Um mês em Portugal dá-lhes mais três anos de vida. A terra natal ainda está marcada pelo maior acidente nuclear da história.
Katerina nunca fala de Chernobyl, mas mora a cinquenta quilómetros da central, a distância mínima permitida desde o pior acidente nuclear da história, a 26 de abril de 1986. Ainda não era nascida quando um reator da central de Chernobyl teve problemas técnicos e libertou uma radiação duzentas vezes superior às bombas atómicas de Hiroshima e Nagasáqui.
Tem nove anos e aquilo que sabe é que as férias de um mês em Portugal - que acabam hoje - lhe deram muitas histórias para contar quando regressar à casa esconsa onde mora com a mãe e os cinco irmãos na Ucrânia. Katerina não sabe que um mês em contacto com o clima do nosso país (praia, sol, ar puro) lhe dá mais três anos de vida. Dados científicos apontam para que mais de 500 mil pessoas nas próximas gerações possam continuar a ser afetadas. "Quando chegou, tinha o cabelo tão fininho, que até se via o couro cabeludo. Agora até brilha" - conta orgulhosa a ‘mãe' portuguesa de Katerina, uma enfermeira reformada com experiência de sobra no Hospital da Estefânia, em Lisboa. Lucília Mendonça e o marido, cirurgião plástico, foram pela primeira vez no ano passado família de acolhimento neste projeto, que, através da Liberty Seguros, traz a Portugal um grupo de crianças oriundas de Kiev, onde as várias gerações ainda sofrem de complicações de saúde resultantes do desastre nuclear.
Gerações doentes
"O nosso administrador teve conhecimento de um projeto parecido em Espanha e quis trazê-lo para Portugal. A seleção destas crianças funciona com a colaboração de um organismo ucraniano do Estado. Eu digo quantas famílias de acolhimento tenho e que idades pretendem e eles fazem a triagem", explica Fernando Pinho, um dos dinamizadores do projeto. "São crianças que ainda não têm doenças, mas os pais já começam a ter problemas de tiroide, pele, coração, tensão arterial e ‘amanhã' é a vez deles. E a seguir a eles ainda vão ser muitas gerações afetadas pelas radiações."
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Katerina já sabe dizer algumas palavras em português. ‘Piscina', ‘praia', ‘bananas', ‘fiambre' e ‘iogurtes' são as preferidas, mas o léxico é mais extenso. A primeira coisa que disse à mãe quando telefonou para casa foi que "o quarto tinha muita luz e a cama onde ia dormir era muito grande". Katerina não chegou sozinha à casa de Lucília e Manuel, entre Mafra e a Ericeira. Com ela veio Aliona, da mesma idade, também estreante nesta iniciativa ‘Verão Azul'. As duas crianças não se conheciam, mas depois de cinco semanas juntas une-as uma cumplicidade evidente. Quando chegaram, não sabiam ver as horas, mexer num telemóvel, o que eram guardanapos, pôr o cinto de segurança e nunca tinham nadado. Agora têm relógio, tratam o telemóvel por tu e são peixes na piscina da casa da família de acolhimento.
"No início, não gostavam de beijinhos nem de muito contacto físico, mas agora apertam-
-me tanto que até magoam", brinca Lucília, de 58 anos, que no início da estadia ficou espantada com a velocidade a que o frigorífico ficava vazio. "No primeiro dia, comeram vinte iogurtes, porque lá não costumam comer, são muito caros. Também adoram tudo o que seja fruta - comem quatro bananas a seguir às refeições, por exemplo - e nada lhes faz mal. Percebe-se mesmo que o organismo está em carência e absorve tudo." Onde moram, as famílias destas crianças podem produzir as suas próprias culturas, mas não conseguem vender. "Vão às feiras, mas ninguém compra nada porque o solo está contaminado das radiações."
Pele sensível
‘Lucy, anda', ‘Lucy, vê ' chamam em coro Kati e Ali, que abriram os olhos de espanto no Oceanário de Lisboa e engordaram quatro e cinco quilos, respetivamente. A primeira é filha de uma professora de inglês, que ganha um parco salário e pertence a um agregado "paupérrimo". Do pai não há notícias, mas a mãe juntou-se com outro companheiro. Aliona é filha única, também foi abandonada pelo pai, mas tem com a mãe, escriturária num centro de saúde, uma "relação muito próxima". "Ao ser família de acolhimento destas crianças, ganha-se muito mais do que se dá. Elas compensam tudo: a alegria, os sorrisos, ver a evolução delas, os quilos e a saúde que ganham, é maravilhoso", sublinha Lucília.
Arlindo e Helena Gomes, 57 e 55 anos, acolheram Kharchenko Bogdan (mais conhecido por ‘Bog', para facilitar) com a mesma vontade de dar e receber. Há quatro anos que a criança de 12 anos passa férias com a família de Braga. "Já não imaginamos passar julho e agosto sem ele. Durante o ano, comunicamos com ele através do Skype. ‘Bog' tem "várias complicações de saúde" resultantes da proximidade de Chernobyl. "Qualquer coisa, fica todo negro, a pele é extremamente sensível. Há dois anos, quando chegou, vinha cheio de feridas de uma queda de bicicleta que tinha dado dois meses antes e cá em três dias passaram-lhe. A mãe também já me disse que desde que ele vem para cá está menos vezes doente durante o ano", conta Arlindo, funcionário da Liberty. A mulher é doméstica e gosta tanto de crianças, que volta não volta a casa está cheia delas.
O casal, com dois filhos, fica embevecido a ver ‘Bog' comer. "Não come, devora. Come sempre a duplicar e nós deixamos porque sabemos que é o único mês no ano em que tem acesso a comida desta forma." Outra perdição da criança é Coca-Cola. "Fomos ver um jogo do Braga no camarote, e ele conseguiu sozinho esgotar o stock [da bebida]. Adora jogar Playstation e ver televisão. No outro dia, entrámos numa loja [uma conhecida marca de roupa desportiva] que estava em saldos. Peguei num blusão e perguntei-lhe se ele queria. Ele disse: ‘Muito dinheiro', mas eu insisti. O miúdo quase chorou". Como ‘Bog' gosta de bola, Arlindo levou-o certa vez a um jogo de apresentação do FC Porto. "Tivemos de nos vir embora a meio porque ele só gritava pelo Benfica. Agora também é louco pelo Braga." De tal forma, que quando o clube português foi jogar a Kiev, "ele ligou-me a chorar porque o pai não o deixava vestir o equipamento do Braga, que lhe tínhamos dado". No ano passado, Arlindo reuniu coragem para se deslocar à terra natal de ‘Bog'. A Liberty Seguros oferece viagens às famílias de acolhimento para que possam ver "com os próprios olhos" de onde vêm aqueles que acolhem. "Temos cá animais que vivem em melhores condições. A casa do ‘Bog' nem era das piores, mas a de um dos miúdos que está com o Edmundo era uma espécie de armazém. Dormiam todos no chão, não havia mobiliário, andavam quilómetros a pé para ir para a escola debaixo de temperaturas de -25 graus, com neve até ao pescoço." Edmundo Pereira, de Guimarães, confirma a história de Arlindo. Quando viu a casa de Valentim, decidiu logo que no verão o ia receber na sua casa - juntamente com Igor, que nos últimos três anos acolheu. Valentim é irmão de Katerina, que está na casa de Lucília Mendonça. Enquanto Igor "parece um soldadinho, o Valentim é mais doce e musical". Enquanto o primeiro é mais reservado, o segundo é mais dado. Igor é o mais frágil. "Tem umas grandes olheiras, um cabelo muito fraco, uma pele muito sensível.
No ano passado ao dar um mergulho na piscina no dia antes da partida aleijou-se no nariz. Este ano quando veio, ainda tinha a ferida. Em meia dúzia de dias, desapareceu sem deixar rasto".
"São mais dois membros da família. Tenho os meus dois filhos portugueses, os dois filhos ucranianos e os três gatos, é uma animação este mês de verão", diz Edmundo, de 44 anos, já antecipando a despedida complicada. Para Arlindo, o momento também é duro. "O meu filho já disse que não vai ao aeroporto, não consegue. Eu depois de fazer o check in, saio à francesa e fica a minha mulher, já não tenho idade para assistir a essas coisas. No ano passado, ele agarrou-se a nós, não nos largava o pescoço, custa muito deixá-los ir." Edmundo e Arlindo (e respetivas famílias) juntaram neste ano as três crianças ucranianas e foram com elas para o Algarve durante uma semana. "Fomos para um hotel com tudo incluído, e nos primeiros dias eles entravam pelo restaurante adentro a toda a hora, aquilo era o fim do mundo", diz Edmundo.
Ania já conhece Hernâni e Maria João Leitão há cinco anos. Era uma menina, hoje parece uma mulher, apesar dos 14 anos. No ano passado, conseguiu criar uma conta de Facebook e através da rede social comunica durante o ano com a família de acolhimento. "É um orgulho vê-la crescer, de verão para verão. Não me sai da cabeça o dia em que viu o mar pela primeira vez. Só dizia: ‘Grande, grande, grande.'" A família portuguesa mora em Peniche com o oceano à porta. A família ucraniana perdeu o pai há muitos anos, e a mãe vive com um "parco ordenado de professora na escola da aldeia". Ania já fala um português quase correto. "Gosto de vir para aqui porque eles gostam muito de mim." Se razões faltassem, esta é mais do que suficiente para voltar todos os anos.
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