informação nos dias de hoje e, sobretudo, a forma como se fabrica o consentimento", rematou.

O 'webinar' foi moderado por Luísa Meireles, diretora de informação da agência de notícias Lusa.

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