Os juízes portugueses usam beca há mais de 400 anos. Rareiam os alfaiates que ainda vestem magistrados e advogados
A vida de Amal Alamuddin mudou muito desde que se casou com um tal de George Clooney. Tanto que a advogada de Direitos Humanos passou a ser confrontada com as mais bizarras perguntas. Ao entrar num julgamento em Estrasburgo, um jornalista inglês perguntou-lhe o que ia vestir na audiência. Amal revelou: "Estou a usar Ede & Ravenscroft." A advogada britânica de origem libanesa referia-se à mais antiga alfaiataria de Londres, que desde 1689 se dedica à confeção de fatos cerimoniais, eclesiásticos e judiciais.
As vestes judiciárias têm variações de país para país, mas na Europa Ocidental há muitos pontos em comum entre os vários países. Explica António Nunes, especialista em história da justiça portuguesa, que "as becas dos juízes portugueses têm uma origem comum à que usam os juízes de Espanha, Itália, França, Reino Unido e outros países". Não há certezas absolutas, mas António Nunes acredita que "a origem da beca será uma cidade italiana, mais concretamente Roma, Florença ou Veneza". Mais certa é a data da introdução da beca em Portugal. "Haverá usos anteriores, mas o documento mais antigo que temos é do reinado de D. Felipe I, em que se ordenou que todos os juízes dos tribunais da relação usassem a mesma veste." A imposição do rei que governou toda a Península Ibérica a partir de 1581 ficou até aos dias de hoje. "A beca dos juízes teve modificações ao longo do tempo, mas o modelo é ainda muito próximo do que se usava no século XVI", conta António Nunes.
Quanto à toga dos advogados, em Portugal a sua origem é bem mais recente. "Surge já no século XIX, após as revoluções liberais, quando a profissão ganha independência", explica António Nunes. E se o traje dos juízes tem muito de comum com as vestes eclesiásticas católicas ou com os trajes dos professores nas universidades, a toga dos advogados vai buscar inspiração ao vestir dos pastores luteranos e protestantes. Foi também após as revoluções liberais que o uso da beca se estendeu aos magistrados do Ministério Público.
O método Maguidal
Em Portugal não existe uma casa com idade que se aproxime dos alfaiates ingleses que vestem Amal Clooney, mas ainda se encontram alfaiatarias que sobrevivem por várias gerações.
Teresa Gonçalves está hoje à frente da Academia de Corte Maguidal, na rua da Palma, em Lisboa. A casa foi fundada pelo seu avô, Manuel Guilherme de Almeida, em 1934. Distinguiu-se não só pelos trajes que fazia para padres, professores e magistrados, mas também por ali se ter fundado uma escola que fez nome no meio. "O método de corte que o meu avô criou permitia que facilmente qualquer alfaiate, mesmo os que tinham menos instrução, conseguissem calcular o tecido necessário a partir das medidas da altura e perímetro do peito. Mudou a forma como cortavam o tecido", conta Teresa Gonçalves, de 48 anos. O sistema foi batizado com as iniciais do criador: Maguidal. Referência para gerações de mestres e aprendizes.
Então como agora, a alfaiataria (hoje já não funciona como escola) especializou-se em trajes cerimoniais e profissionais. Juízes e advogados encontram ali vestes feitas à medida. Mas Teresa Gonçalves, que aprendeu corte e costura com o avô e trabalhou depois com o pai, Fernando Louro de Almeida, diz que os tempos estão bem diferentes. "Fazemos cada vez menos becas e togas. As pessoas já não querem trajes feitos à medida, encontram-nos no pronto-a-vestir a preços baixos, apesar da qualidade ser muito menor." No segundo andar da Rua da Palma, um advogado vem buscar a sua nova toga. Mostra-se satisfeito. "A esposa é magistrada e comprou aqui a beca. Funciona muito esta recomendação de pessoa a pessoa", conta Teresa Gonçalves. Na Maguidal, uma beca pode custar entre 400 euros, para uma veste feita em trevira – tecido de algodão e poliéster –, e pode chegar aos 1200 se se usar tecidos mais finos.
Arte em extinção
A muitos quilómetros de Lisboa, um antigo aluno da academia tem porta aberta na freguesia de Nine, Vila Nova de Famalicão. Manuel Campos estudou o método Maguidal em 1976, muito depois de se ter iniciado na atividade, aos 11 anos. As togas e becas são parte importante do negócio, que também já viu melhores dias. "O pessoal anda todo sem dinheiro, já poucos fazem caso de ter uma toga ou uma beca feita à medida", conta o alfaiate de 67 anos. À sua casa vão chegando clientes de todo o Norte do País, mas longe vão os tempos em que fabricava dezenas de ‘fardas’ para os magistrados e advogados. Até porque a qualidade das peças vira-se contra quem as fabrica. "Uma peça destas dura uma vida. Há mesmo uma superstição de nunca trocar de beca ou de toga."
Em Coimbra, a cidade dos doutores, também o pronto--a-vestir ganha terreno. Ricarte Silva, de 74 anos, ainda se dedica, com a mulher, a vestir os magistrados da cidade e de várias partes do País. "Os clientes são cada vez mais raros. Há lojas mais baratas, uma delas até veio à minha montra copiar um dos modelos. Mas não se consegue copiar a qualidade de uma beca ou de uma toga feita à mão, isso é impossível." Uma beca custa a partir de 500 euros, a toga de advogado cerca de metade. As mulheres exigem outros cuidados. Preferem as vestes mais justas, para que se perceba a silhueta, conta Ricarte, que apesar de reformado mantém a porta aberta. "Quando já não puder trabalhar, saio de Coimbra e volto para a aldeia."
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