Artista fotografou gerações, mudanças de regime, rostos políticos como os presidentes Mário Soares e Ramalho Eanes, estrelas da cultura e do futebol e os papas Paulo VI e João Paulo II.
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O fotojornalista Eduardo Gageiro, testemunha e narrador visual durante mais de meio século, deixa um legado com milhares de imagens de momentos históricos, de emoções e da realidade social e cultural do país.
Eduardo Gageiro morreu esta madrugada, em Lisboa, aos 90 anos.
O fotojornalista publicou a sua primeira fotografia aos 12 anos no Diário de Notícias, logo em primeira página, sinal precoce do talento singular do jovem natural de Sacavém, Lisboa, onde nasceu em 16 de fevereiro de 1935.
A fotografia de Gageiro nasceu na rua, entre operários fabris e artistas plásticos, ambientes que marcaram o seu olhar profundamente humanista, como sempre foi reconhecido.
Em 1957 iniciou-se profissionalmente no Diário Ilustrado e, pouco depois, colaborava com títulos de referência como O Século Ilustrado, Eva, Almanaque e também a Match Magazine.
A cidade, o trabalho, o quotidiano e os grandes momentos históricos cruzaram-se na sua lente de repórter de imagem com sensibilidade e rigor documental.
Em 1975, venceu a World Press Photo com uma fotografia do general António de Spínola, em cujo semblante emergia o sinal dos velhos tempos, num país recém-saído da ditadura. Para a história ficou também a imagem de um operário da Lisnave em greve, ferido pela Guarda Nacional Republicana, que se tornou símbolo da luta dos trabalhadores portugueses.
O trabalho pelo qual Eduardo Gageiro ficou mais conhecido, no entanto, surgiu um ano antes, nos acontecimentos da Revolução do 25 de Abril, cujas imagens icónicas marcaram as memórias de portugueses de várias gerações e constituem um precioso documento histórico do país. Eduardo Gageiro foi um dos primeiros fotojornalistas a chegar aos cenários de Abril, fixando as imagens do encontro dos militares no Terreiro do Paço, o assalto à sede da PIDE, a polícia política da ditadura, e o momento em que o capitão Salgueiro Maia percebeu que a revolução triunfara.
O fotógrafo captou o instante decisivo do 25 de Abril, quando o capitão Salgueiro Maia regressava da rua do Arsenal, onde dois militares subalternos tinham acabado de desobedecer ao brigadeiro leal ao regime, recusando-se a disparar sobre as tropas revoltosas.
Salgueiro Maia, que mais tarde disse ter sido esse "o momento mais belo de insubordinação" a que assistira no dia de Abril, surge na imagem a morder o lábio para não chorar, ao perceber que a revolução tinha triunfado, como relatou Gageiro em entrevista à agência Lusa em 2014.
Gageiro fez a foto, mas só anos mais tarde a percebeu, quando Salgueiro Maia lhe confessou o que representava aquele trejeito da boca: "Um momento de grande felicidade, em que conteve a custo a emoção".
Naquela fotografia a preto e branco, nota-se que, enquanto outros militares festejam sorridentes, braços ao alto e dedos esticados em "V" de vitória, o capitão de Abril caminha com passo determinado, e expressão quase sisuda.
"Vinha a morder o lábio para não chorar. Só me explicou quando me visitou em casa, em Sacavém, em 1986, e me ofereceu o relatório da Operação Fim de Regime", um documento histórico no qual Salgueiro Maia escreveu, em dedicatória, na capa, "Ao primeiro jornalista que, na madrugada do 25 de Abril, aderiu aos revoltosos", recordou, na altura, à Lusa.
Como testemunha da Revolução dos Cravos, Gageiro esteve nas ruas nos dias da liberdade, captando outras imagens históricas, como a rendição de Marcelo Caetano e o ambiente de alegria popular que se viveu na altura.
Nesse dia, captou dezenas de imagens, muitas delas publicadas no jornal diário "O Século", que também tinha semanalmente a revista "O Século Ilustrado", uma das mais populares na época.
No ano passado, no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, uma mostra com 170 fotografias evocativas captadas por Eduardo Gageiro foi apresentada no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional. Fotógrafo incansável e atento, trabalhou com instituições como a Associated Press, a Assembleia da República e a Presidência da República.
Foi também editor da revista Sábado e colaborador de marcas como Yamaha, Cartier, Deutsche Grammophon, entre outras, numa carreira que se destacou internacionalmente desde muito cedo.
Autor de uma memória viva do Portugal contemporâneo, cada imagem deixada por Gageiro tornou-se uma narrativa silenciosa mas forte da realidade, fosse em rostos anónimos, numa manifestação, de operários numa fábrica ou de uma criança a brincar.
Como cronista visual do século XX e início do XXI, soube captar o 'instante decisivo' com precisão, mas também com emoção e respeito --- marcas da sua assinatura visual - segundo os seus pares, e retratou figuras portuguesas e estrangeiras como o futebolista Eusébio, os presidentes Cavaco Silva, Jorge Sampaio, Mário Soares e Ramalho Eanes, a poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen, o historiador José Mattoso, o escritor Alves Redol, o bailarino Rudolf Nureyev, quando da sua primeira passagem por Lisboa, em 1968, o realizador e ator Orson Welles, os papas Paulo VI e João Paulo II.
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Deixou testemunhos da emigração, da guerra, da pobreza, do excesso, do absurdo dos conflitos, como aconteceu em Timor e no Iraque, nos anos de 1990. Foi um dos poucos repórteres fotográficos, a nível mundial, a fixar os raptores da equipa israelita no Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Entre as suas imagens contam-se a evidência do isolamento de António Salazar, no forte de S. João de Estoril, em 1962, o momento da retirada do retrato do ditador na sede da PIDE, no 25 de Abril de 1974, e uma das primeiras imagens a cor de soldados com cravos vermelhos nas suas armas, no dia da Revolução.
Eduardo Gageiro participou em mais de 300 exposições coletivas nos cinco continentes, e realizou exposições individuais em cidades como Buenos Aires, São Paulo, Viena, Moscovo, Nova Iorque, Pequim, Helsínquia, Paris, Budapeste e Liubliana.
Em Portugal, expôs na Sociedade Nacional de Belas-Artes, no Parlamento, no Panteão Nacional e em vários museus e centros culturais do país. O fotojornalista representou Portugal em grandes eventos como os Jogos Olímpicos de Pequim (2008), exposições da UNESCO e do Camões Instituto, num olhar que conciliava arte e humanidade.
Em 1966 foi nomeado vice-presidente no II Congresso Internacional de Repórteres Fotográficos, realizado em São Paulo, e em 2014 tornou-se o único fotógrafo português com uma imagem em exposição permanente na Casa da História Europeia, em Bruxelas.
O reconhecimento nacional e internacional traduziu-se em dezenas de prémios e distinções, tendo vencido concursos em mais de 30 países, com destaque para a World Press Photo (Países Baixos), a Photographic Society of America, o Prémio da Paz da Interpress Foto (República Democrática da Alemanha) e o Olho de Ouro da Jugoslávia.
O seu trabalho fotográfico foi consagrado com múltiplas medalhas de ouro, troféus e diplomas. Em Portugal, foi distinguido com o Prémio Gazeta de Mérito do Clube de Jornalistas (2008) e com o Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores (2009).
Em 2010, foi condecorado como Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e recebeu também o grau de Cavaleiro da Ordem de Leopoldo II da Bélgica.
Gageiro foi ainda nomeado Mestre Fotógrafo Honorário pela Associação Portuguesa dos Profissionais da Imagem (2009).
A obra de Gageiro mereceu distinções em instituições como a Fédération Internationale de l'Art Photographique (FIAP), e em clubes fotográficos da antiga Jugoslávia e da antiga União Soviética, de Áustria e Suíça, tendo recebido também o diploma de mérito da Federação Russa, entre outras distinções honoríficas. Foi premiado na China, Vietname, Cuba, México, Estados, Bulgária, Coreia do Norte, ex-Checoslováquia.
No início deste ano, a Câmara de Torres Vedras, no distrito de Lisboa, adquiriu por 250 mil euros o acervo do fotógrafo Eduardo Gageiro e anunciou a intenção de dedicar-lhe uma casa-museu.
Desse acervo organizou a exposição "Pela Lente da Liberdade", inaugurada no passado dia 25 de Abril na Galeria Municipal de Torres Vedras, onde pode ser vista até 13 de setembro.
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