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A vida do gangster português

Só faltava sangue italiano a Joe Barboza para ser da Máfia. Mas fê-la tremer como testemunha.

23 de março de 2014 às 15:00

A morte de Joe Barboza foi à queima-roupa. Quatro tiros, disparados pelo "génio da carabina" Joseph Russo, um assassino da máfia de Boston, liquidaram o gangster lusodescendente, de 43 anos, que julgara estar a salvo em São Francisco, apesar de ser um dos homens mais procurados pelo crime organizado nos EUA. O seu testemunho fora usado pelo FBI para obter a condenação de vários destacados mafiosos.

Os instantes finais de Barboza foram tão violentos quanto o resto da vida de quem matou um número indeterminado de pessoas – algumas estimativas apontam para 26, o que é considerável para alguém que passou boa parte da vida adulta atrás das grades –, abalando a calma do bairro de Sunset. No entanto, naquela tarde de 11 de fevereiro de 1976 já haviam decorrido quase nove anos desde que o ‘Verão do Amor’ de 1967 atraíra a São Francisco 100 mil forasteiros com motivações assaz mais benignas.

Barboza não se juntou então aos hippies, que preferiam o amor à guerra, embora gostasse de fumar erva tanto ou mais do que eles. E também não foi a qualquer outro lugar, pois estava detido, após a polícia de Boston ter encontrado uma pistola no porta-luvas do seu carro. Nada crente em coincidências, percebeu que fora atraiçoado pelos mafiosos em quem confiara e de quem parecera ter ganho a confiança, ainda que lhe faltasse o sangue italiano essencial para ser mais do que um ‘independente’ que prestava serviços à Cosa Nostra da Nova Inglaterra.

Quando os cadáveres dos seus amigos e parceiros de crime, Arthur Bratsos e Thomas DePrisco, foram encontrados na mala de um automóvel, crivados de balas, depois de passarem pelo Café Nite Lite, onde iam recolher dinheiro para a caução de Barboza, o gangster decidiu vingar-se da morte e do desaparecimento de 59 mil dólares – mais de metade dos 100 mil que o fariam aguardar julgamento em liberdade.

Já a cumprir uma pena de cinco anos por posse de arma ilegal, o lusodescendente soube que tinha sido marcado para morrer por Jerry Angiulo, um mafioso com quem acumulara problemas ao longo dos anos. Foi a gota de água: chegara a hora de falar com os agentes do FBI que tentavam capturar Raymond Patriarca, o diabético quase sexagenário que liderava a máfia da Nova Inglaterra a partir de um pequeno escritório no fundo de uma loja na cidade de Providence, no estado de Rhode Island. Por isso é que a Cosa Nostra daquela parte dos EUA era conhecida por ‘O Escritório’.

"Aquele velho tonto de Rhode Island confundiu o meu respeito com medo. Medo? Não tenho medo de tipos mais duros do que o Raymond Patriarca. De qualquer forma, aprendi a aceitar a morte há muito tempo, à medida que os meus amigos morriam na guerra de gangs", escreveria Barboza, na autobiografia publicada em 1975.

POBREZA LUSITANA

Ao contrário dos pais, Joseph já nasceu na América. Era o segundo de quatro filhos de um casal de portugueses de New Bedford. A cidade costeira do Massachusetts, onde o futuro gangster nasceu, a 20 de setembro de 1932, sofrera com a quebra na pesca da baleia, à medida que o óleo retirado dos cetáceos era substituído pelo querosene na iluminação pública, antes de a luz elétrica tomar conta de tudo. O crash bolsista de 1929 encerrara muitas fábricas e a miséria estava espalhada pelos bairro de emigrantes.

Joseph Barboza Sr. tinha a vantagem de ter dois empregos, como leiteiro e pugilista, mas infelizmente treinava os punhos nos filhos e na mulher, Palmeda, uma costureira que trabalhava na cafetaria de um hospital, de onde trazia restos para alimentar a prole. O peso-pesado tinha o hábito de desaparecer semanas a fio, aproveitando a companhia de amantes espalhadas pela cidade, ainda hoje marcada pela emigração portuguesa.

A situação levou Palmeda ao desespero, ao ponto de Joe e o seu irmão mais velho, Donald, terem impedido uma tentativa de suicídio. Chegaram a casa a tempo de abrir as janelas e fechar a mangueira do gás, já com a mãe inanimada.

Mas a violência do chefe de família não se traduzia apenas em fazer voar os dentes da frente da mulher. Quando Joe foi convencido pela mãe a bater à porta da casa de uma das amantes, o pugilista gritou para o filho: "Desaparece daqui, pequeno bastardo!" O miúdo desatou a chorar e correu para casa, para onde Joseph Sr. acabou por voltar, levando um pombo de presente. Demasiado pouco, demasiado tarde. "O sacana partiu-me o coração", desabafaria Barboza, anos mais tarde. Por essa altura, até os seus inimigos reconheciam que o lusodescendente era gentil com as crianças e aplicava inesquecíveis ‘corretivos’ a espancadores de mulheres.

A ESCOLA DA PRISÃO

É possível que pudesse ter outra vida caso tivesse nascido e crescido noutras coordenadas. Mas o passo seguinte foi o reformatório, onde retirou lições das recorrentes tareias. Tornou-se pugilista, usando a certidão de nascimento de um adulto, vencendo sucessivos combates. A 9 de fevereiro de 1950, ainda com 17 anos, foi preso, na sequência de uma série de assaltos a residências de New Bedford, como líder dos ‘Bandidos da Tarte de Creme’ – assim chamados por vandalizarem as casas.

Pediu para trabalhar na cozinha, mas empenhou-se sobretudo em ganhar estatuto, o que conseguiu ao partir os maxilares de um presidiário mais velho. Nove dias na solitária foram o preço a pagar por passar a ser temido entre os seus presentes e futuros pares. Incidentes seguintes, como aquele de 1951, quando desafiou guardas prisionais a atacarem-no, após cheirar diluente de tinta, contribuíram para se tornar uma lenda, consolidada ao escapar num carro da polícia, numa fuga tão efémera quanto publicitada.

Entre agressões a guardas e um lucrativo negócio de contrabando, foi acumulando sentenças. Condenado a um mínimo de dez anos de prisão em 1954, conseguiu sair em liberdade condicional quatro anos depois, por bom comportamento. Foi um verão ocupado: venceu dois dos três combates disputados enquanto pugilista profissional, e casou-se com uma mulher de Boston, 16 anos mais velha e com quatro filhos, que se divorciou dele quando regressou para trás das grades.

O regresso à cadeia foi gerido pelo diretor da prisão de Walpole com a promessa de que lhe facilitaria a existência se aceitasse gerir a cozinha. "Calculou que eu conseguiria controlar todos os malucos e fazedores de problemas", recordaria Barboza, que voltou a conseguir liberdade condicional em 1960.

O currículo habilitou-o para ser porteiro de estabelecimentos noturnos. Tinha a missão de esmurrar desordeiros, um dos quais filho de um capitão da polícia de Boston. Os patrões tiveram de pagar mil dólares ao agente da autoridade para que não denunciasse Barboza, mas restou-lhe pouco tempo para gozar o presente. O agente foi encontrado afogado, enfiado numa gaiola de pescar lagostas.

Barboza retinha ensinamentos que lhe seriam úteis nos futuros negócios. "Já pus um gajo numa cova!", disse-lhe, certa vez, um cliente insatisfeito. "Achas que a tua cova é a única na floresta?", respondeu-lhe o lusodescendente, que voltaria à cadeia em 1962, por nova violação da liberdade condicional.

Quando saiu, a 30 de abril de 1964, tinha à sua espera Claire, uma loura que prometeu esperar desde que se convertesse ao judaísmo. Cumpriu a palavra, alterando o nome para Baron e fazendo-se circuncidar, mas continuou a ser conhecido por Barboza. E ainda estava na lua de mel quando um parceiro lhe telefonou a avisar que era preciso voltar às ruas de Boston, ensanguentadas pela guerra entre fações de gangsters irlandeses.

Havia, no entanto, quem conseguisse morrer por outros motivos. Foi esse o caso do gangster abatido por um marido ciumento, cujo velório permitiu a Barboza conhecer Henry Tameleo, representante em Boston de Raymond Patriarca.

'ANIMAL' COMO ALCUNHA

O rendimento fixo de Barboza estava assegurado com os juros elevados cobrados a quem precisava de dinheiro rápido e sem perguntas. O pior era quando os pagamentos falhavam, como descobriu o caloteiro que ficou com uma cicatriz dos lábios ao queixo. Ainda assim, reconheceu ser o responsável pela desgraça. "Fiquei feliz por ele ter dito aquilo, pois quando magoava um cliente gostava de ter sempre a certeza que tinha sido por culpa dele", confidenciou.

Mas o recurso de Barboza à violência nem sempre era apreciado. Um dos casos mais notórios valeu-lhe a alcunha de ‘Animal’. Estava no Ebb Tide Lounge, ponto de encontro da Cosa Nostra, quando foi mandado calar por um mafioso. Uma sonora estalada serviu de resposta, o que enfureceu Henry Tameleo. "Não quero que voltes a deitar a tuas mãos a ninguém aqui! Ouviste?", disse--lhe. O ex-pugilista ouviu, sem retorquir, e abocanhou a cara do homem que o mandara calar, cuspindo um pedaço de bochecha para o chão, para onde não demorou a tombar a vítima da dentada. "Estás a ver, Henry? Não usei as mãos", comentou.

Mesmo assim, teve a honra de ser apresentado a Raymond Patriarca, "um homem de estatura média, com o cabelo negro e liso puxado para trás, olhos penetrantes e feições de falcão". A proximidade trazia vantagens, mas também despertou invejas junto dos italianos. Sobretudo de Jerry Angiulo, que começou a planear a morte de quem ameaçava o seu território.

A queda de Barboza foi ainda mais abrupta do que a ascensão. E quando se tornou evidente que fora descartado não hesitou em provocar mais estragos com as palavras do que conseguira com murros, facas e armas de fogo. Relatou ao FBI a ocasião em que fora chamado à presença de Patriarca para combinar a morte de Willie Marfeo, um mafioso que desobedecera às ordens de ‘O Escritório’. Apesar de o ‘serviço’ ter sido cancelado – seria executado, mais tarde, por outro criminoso –, o facto de a conspiração para cometer homicídio ter envolvido a viagem do estado do Massachusetts para o de Rhode Island constituía crime federal.

TRAIDOR DA MÁFIA

Ainda mais vingativo – embora envolvesse um perjúrio, que era do perfeito conhecimento dos agentes do FBI – foi o testemunho de Barboza no caso da morte de Teddy Deegan, no qual tratou de incriminar Henry Tameleo, Peter Limone, Ronald Cassesso e Louis Greco. Todos foram condenados à pena capital, e os dois primeiros morreriam atrás das grades, enquanto o informador cumpriu apenas um ano e meio.

A máfia precisava tanto de calar a testemunha incómoda que colocou dinamite no seu Oldsmobile, conhecido pela polícia como "o carro James Bond do Barboza". Mas este tinha entregue o automóvel a John Fitzgerald, num pagamento de honorários que saiu caro ao advogado, a quem amputaram a perna direita abaixo do joelho.

Enquanto duraram os julgamentos, Barboza, a mulher e a filha – o filho mais novo nasceria a seguir – foram escondidos pelas autoridades e guardados dia e noite em locais como a ilha Thatcher, na costa do Massachusetts. E, como a condenação dos réus, nomeadamente de Patriarca, não era garantia de segurança, foram criadas novas identidades para toda a família.

O destino do primeiro informador da máfia a ser incluído no Programa de Proteção de Testemunhas esteve quase a ser a Austrália, mas Barboza recusou separar-se dos seus cães, pelo que foi colocado em Santa Rosa, na Califórnia, e inscrito num curso de cozinha francesa.

Ainda esteve a trabalhar num navio de cruzeiros, mas voltou à vida do crime, e foi novamente condenado, pela morte de um homem, desta vez na Califórnia. Apesar dos esforços do FBI, teve de se declarar culpado de homicídio no segundo grau. A família afastou-se. "Perdi a minha mulher e os meus filhos, e essa é a minha maior mágoa", diria mais tarde.

Ainda voltou às primeiras páginas em 1972, quando testemunhou perante o Congresso que o cantor Frank Sinatra era um testa de ferro de Raymond Patriarca na posse de dois casinos. De óculos escuros e bigode negro, poucos convenceu.

Quatro anos depois foi morto, levando o seu novo advogado a comentar que "a sociedade não sofreu grande perda". O funeral foi em New Bedford, e quando chegou a hora do elogio fúnebre, Donald Barboza disse ao padre: "Faça-o em português. O meu irmão era português."

CAIXA: RETRATO DO 'HOMEM DE NEGÓCIOS'

Entre os livros que contam a história de Barboza, um deles é uma autobiografia publicada em 1975, escrita em conjunto com o jornalista Hank Messick. "O Joe é um lutador e não um escritor. Peguei nas palavras dele e tornei-as mais claras, sem sacrificar a linguagem e o sentido", explicava o coautor, na introdução da obra em que o lusodescendente contava (quase) tudo sobre os seus crimes. Segundo Messick, Barboza viu-se sempre como "um homem de negócios", embora fossem negócios de sangue. No final das 200 páginas ainda estava vivo, mais uma vez atrás das grades. E acreditava que a máfia nunca o apanharia.

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