Não se faz, “gordito”; é como se deixássemos um copo a meio.
Ninguém sabe como foi apanhado pelo vírus, mas Luis Sepúlveda (1949-2020), Lucho, morreu esta quinta-feira em Oviedo ao fim de dois meses de internamento, complicações várias e também cansaço. Tínhamo-nos despedido em fevereiro, na Póvoa de Varzim, num sábado de tarde em que nunca mais chovia – e da mesmíssima forma, com um abraço, um beijo e a saudação "adiós, gordito". Estávamos com o uruguaio Mario Delgado Aparaín, "el negro" (escreveram a quatro mãos o mais que divertido ‘Os Piores Contos dos Irmãos Grim’) e Luis estava constipado. "Que melhores." Mal sabíamos.
Foi ele que começou, há muitos anos, por chamar-me "gordito" (até em público, numa entrevista), e eu imitei-o. Depois eu emagreci e combinámos que continuaria na mesma a chamar-me "gordito", em espanhol. Ele dispunha de alcunhas para todos. O Mario Delgado era "el negro"; o seu editor português que muito amava, o Manuel Alberto Valente era várias coisas mas eu gostava de "hermano viejo", porque o Manuel, para mim, também é um "irmão mais velho".
Se calhar eu devia, nesta despedida escrita, falar dos seus livros (especialmente dos que mais gosto, como ‘O Velho que Lia Romances de Amor’, ‘Diário de um Killer Sentimental’ e ‘Patagonia Express’, por exemplo), mas quarta-feira morreu o brasileiro Rubem Fonseca, meu mestre como escritor, e esta quinta-feira morreu mesmo Lucho Sepúlveda, amigo tão divertido e amável, cozinheiro tranquilo, conversador como se usava antes disto tudo, contador e inventor de histórias que nunca terminavam. De modo que isto não se faz, "gordito"; é como se deixássemos um copo a meio. Não se faz.
Conhecemo-nos depois de publicar ‘O Velho que Escrevia Romances de Amor’. Nessa altura escreveu um texto para a revista ‘Ler’, sobre a Patagónia e os ‘moleskines’ que vira ao mítico Bruce Chatwin, os célebres e igualmente míticos caderninhos italianos. Nessa altura, impedido de voltar ao Chile, Lucho passava mal; o dinheiro era pouco e a Europa um inverno permanente. Ainda não tinha chegado o sucesso extraordinário de ‘O Velho que Lia Romances de Amor’ e dos livros seguintes, e que lhe permitiram mais preguiça, mais serenidade e mais tempo para não escrever.
Fez filmes e guiões para filmes; passou a escrever livros para crianças, o que o libertava para uma vida mais tranquila. Desses tempos, lembro um jantar maravilhoso em que Lucho cozinhou para todos nós (estava o Fernando Assis Pacheco) num terraço do Lumiar; e um desencontro de férias no Minho, perto de Caminha: eu queria falar com ele, mas não conseguia telefonar-lhe; estivemos uma semana separados por cem metros do rio Âncora sem sabermos, comigo a ligar para Paris e para a Alemanha, a tentar apanhá-lo. E ele do outro lado do rio, numa casa defronte.
Era, de resto, um homem fiel às suas convicções e ao seu passado. Foi ecologista antes da moda "do ambiente". Se o Chile não o queria, não era ele que ia mudar. Ficaria em Gijón, onde esse grande mexicano, o Paco Taibo, tinha criado a Semana Negra, de que o Lucho cuidaria por anos. Vieram os prémios. Veio o reconhecimento internacional. E Lucho seria sempre aquela voz dengosa e pastosa, terna, dócil, mesmo quando insultava os fascistas e os que acusava de destruir o planeta (e destruíam). Mas, ao contrário dos tolos, as suas convicções e as suas ideias políticas nunca foram linhas vermelhas para construir e manter amizades. Porque, acima delas havia ainda a defesa da liberdade, a solidariedade entre pessoas concretas – e a amizade entre gente de bem.
Hoje recordo esse último abraço na Póvoa de Varzim. "Gordito, gordito, que magro estás." Com aquela voz dengosa, dócil. Estás ligeiramente constipado, Lucho. Agasalha-te.
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