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Meninos de Ouro

Traquinas, calmos ou refilões, quase todos sonharam um dia ser craques dos relvados. Agora os jogadores só têm uma ideia: vencer o Mundial.

11 de junho de 2006 às 00:00

De tanto percorrer a mesma estrada, o carro de Francisco Costa batia o asfalto quase em piloto automático. O dia acabava invariavelmente tarde, com uma derradeira paragem junto à padaria onde comprava algumas carcaças saídas do forno. Ao chegar a casa, manteiga a derreter no pão, preparava umas chávenas de ‘cevada’ e acordava os três rebentos: Francisco, Maria Luísa e Mafalda.

Ensonados, meio cá, meio lá, os miúdos despachavam a ceia de sorriso nos lábios, regressando à cama com o estômago reconfortado, que na manhã seguinte andava tudo num virote para chegarem a horas à escola.

O filho varão cedo conheceu a palavra responsabilidade. Educado ‘à antiga portuguesa’, entretinha-se sem grandes alaridos à volta de uns carrinhos que tratava de desmanchar. “Às vezes era o cabo dos trabalhos para voltar a juntar as pecinhas todas. Quando eu chegava a casa olhava para aquele trabalho e sobravam bocados dos automóveis que pouco antes lhe tinha comprado”, conta o mais velho dos Costa, de quem o petiz herdou o nome e um certo talento para os truques com a bola.

Perto dali, no Bairro do Relógio, crescia outro malabarista com a mesma arte, conhecido pelos colegas de balneário como ‘Cambodja’, alcunha guerreira colocada graças à impetuosidade com que disputava todos os lances: Nuno Valente. Lingrinhas e hábil, teve dificuldade em impor-se nas camadas jovens do Sporting, mas, como diz o povo, ‘talento não tem tamanho’ e no segundo ano de juvenil lá galgou uns centímetros. Safou-se bem, cumprindo o sonho de berço: ser futebolista profissional.

O vizinho Costinha enfiou tarde na cabeça tal ideia. Muito antes de ingressar no Oriental respondia à sacramental pergunta ‘o que queres ser quando fores grande? ’ sempre da mesma maneira: “engenheiro electrotécnico! ” De resto, o único tique deixado pela infância prende-se com os trapos. “Já era vaidoso. Quando a mãe lhe comprava roupa nova fazia questão de se mostrar. Andava sempre todo janota, nunca gostou de desmazelos” afiança o pai do jogador, sublinhando que sempre o aconselhara a continuar os estudos.

Não ter seguido importante ensinamento acabou por resultar na maior patifaria que se conhece ao menino Costinha, ainda por cima com requintes de malvadez. “No liceu escolheu a área de Desporto e um dia encheu-se de coragem para me dizer que queria deixar a escola para se tornar jogador profissional. Pus como condição que acabasse o 11.º ano e ele chegou a casa com um exame de 88 por cento.

” Foram precisos dez anos para Francisco Costa perceber toda a arte daquela finta invisível. Afinal, o primeiro oito era um três, transformado com engenho e mão segura. O miúdo comilão que só não gostava de favas tinha mandado a escola à fava, sem ninguém desconfiar. Com a mesma classe que se lhe conhece em campo.

'PETIT GARÇON'

A outro Costa, o Ricardo, nunca lhe deu para equacionar artimanha de idêntico gabarito. Nem podia. O pai, Manuel, instruiu-o com rédea suficiente para nem sequer tentar a proeza. Filho único, cresceu poupadinho num rés-do-chão de duas assoalhadas em Vilar do Paraíso, concelho de Vila Nova de Gaia, onde o luxo não habitava. Até aos seis, sete anos, era o espelho da tranquilidade, só mostrando algum nervo quando numa festa de anos de um amigo pedia um brinquedo, depressa negado pelos progenitores, que o dinheiro não era elástico e as dificuldades apertavam.

Ele acatava sem birras. “Conta-se pelos dedos de uma mão as vezes que o Ricardinho meteu o pé na argola. Uma delas foi na quarta classe. Teve más notas e com medo não queria entrar em casa. Só fui dar com ele à porta eram já 20h30. Eu estava preocupado, irritado, mas ele desfez-se em lágrimas e só tive tempo de o abraçar com muita força e dizer para não voltar a repetir aquilo” , lembra Manuel.

Houve outras ocasiões em que o choro de nada lhe valeu. Como naquele dia em que o pai levou uma bicicleta para casa – a paga por um biscate do metalúrgico serralheiro – e pediu ao senhor Valdemar uma bomba para encher os pneus. Tarefa cumprida, cabia ao miúdo ir entregá-la e agradecer a disponibilidade. Mas quando a bomba chegou ao vizinho, sempre zeloso dos seus pertences, já não estava em grande estado. Ricardinho, o catraio franzino que até tinha medo dos cães, acabou por levar com ela antes de conseguir soltar um ai: “Passou-me uma coisa pela cabeça. Dei-lhe duas ou três ‘sticadas’ com aquilo, nem percebi o que estava a fazer.

Coitado do miúdo, podia tê-lo magoado a sério”, diz hoje Manuel Costa entre risos, minutos antes de usar aquela pronúncia inconfundível das gentes do Norte para revelar mais um ou outro segredo dos verdes anos do filho: andava sempre com uma fotografia de Fernando Couto na carteira, despachava quatro ou cinco panados com arroz de ervilhas enquanto o diabo esfregava um olho, por volta da uma da manhã era rapaz para estar cheio de sono e só por uma vez faltou a um treino do Boavista... para namorar. Já tinha 17 anos e não foi preciso uma ‘sticada’ para o pôr na ordem, mas ouviu grande reprimenda das antigas. A última de que o senhor Costa se recorda.

Antes de se armar em defesa temível, daqueles que não dão tréguas aos avançados, Ricardo Costa sonhava ser guarda-redes, voar de um poste ao outro para defesas impossíveis, posição onde um menino nascido lá longe, em Estrasburgo, também se sentia realizado. Chama-se Armando Gonçalves Teixeira, mas no berço tratavam-no por ‘petit garçon’, estrangeirismo com o qual nunca se importou.

Aos seis anos, após a aventura francesa dos pais e já a viver no bairro do Bom Pastor, livre do ‘garçon’ mas sempre ‘petit’, o miúdo ganhou fôlego e apresentou-se nos treinos de captação do Boavista. Caiu no goto de Jaime Garcia, treinador das camadas juvenis do clube do Bessa, e quase ficou. Quase, porque o campo estava longe da casa onde morava, era impensável mandá-lo para lá todos os dias por sua conta e risco.

A família torceu o nariz, negou-lhe o intento. Obrigado a desistir antes de começar, desalentado, cabisbaixo, regressou ao bairro e ao rinque onde pouco depois daria nas vistas ao serviço da colectividade local, não graças a defesas impossíveis mas a um pontapé capaz de amedrontar qualquer adversário. Quando tocava a livres directos, Petit era o eleito: quando era preciso limpar a bola das imediações da área, Petit dizia presente.

De um momento para o outro Petit tornou-se grande, um enorme defesa central, com garra e determinação para dar e vender. Quem o visse correr desenfreado atrás da bola pensaria tratar-se de um grande garfo, tais as energias dispendidas. Puro engano. “Era um pisco. Comia muito pouco, normalmente à pressa. Estava mais tempo no rinque a jogar à bola do que em casa”, refere a mulher, Carla Teixeira, que tantas vezes ouviu os quatro irmãos do marido desbocarem-se sobre as travessuras do rapaz, daquele rapaz irrequieto que só foi feliz quando mudou de posição nas quatro linhas.

O GUARDA-REDES

Entre os eleitos de ‘Felipão’ há mais quem tenha singrado após experimentar várias zonas dentro das quatro linhas. Sorte, talento ou destino, certo é que se tornaram ídolos dos relvados graças à mudança. Muito antes de defender grandes penalidades sem luvas, vestir as cores do leão, adorar rotweilers, jogar Playstation e dominar a mota de água nas praias algarvias, onde costuma passar férias, Ricardo actuava na frente, a ponta-de-lança, olhos postos na baliza.

A alcunha de ‘Labreca’ nem sequer era miragem. A farejar o golo, pontapeava a bola num clube de bairro, ‘Os Unidos’, a escassas dezenas de metros da Rua Manuel Giraldes da Silva, onde passou a infância a afinar a pontaria.

Em frente ao prédio havia um terreno baldio propício a jogatanas. A mãe, Maria Ascensão Pereira, desesperava para que estivesse pelo menos meia hora no recato do lar: “Só ia a casa para comer e para dormir, passava sempre os dias a jogar à bola. Ninguém o conseguia parar em casa”. Um cenário e um hábito em tudo idênticos aos de Tiago, useiro e vezeiro em estragar sapatos em peladinhas desgovernadas na Urbanização Capitães de Abril, cartão de visita patra a cidade de Viana do Castelo.

O vício era tanto que certo dia os pais decidiram tirá-lo do Vianense Sport Clube. Causa: rendimento escolar em queda acentuada. Foi sol de pouca dura. Passado um mês, Carlos Mendes estava a telefonar ao treinador dos infantis, Mário Viana, a perguntar se o filho poderia regressar aos treinos. É que durante aqueles 30 longos dias a esposa entrava no quarto do filho para lhe ajeitar o cobertor, dar um beijo de boa noite, e o miúdo estava sempre a chorar, olhos no tecto e a cabeça longe, no campo do seu contentamento. Sofrimento atroz para uma criança de 10 anos.

'RONALDÃO'

Pior, cem vezes pior, era o comportamento de Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, sempre entre o céu e o inferno. Nome inspirado no antigo actor e presidente norte-americano Ronald Reagan, nem por um segundo deixava a bola parada. Ao sair da escola – reza a lenda que anos mais tarde chegou a enviar uma cadeira na direcção da professora – rumava ao número 23 da Quinta Falcão apenas para largar a mochila ao canto, pegar num iogurte e desaparecer com o esférico debaixo do braço. Nos Álamos, freguesia de Santo António, toda a gente observava a dança frenética, às vezes acompanhada pela bicicleta, só travada para dar uns beijinhos à mãe, Maria Dolores, perita na preparação do seu manjar dos deuses: batatas fritas com ovo e salsichas.

José Dinis, jardineiro da junta e roupeiro do Andorinha, olhava o filho com orgulho, em especial quando o menino armado em rufia desatava aos malabarismos com a bola. O irmão Hugo, uma década a mais no BI, chegou a apostar com um vizinho em como Ronaldo dava 500 toques sem deixar o ‘brinquedo’ cair no chão. O menino só tinha dez anos, ia lá conseguir tamanha proeza, pensou o apostador desprevenido. Pensou mal. Mais daria se fosse necessário. Não foi, e Hugo lá meteu dez contos ao bolso.

Nada nem ninguém parava o benjamim do clã Aveiro. “O Ronaldo era mais do tipo pestinha, tanto comigo como com a Elma, embora se mostrasse reservado e tímido com estranhos ou pessoas a quem teimava não dar confiança. O meu pai até lhes pôs a alcunha de ‘Abelhinha’, porque andava sempre a correr de um lado para o outro”, confidencia Kátia Aveiro, a irmã que na música aproveitou o alvoroço ao redor do irmão para se apelidar ‘Ronalda’.

O NÚMERO 7

Tamanha febre pela redondinha não atormentava familiares de outros futuros craques. Luís Filipe Madeira Caeiro Figo, por exemplo, deu preocupações diferentes. Robusto, nasceu com 4,300 quilos espalhados por 47 centímetros. Naquele sábado, 4 de Novembro de 1972, Maria Joana Madeira não se safara a um trabalho de parto de mais de 12 horas na maternidade alfacinha de São Jorge de Arroios.

Compleição física enganadora, os primeiros dez meses de vida do petiz haveriam de ser passados em constantes viagens ao pediatra. Dores de estômago e de ouvidos não lhe davam descanso, com o choro a ecoar por aquele andar modesto da Cova da Piedade, dar noites mal dormidas àquela família da Margem Sul do Tejo.

Até aos 12 anos, altura em que se inscreveu n’Os Pastilhas, levava uma vida quase sabática, fechado horas a fio no quarto, onde se sentia às mil maravilhas. “Então, Luís, não dizes nada?”, perguntava a tia Genoveva por altura de mais uma visita à irmã.

Luís abria um sorriso ligeiro, soltando de imediato enquanto encolhia os ombros: “Então, não tenho nada para dizer. O que é que eu vou falar?” Poucas palavras continuam a ser o seu lema. “Conheço-o desde que começou a ir para Vilamoura com o Carlos Queiroz e os outros jogadores daquela equipa de sonho que viria a conquistar o Mundial de sub-21 em Portugal, tinha aí uns 16 anos, e ainda hoje o Luís só fala quando acha que tem mesmo de falar. Mas é muito atento a tudo”, completa o grande amigo Paulo China.

A ‘concha’ só a espaços era aberta para dar umas voltas de triciclo junto à mercearia da família, ou para se agarrar ao pai – benfiquista até ao tutano – e passar os fins-de-semana no Estádio da Luz, onde chegou a tentar a sorte. Os encarnados presentearam--no com um rotundo não. Desculpa apresentada: era muito pequenino.

SIMÃOZINHO - ESQUELÉTICO E BAIXINHO

“Tu é que és o Simão?”, indagou José Maria Magalhães àquele pirralho de Constantim que aos dez anos lhe apareceu pela frente a dizer que queria ser jogador da bola. O espanto do professor e treinador da equipa da Escola Diogo Cão, em Vila Real, tinha a sua lógica: como Luís Figo, também ele ficava a dever muito à altura. Aliás, era tão esquelético e baixinho que o diminuitivo lhe assentava como uma luva.

Mas Simãozinho, com pinta de tudo menos de futebolista, poupava nos músculos para esbanjar em técnica e velocidade. “O talento era tanto que entrava pelos olhos dentro. Ao fim de uma semana disputou o primeiro encontro, diante do Desportivo de Chaves. Entrou na segunda parte e fez 30 minutos de sonho, com direito a um chapéu ao guarda-redes e outro golo com a bola cortada, cheia de efeito”, sublinha José Maria. Ninguém no seu perfeito juízo diria que as botas eram emprestadas, e que a bola onde dera os primeiros chutos tinha saído do engenho de Dona Ilda, com uns trapos lá de casa colocados dentro de uma meia.

Habituado à pureza de um lugarejo de mil habitantes rodeado por espaços verdes, daqueles que em meados da década de 80 dariam um bom ‘TV Rural’, provara em meia hora que não são precisos muitos centímetros para fazer um fora-de-série. Nem isso, nem ser feroz ou manhoso.

Paredes meias com o estádio de futebol da freguesia, Ilda Fonseca moldou-lhe personalidade dócil, assente em princípios morais rígidos, doses industriais de carinho, estômago confortado a pataniscas e arroz de feijão.

Tanto carinho que os sonos profundos no regaço da mãe, depois de um dia de estudo, acabavam sempre com um bilhete para o irmão: ‘Mano, faz-me os trabalhos que eu cheguei cansado e fui dormir.’ E o mano Serafim lá metia mãos à sebenta, que o craque em miniatura precisava de umas boas horas na cama. Fotocópia ‘canarinha’ de Simãozinho, o ‘moleque’ Anderson Luís de Souza também curtia uma boa soneca para retemperar o corpo e o espírito.

‘Maradoninha’ no Bonfim Futebol Clube, o mais famoso luso-brasileiro de que há memória foi sempre a imagem da calmaria, ou não tivesse nascido em São Bernardo do Campo, no Brasil, a 27 de Agosto de 1977.

Trapalhão com as palavras nos ‘verdes anos’, ganhou a alcunha de Deco por causa dos tios, que torravam a paciência a tentarem ensinar-lhe expressões menos próprias. Ele iria aprendê-las mais tarde, sem nunca as usar, mesmo quando uma falta grosseira ameaçava magoá-lo a sério. Rebeldia, só uma: as tatuagens. A das costas foi feita pouco antes de viajar para Portugal, à revelia do pai, pouco dado a tal manifestação artística.

Osias e Margareth só desconfiaram que havia algo de errado no filho porque ele, um mês debaixo do calor infernal de Indaiatuba, nunca tirava a ‘t-shirt’. Quando descobriram ficaram atónitos’ “O que é isso? Uma tatuagem?”, perguntou o progenitor, irritado. “Não, pai... Isso sai”, respondeu o adolescente. Não havia nada a fazer.

FUTEBOL - A SALVAÇÃO

Para muitos jogadores que esta noite sobem ao relvado do Estádio de Colónia o futebol foi tábua de salvação face a um destino de tostões, na labuta pesada. Pauleta e Hélder Postiga fintaram tal destino valendo-se da mesma perícia: marcar golos, muitos e de todos os modos. Pedro Miguel chegou a ajudar o pai no ofício de pintor, não de quadros coloridos e rebuscados, vendidos a peso de ouro por um conceituado ‘marchant’ numa galeria de Paris ou Nova Iorque, mas da construção civil.

Era a profissão de Manuel Resendes, homem trabalhador e humilde, muito amigo do seu amigo, a empurrar cedo o mais velho dos três filhos – o único rapaz – para o virote dos rolos e das trinchas. Se não queria agarrar-se com afinco aos livros e ser doutor, haveria de meter dinheiro, que a vida não estava para grandes veleidades.

Apesar do esforço para se adaptar, o pequeno Pedro mostrava pouca perícia no ofício. À pouca vontade juntava-se a mente distante, a pensar no futebol. Queria ser Pauleta, nome pelo qual o pai se tornou conhecido no Micaelense, e Pauleta acabaria por se tornar. Começou aos nove anos, na Comunidade de São Pedro, depois de muito pontapé naquele quintalinho da Segunda Rua do Terreiro, para onde a família se mudara entretanto.

Em frente a casa os carros passavam céleres, ele tinha de se contentar confinado ao espaço diminuto onde desenvolveria a sua arte. Os resultados estão à vista: melhor marcador de sempre da equipa das quinas, a dar razão aos bons augúrios de Manuel. “Um dia o meu marido chegou a casa depois de um jogo do Pedro e disse assim, baixinho para o filho não ouvir: ‘Mulher, se continuar assim o rapaz vai longe’.

Mais do que fé, ele tinha certeza de que o miúdo estava destinada àquilo”, conta Magda Resendes, que naquele sábado de boa memória, 28 de Abril de 1973, trouxe ao mundo o avançado do Paris Saint--Germain. “Sempre foi muito bonzinho, muito meigo comigo e com as irmãs.

Só nunca gostou de perder. Isso é que lhe custa muito”, acrescenta, saudosa daqueles tempos em que o petiz se sentava à mesa para deliciar-se com um bife à regional a abarrotar de batatas fritas, um peixe assado no forno ou, simplesmente, umas queijadinhas de feijão. Religioso, alguma vez terá Pauleta confessado pecados gastronómicos ao Senhor Santo Cristo? Nem mesmo Dona Magda saberá responder.

'HELDÉR ESTUDA!'

Os bifes com batatas fritas também levavam água à boca de Hélder Postiga. Filho de pescador, tinha nas sardinhas assadas outra perdição, tal como um bom prato de tripas à moda do Porto ou um bacalhau ao jeito da mãe, que as origens não se renegam. Mas não era guloso. Dez anos mais novo que Pauleta, o ‘Carteiro’ fã de Marc Van Basten que poucas cartas entregou ao serviço do Tottenham Hotspur tem várias semelhanças com o ‘Ciclone dos Açores’.

A começar pelas origens modestas, passando pelo quintal da casa humilde em Caxinas, para os lados da Póvoa de Varzim, quadrado de eleição para a futebolada, onde partiu vidros e pôs a progenitora doida com tanta algazarra. Nas palavras de Dona Alice, mãe e protectora de todas as horas: “Era uma criança mexida. Não aborrecia mas raramente parava quieto.”

Se a um os golos livraram da trincha, ao outro afastaram-no da faina, das manhas de marés bravias. “Eu e o meu marido sempre dissemos ao Hélder para estudar, que a vida da pesca era muito dura. Ele acatou, embora em pequenino ainda tivesse pensado muitas vezes seguir a profissão do pai. Mas, sabe, ele gostava mesmo era do computador.

À tarde, no intervalo da escola, passava horas agarrado àquilo”, atesta a matriarca do clã Postiga, a imaginá-lo a seu lado, entretido com os jogos que brilhavam no monitor. Ao menos ali estava seguro, longe dos safanões provocados pela ira de um lavrador zeloso da sua horta, que não o deixava atravessar o campo de cultivo para encurtar caminho rumo ao campo do Rio Ave. Coisa do destino, por causa disso, e da insistência de uns amigos, daria nas vistas no Varzim.

' RIPA NA RAPAQUECA'

Nessa altura, o saudoso Jorge Perestrelo gritava a plenos pulmões em cada golo marcado por um dos ‘grandes’ da I Divisão: ‘Ripaaa na rapaqueeeeeca!!!!’ A Sul, numa localidade recôndita junto à Serra de Sintra, ouvia-se outra música. Bono Vox soltava ainda mais alto: “I have run, I have crawled, I have scaled these city walls, These city walls, Only to be with you, But I still haven’t found what I’m looking for”.

Os acordes saíam da aparelhagem de Marco Caneira, fã incondicional do famoso quarteto irlandês, a espalhar a mensagem pelas ruas de Negrais. Novinho, ainda não tinha encontrado o que procurava: um lugar entre a elite do futebol português.

Teria de aguardar mais uns bons anos até o sonho se tornar realidade. Enquanto esperava, o catraio dava trabalho de sobra aos pais, donos de um negócio de leitões, iguaria que nunca enjoou, a par com um arroz de lampreia solto. O entretenimento habitual passava por entrar no supermercado e desarrumar tudo quanto era prateleira, estilo furacão.

“Era tipo pestinha, muito travesso, nunca estava quieto. Não era mau, nem gostava de ser o centro das atenções, mas deixava a sua marca por onde passava”, vaticina a mulher, que o conhece desde tenra idade. Lurdes vivia por perto, vendo o futuro marido derreter-se em carinhos para com a irmã mais nova, Sofia, a quem nunca faltou protecção. Mudou pouco, como aquele lugar onde o tempo parece ter parado.

Continua a ouvir o rock dos U2, dos Pearl Jam, dos Live. Os holofotes da fama jamais lhe cegaram a razão. “É o mesmo rapaz de sempre, agora casado e um pai extremoso. Tem os mesmos amigos – muitos e dados à paródia – que encontra nas festas.” Por estes dias, o comportamento de Marco Caneira assemelha-se ao de Nuno Gomes e Ricardo Carvalho, os dois filhos de Amarante que cedo mostraram tanta timidez quanto arte para tratar a bola por tu.

“O Ricardo, então, era uma coisa por demais, muito reservado e introvertido. Fazia tudo para passar despercebido, e muitas vezes refugiava-se longe dos outros colegas de balneário. Tinha os seus amigos, poucos, mas bons”, revela José Teixeira, na altura vice do clube da região do Tâmega responsável pelas camadas jovens, habituado a tirar--lhe palavras a saca-rolhas.

De 15 em 15 dias o dirigente costumava convidar um atleta para jantar em sua casa. A mulher fazia o repasto, que todos adoravam, mas nem aí o defesa central elegante, de recorte fino e boa pontaria no jogo aéreo estendia a língua para a conversa de circunstância. “O Nuno, que antes de ir para o Boavista já era Gomes aqui, costumava ser mais falador, mas ainda assim muito longe daquela imagem que tem agora. E dizia que era do Porto. Quem diria. Hoje ninguém lhe fale nos ‘dragões’, que ele só vê o Benfica.”

Comportamento estranho, o de Nuno Gomes? Só para quem desconhece a odisseia destes craques em miniatura, que muito correram, lutaram e sofreram rumo ao estrelato, aos contratos milionários e aos palcos da Alemanha. Como Miguel, que despontou no Sporting e se tornou grande no Benfica; ou Maniche, que dos primeiros pontapés na bola com o irmão Jorge Ribeiro, no Bairro da Boavista, em Lisboa, passou para o Benfica e só foi feliz de azul-e-branco.

Clubites ou rancores à parte, que na Selecção só o presente interessa, todos acalentam um sonho que começa a ser construído às 20h00: serem campeões do Mundo.

O capitão da selecção portuguesa nasceu pesadinho, embora a robustez até fosse enganadora. Durante o primeiro ano, Luís Figo passou a vida numa correria entre casa e o pediatra devido a dores de estômago e de ouvidos. Recuperou sem sequelas e tornou-se um craque graças a muito trabalho e dedicação à modalidade que o pai o ensinara a amar.

É que Figo passava os fins-de-semana no Estádio da Luz, tal o benfiquismo do progenitor. Por lá tentou, até, a sua sorte, mas era baixinho e não ficou. O Sporting pouco se importou com a falta de centímetros...

Perde-se por picanha ou cabrito assado. Chama-se Anderson Luís de Souza mas todos o conhecem por Deco. Nasceu a 27 de Agosto de 1977, em São Bernardo do Campo, localidade do Interior do estado de São Paulo, e revelou-se no Guarani, onde o seu talento deu brado. Hoje é o motor da equipa lusitana.

Marco António Simões Caneira era o terror de Negrais. Em pequenino adorava deixar a sua marca por onde passava. Como no supermercado, onde se entretinha a desarrumar as prateleiras. Acabou por afrouxar com a idade mas não se livrou de ter um filho, Francisco, que nasceu igual no feitio.

Dividido muito cedo entre as salas de aula e o futebol, onde deu nas vistas com a camisola negra da Escola Diogo Cão, nos dias em que aparecia muito cansado em casa costumava pedir ao irmão Serafim que lhe fizesse os trabalhos.

Estreou-se n’‘Os Unidos’ como ponta-de-lança, e até tinha jeito para marcar golos. Um dia empurraram-no para a baliza. Torceu o nariz mas aceitou. Foi a sua sorte.

O pai colocou-lhe a alcunha de ‘Abelhinha’ porque o catraio nunca parava quieto. Os irmãos Kátia, Elma e Hugo eram as principais vítimas das suas travessuras.

Nuno Ribeiro virou Gomes ainda em Amarante, por causa do cabelo copiado ao seu ídolo portista. Era parco em palavras e só soltava a língua quando se deliciava com os pratos confeccionados pela mulher do treinador.

De tanto treinar num quintalinho dos Açores, Pedro Miguel afinou a pontaria e tornou-se matador diante dos guarda-redes adversários. Ainda não abria os braços para voar entre os centrais mas já enchia a família com todos os mimos

No Mónaco ganhou a alcunha de ‘Ministro’ por causa dos gostos refinados no que toca à indumentária, que vêm de tenra idade. Já em criança, Francisco Costa adorava mostrar a roupa nova pelas bandas de Chelas. Desde então só o sonho mudou: dantes queria ser engenheiro electrotécnico.

Era tão tímido, tão tímido, que até no balneário se refugiava no seu canto. Mas já se lhe adivinhava grande futuro.

Enquanto os colegas de selecção treinavam sozinhos ou com amigos, Maniche teve companhia especial nas futeboladas: o irmão Jorge Ribeiro, também ele jogador profissional.

Meio travesso, meio calmo, o defesa azul--e-branco fez-se cedo um homezinho, graças à rédea curta da educação dada pelo pai, que nunca lhe permitiu grandes loucuras. E das poucas vezes que saiu da linha recebeu uma recompensa à altura: duas valentes ‘sticadas’ com uma bomba de encher pneus de bicicleta que acabara de destruir. Nunca mais voltou a repetir tamanha ousadia.

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