Aos 37 anos, a actriz, que prepara a estreia na realização, põe o dedo na ferida. Frontal, fala de lóbis na representação, da crise de criatividade e da cristalização da escrita da novela em Portugal
Como vive os últimos dias de gravaçõesde ‘Doce Tentação’?
A questão fulcral é a ‘endurance’. São muitos meses e a estrutura da novela funciona em repetição, porque é um produto de consumo rápido. A repetição faz parte da vida de um actor. Mas a vida cada vez mais longa das novelas chega a ser dolorosa. E não tem a ver com a qualidade da novela. O trabalho é assim mesmo. É preciso ser-se muito resistente. O elenco está exausto.
A vida organiza-se em função das gravações?
A nossa vida só é decidida depois das folhas de serviço saírem, mas a novela não pode ser a única coisa.
Daí a necessidade de fazer outros trabalhos...
Intelectualmente,anovelanãoésuficientementeestimulante para um actor. Porque é uma história aberta. Em novelas com esta estrutura, se a nossa personagem não pertence ao núcleo principal, não é bem uma personagem,éapenasuma série de frases construídas de modo a servir o núcleo principal. Nesta circunstância não há material suficiente para trabalhar a personagem.
Quem marca a diferença entre os guionistas?
Rui Vilhena. Nas histórias dele todas as personagens, além de pertencerem a núcleos, têm vida própria, presente, passado e futuro.
Há muito a fazer em termos de escrita de novela?
Há uma cultura de guionismo confortavelmente instalada. E como não há concorrência, vigora a ideia de que não vale a pena fazer melhor.
Mas já temos a SP Televisão a produzir novela...
Conheço mal o trabalho deles. Gostava que aparecessem mais, porque a concorrência promove a qualidade. Há cristalização da escrita da novela.
Que penaliza os actores...
Actores,técnicos,estaçõese telespectadores.Porqueas pessoas vão fartar-se. As audiências vão baixar e os canais vão sofrer com isso. Há um problema. E é preciso pensar nele.
Há crise de criatividade?
Que crítica faz a ‘Doce Tentação’?
Uma crítica saudável: apostou--se no universo Disney para o núcleo principal. Muito bem. E as outras personagens? Como é que eu, Dora, mulher pragmática, com problemas reais, contraceno com a Esmeralda (Mariana Monteiro), que pertence ao mundo Disney? Ou a Manuela (Carla Andrino), personagem altamente cómica, fantasiosa? Não sei!
Mas achou o universo fantasioso uma boa aposta?
Achei, porque funciona, mas só existeparaaquelenúcleo. Como se colam ali as outras realidades do enredo?
Não foi estimulante interpretar a Dora?
Precisava de um desafio maior?
Faltam papéis fortes?
Faltam! Até há três anosprocurava-se dar bons papéis aos actores. Papéis difíceis e fortes, para criar actores, algo que Moniz fazia muito bem.
José Eduardo Moniz foi um marco na ficção nacional?
Foi um dos elementos mais importantes. Para toda a gente. E isso não está esquecido.
Voltando aos grandes papéis…
Hoje não há grandes papéis, nem mesmo nos núcleos principais. Há coisas mais baratas, mais fáceis e rápidas. Tudo para facilitar... Só me pergunto como estaremos daqui a dez anos. O que se vai fazer com os miúdos que passaram pela escola dos ‘Morangos’? É como formar médicos para caixas de supermercado…
Os remakes que vemos são sinónimo de quê?
Sãoaprovada falta de criatividade.Porqueestamos a fazer coisas que se fizeram há 20anos?Asnovas versões acrescentam alguma coisaahistóriastão marcantes? A nível de interpretação? Não! Do texto? Não! A nível de iluminação? Não! De cenário? Não! Por que há então os remakes? Porque não há uma grande história nova para apostar. Se houvesse não estaríamos a fazer remakes.
Os cachets dos actores têm vindo a ser renegociados a pretexto da crise?
Não tenho contrato de exclusividade. Ninguém tentou renegociar o meu cachet, mas sei queissoacontece.Todavia, desde os 19 anos que oiço as produtoras dizer que não há dinheiro.
Há colegas seus em dificuldade?
Tenhocolegassemdinheiro para pagar a renda. E que não fazem televisão.
Porquê?
Há lóbis na representação!
Há. Sempre houve. E na ficção há fenómenos. Coisas que não têm explicação. Às vezes olhamos para o ecrã, vemos uma pessoa a representar e perguntamo-nos: ‘Porquê aquela pessoa?’ Eu que sou actriz, ainda me sinto pior, porque trabalho com uma série de gente assim. E quando sou eu que estou no plateau, pergunto-me: ‘O que é isto?’ Não é que seja melhor ou pior, é outro universo...
Falta qualidade e profissionalismo?
Há excelentes actores, que não fazem ficção porque não pertencemalóbis.Maisgrave: nem sequer conseguem fazer castings! Estes colegas queixam-se da televisão como eu me queixo do cinema.
O cinema é um universo ainda mais fechado?
Nem sequer sou chamada para castings. O último que fiz foi há dois anos, onde acabei por ser seleccionada para o filme. Por que não hei-de poder fazer castings? Não sou actriz? Em Portugal faz-se cinema com os amigos. É legítimo. Ao nível de produtores em Portugal não há ninguém que invista nos actores. E quem pode investir em nós senão as produtoras?
A Plural não aposta nos actores?
O actor não é o elemento mais importante. Os elencos estão cada vez mais jovens. Nem queria falar disto, porque teria de usar palavras muito duras… Mas nem a Plural, nem as produtoras de cinema investem nos actores. Não há intenção de os lançarnomercadonacional, nem externo. Veja o Paulo Branco, o maior produtor independente de cinema da Europa. Quantos actores portugueses lançou ele?
Em ‘Doce Tentação’ contracena com o Miguel Guilherme. É estranho vê-lo a fazer a sua primeira novela?
É um actor e uma pessoa extraordinária. O curriculum do Miguel Guilherme é muito vasto. Já fez tudo o que se pode fazer enquantoactor.Faltava-lhea novela. Ele traz muita qualidade ao produto. Precisamos de mais actores como ele a fazer novela.
É fácil fazer amizades no meio das novelas?
Não consigo fazer amigos nas novelas. É muito raro isso acontecer. Neste meio há pessoas que não se respeitam umas às outras. Logo, não conseguem relacionar-se.
É a competitividade que desenha esta circunstância?
É mais frívolo do que isso, porque a competitividade faz-se no plateau, mostrando-se que se trabalhou mais do que o outro, que se é mais pontual e assíduo… isto é competitividade. E é saudável. Mas não é isto que acontece…
Falta exigência no plateau?
Falta. Mas nós só damos o que exigem de nós! E isto é altamente contagiante. Eu própria não escapo. Sempre trabalhei e decorei os textos em casa para o dia seguinte. Nesta novela já não fiz isso! Não estou estimulada. E quando penso que tenho de agir como sempre agi, chego à conclusão de que já não faz sentido. Tenho de o assumir. Nesta novela sofri deste contágio. Não sou apenas a vítima desta engrenagem, faço parte dela. Por isso é que tento fazer teatro e curtas-metragensparanãocristalizar, não desistir, porque tudo isto começa a ficar um bocadinho distante daquilo que me propus no começo de carreira.
Sair de Portugal não é solução?
Não, porque o mal é geral. E depois porque gosto do meu país, quero trabalhar aqui. Posso ir ao Brasil, como fui convidada para fazer um trabalho, ou a outro sítio qualquer, mas quero ser actriz no meu país.
São José Correia nasceu em Lisboa há 37 anos. Estreou-se profissionalmente na Companhia de Teatro de Almada, aos 19 anos. Além do trabalho nos palcos, tem-se destacadono cinema e na televisão, em novelas e telefilmes. Na novela ‘Doce Tentação’, em exibição na TVI, interpreta o papel de Dora. Integrou ainda os elencos de ‘Sedução’, ‘Olhos nos Olhos, ‘Paixões Proibidas’ e ‘Ninguém Como Tu’, entre muitos outros. Destacou-se na série ‘Equador’ e na minissérie ‘Até Amanhã Camaradas’. ‘Aristides de Sousa Mendes - O Cônsul de Bordéus’, ‘Dora’, ‘Má Fila’, ou ‘Os Imortais’ foram alguns dos filmes em que participou. Citando Peter Brook, que diz não haver bons actores antes dos 33 anos, São José Correia sublinha: “Ser actor tem a ver com a experiência de vida, a observação, enquanto mais se vive, melhor se compreende o Mundo.”
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