Aos 72 anos, Gisèle prescindiu do direito ao anonimato no julgamento em que está em causa o 'cúmulo do horror'.
A antiga e bucólica aldeia de Mazan, na Provença, que fica a 30 quilómetros de Avinhão e tem pouco mais de seis mil habitantes, tornou-se famosa em todo o mundo, não por lá existir um castelo que pertenceu ao pai do escritor libertino Marquês de Sade, mas por ser o cenário de um crime sexual que está a chocar a França.
Durante quase uma década, o então sexagenário Dominique Pélicot (tem, agora, 71 anos) drogava a própria esposa, com elevadas doses de um ansiolítico que tinha sido prescrito à mulher, dissolvendo os comprimidos no prato do jantar até ela ficar num estado próximo do coma. Depois, abria a porta da casa a estranhos, que recrutava através da Internet, para a violarem na cama conjugal, enquanto Gisèle estava inconsciente, e filmava as cenas de estupro.
Aos abusadores – alguns dos quais se defendem, no julgamento iniciado a 2 de setembro, alegando que seria uma "fantasia erótica" do casal – eram dadas indicações precisas: não usar perfume nem fumar, pois a mulher estranharia esses cheiros, e ambientar as mãos num aquecedor ou em água quente, para evitar que um toque frio a despertasse.
Ninguém suspeitou que o marido "atencioso", o pai "caloroso", o vizinho "cordial", o reformado que andava de bicicleta e jogava petanca cultivasse esta perversidade noturna: uma mistura de candaulismo (uma prática em que o homem expõe a sua parceira, ou imagens dela, a outros) e sonofilia (excitação sexual causada por uma pessoa adormecida). Mesmo o seu irmão Thierry, em declarações à revista ‘Paris-Match’, estranhou "essa dupla personalidade": "é uma loucura: o ‘Dr. Jekyll e o Mr. Hyde’!" terraço e jogos de ‘Trivial Pursuit’.
O ‘monstro de Mazan’
Dominique Pélicot nasceu a 27 de novembro de 1952, em Quincy-sous-Sénart, na região de Essonne (norte da França), foi uma criança mimada e tagarela, que inventava histórias, e um aluno medíocre, como recordou o irmão – que é médico. Ainda adolescente, fez um estágio de eletricista e, no meio de empregos como técnico de vendas de equipamentos informáticos ou agente imobiliário, trabalhou para a Électricité de France (EDF). Foi nesta empresa que, em 1971, conheceu Gisèle, uma gerente com quem casou dois anos mais tarde e, durante meio século de vida conjugal, nada indicava que ele se transformaria no "monstro de Mazan" (embora esta prática tenha sido iniciada ainda em Paris, no ano 2011, quando Gisèle tinha 57 anos).
A 12 de setembro de 2020, ao ser apanhado por um vigilante de um supermercado da cidade vizinha de Carpentras a tentar filmar debaixo das minissaias de três mulheres, foi detido. Apreenderam-lhe os dois telemóveis e um portátil, antes de o libertarem sob fiança – mas a investigação levaria à descoberta de uma pasta informática intitulada "abuso", onde ele armazenava cerca de 20 mil vídeos e fotografias da mulher a ser penetrada por 82 homens diferentes – alguns vinham de longe, outros eram vizinhos.
"Descida ao inferno"
Gisèle só teve noção do que se passava quando, já com 68 anos, foi chamada à polícia e lhe mostraram as imagens de que era a "protagonista". Telefonou, então, à filha: "Passei a maior parte do dia na esquadra. O teu pai drogou-me para me violar com estranhos. Obrigaram-me a ver as fotografias." Como descreveria em audiência, sentiu que tinha sido tratada como uma "boneca inanimada" ou um "saco de lixo". Afinal, os lapsos de memória, as dores de cabeça, o extremo cansaço e a perda de peso não eram sintomas de Alzheimer.
A filha, que só recordava o pai que a ia levar à escola e buscar aos bailes de adolescente, ficou tão chocada que, em 2022, assinando com o pseudónimo Caroline Darian, editou ‘Et j’ai cessé de t’appeler papa’ (‘E deixei de te chamar papá’). Com 45 anos, ao sair da audiência no tribunal, explicava, entre lágrimas, que aquela revelação – "um dos piores crimes sexuais dos últimos 20 anos" – foi "o início de uma lenta descida ao inferno".
Acusado de homicídio
A posição do corpo em que Gisèle era deitada acabaria por vir a ser relacionada com dois crimes de que foram vítimas corretoras imobiliárias de Paris. Enquanto Estella B. conseguiu escapar do agressor, no dia 11 de maio de 1999, o mesmo não sucedeu com Sophie Narme. O seu corpo foi encontrado num apartamento do 19º ‘arrondissement’, a 4 de dezembro de 1991, com marcas de violação, antes de ser estrangulada com um cinto – mas, por falta de suspeito, o processo foi arquivado.
Agora, no tribunal de Vaucluse, Dominique Pélicot terá também de se defender dessa acusação, sentado ao lado de mais 50 arguidos (ver texto na página ao lado) – "o maior banco de réus da História de França", como escreveu o jornal ‘La Provence’. E, até ao fim do ano, serão julgados comportamentos que parecem ter saído do pior do imaginário do autor de ‘Filosofia na Alcova’, cujo nome deu origem ao adjetivo "sádico".
Um caleidoscópio da sociedade
"Os [50] homens acusados ??representam um caleidoscópio da sociedade francesa" da classe média, com idades entre os 25 e os 72 anos, considerou o ‘New York Times’. Na sua maioria são "homens comuns", sem qualquer patologia mental nem história de violência doméstica, com as mais diversas profissões: soldado, camionista, bombeiro, funcionário público, canalizador, carpinteiro, guarda prisional, ex-polícia, enfermeiro, especialista em informática, gestor, jornalista, vereador. O ‘Libération’ sublinhava que o processo em curso "destrói a figura do ‘monstro’, do ‘louco’, pressupostos da cultura do estupro, que tentam desumanizar os perpetradores". Como se lê num grafito das feministas de Avinhão: "Homens comuns, crimes horríveis." No fundo, como retorquiu o dono de um café de Mazan ao repórter do ‘The Telegraph’, "são todos ‘monsieur tout-le-monde’ [zé-ninguém]". E sobre as três dezenas que falta ainda identificar, acenando para os clientes regulares ao balcão, sentenciava: "Pode ser qualquer um" dos que ali bebiam uma cerveja.
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