Nos morangais de Huelva, a mão-de-obra andaluz, marroquina e portuguesa foi substituída por brancas mãozinhas de Leste. Ali, 95 por cento dos trabalhadores temporários são do sexo feminino. No concelho de Palos, aos 8500 habitantes juntaram-se oito mil mulheres, loiras e de saltos altos.
Virtudes é uma quarentona de pele queimada, cabelos mal pintados pelo loiro da tinta. De pé, no meio dos 12 hectares de morangal, sem chapéu que a proteja do sol do meio-dia, organiza com a precisão de um pastor a progressão do trabalho das raparigas que se agacham para colher o morango. “As minhas são boas chicas, muito sossegadas, muito religiosas. Acho graça às mulheres que dizem que as temporeras desencaminham os seus homens. Se os maridos procuram outra, é porque encontram na rua o que não têm em casa. Ao meu, tanto se lhe dá.”
Bartolo, o marido dela, escuro e enrugado pelo campo, sorri. Ele acabou de chegar numa carrinha branca e parece indiferente às raparigas, aos calções, decotes e às mangas cavas que mostram a pele corada por quase seis meses de trabalho ao ar livre na Andaluzia.
A 60 Km da fronteira portuguesa, a paisagem humana mudou drasticamente quando em 2000 uma cooperativa de Palos resolveu ir contratar à Polónia 600 mulheres, ao abrigo da política laboral do governo de Madrid que incentiva a contratação no país de origem.
Há cinco anos, os primeiros autocarros cheios de mulheres fizeram quilómetros, desde a Europa de Leste até à vila onde rezou Cristóvão Colombo antes de descobrir a América.
O morangal de Palos nunca mais foi o mesmo. Naquela e noutras áreas de produção do distrito de Huelva, o contingente de polacas, e também de romenas, engrossou sob o pretexto de que as europeias de Leste têm melhores mãos e dão menos problemas que os magrebinos, até então maioritários no trabalho do morango.
Em quatro anos, o número de contratadas cresceu 35 vezes. Em 2004, 21 mil mulheres estrangeiras trabalhavam na maior região espanhola de produção de morango.
O desassossego só comparável àquele provocado pelas suecas em Torremolinos, nos anos 70, levou a televisão espanhola a Palos de La Frontera. As donas de casa disseram então de sua justiça e a batalha dos morangos estalou em frente às câmaras de TV.
À porta de um supermercado, que anuncia pão quente, a dona varre o passeio. Ela foi uma das entrevistadas. “Que Deus me livre de falar mais nisso. Abri a boca para a televisão, disse o que me apeteceu e iam-me matando!”
PARTIR A LOIÇA POR CAUSA DAS POLACAS
“Muchos, muchos”, diz o assessor do presidente de Câmara de Palos de La Frontera, sentado atrás da secretária, no primeiro andar do edifício da edilidade. Cristobal Rojas semicerra os olhos quando ri com gosto, ao referir-se à história que Almodóvar ainda não se lembrou de filmar. A chegada das polacas para trabalhar nos morangais alterou a estabilidade doméstica de uma pacata e tradicional vila da Andaluzia. O silêncio das casas foi interrompido por zangas de partir loiça. “Es la puríssima verdad!”
São 11h30 da manhã. Cá em baixo, no largo da câmara, passam algumas mulheres às compras. Palos está quase deserta. Na Cruzcampo, um snack-bar que anuncia vender churros, seis homens encostam-se ao balcão por debaixo dos presuntos suspensos. O dono faz o mesmo sorriso zombeteiro de Cristobal Rojas: “Sim, há muitas separações por causa das polacas. É muita mulher numa terra tão pequena! Agora não se nota, mas daqui a bocado verá. Elas estão nos campos aqui à volta. Palos está cercado.”
O perímetro urbano da vila confina com os armazéns das empresas de morangos, depois são os morangais, a perder de vista. Plantas rasteiras que produzem o ouro vermelho, em campos agora salpicados por melenas loiras.
No morangal de Virtudes e Bartolo, o dia de trabalho está a terminar. Lá está Eva de 26 anos. Ela acabou o curso de economia, fez contas à vida e há três anos que vem às campanhas agrícolas andaluzes. No morangal ganha 31,50 euros por dia, na Polónia para os mesmos trocos precisava de cinco dias.
Eva equilibra à cintura duas caixas de morangos, uma de cada lado, carrega-as para a camioneta de caixa aberta, onde as recebe um rapaz espanhol. Atrás dela, outras raparigas, suas conterrâneas, formam fila indiana, acartam também a fruta. Todas são muito novas. “Habla Eva!” (Fala Eva!) Eva ri do incentivo masculino e num castelhano arranhado esclarece, apontando o rapaz na camioneta: “Aquele não é meu namorado, ele tem noiva e vai casar. O meu é o Miguel. Sempre que estou aqui, de Janeiro a Junho, namoramos.”
A TARDE DAS POLACAS
A jorna nos morangais termina à hora que se inicia a sesta espanhola. A partir das 14 horas, as estradas que levam a Palos de La Frontera, Moguer e à praia de Mazagón começam a encher-se de mulheres que caminham na berma da estrada alegres como pardais, que param de quando em vez para esticar o polegar e pedir boleia. Não esperam muito.
A maioria dirige-se a Palos. A tarde na vila é das polacas. Elas vêm às compras, a passeio, desentorpecer as pernas e endireitar os rins que se dobram toda a manhã sobre os morangueiros. As mais novas arranjam-se, de saltos altos e com a indumentária que o tempo polaco quase nunca propicia.
Sofia vem de braço dado com duas amigas. Ela parece a Britney Spears – 23 anos embrulhados numas calças de ganga e numa blusinha de alças lilás, passo firme em cima dos saltos. Há três anos, Sofia veio pela primeira vez com a família de Stanowice para apanhar os morangos em Palos. Depois voltou mais duas vezes sozinha. “Queria viver aqui, mas tenho os meus pais lá, na Polónia. Isto é muito bom, ganhamos dinheiro, há sol, à noite vou aos bares e à discotecas.”
À esquina da rua, as amigas riem, não percebem patavina de castelhano mas, depois da tradução feita pela amiga, abanam a cabeça; partilham da mesma opinião de Sofia sobre os rapazes de Espanha. “Eles mentem muito. Se vêem uma polaca querem logo sair com ela, dizem que não têm noiva e contam a todas a mesma história.”
Sofia e as amigas seguem em risota pelas ruas, dobrando esquinas, ziguezagueando pelos passeios, travando o passo quando o condutor de um jeep lhes atira dois piropos, metendo conversa malandra com o rapaz que tira as grades da montra de um café na Praça Pilar Polgar, a primeira presidente de câmara.
HISTÓRIAS DE AMOR
A Marea Disco é a discoteca da noite de Palos, fica na zona dos armazéns de morangos, entre os campos onde trabalham e residem as estrangeiras e o perímetro da vila. Juan Antonio Manuel, de 17 anos, não tem dúvidas – é lá que à noite se encontram as ‘guapas’.
Juan é um rapaz grado, de franja dividida em duas. O seu pai tem dez hectares e emprega polacas, romenas, columbianos e marroquinos. De braços cruzados, Juan papagueia o discurso conservador que rotula as polacas de mulheres festeiras. “Elas gostam de beber e de se exibir. São mais soltas que as espanholas. As minhas trabalhadoras não saem do campo e, por isso, não há problemas com elas.”
Pepe e Faustino Romero encostam-se à moto parada à porta do café, donde saiu Juan Antonio. Os irmãos têm 16 e 17 anos e zombam do amigo que está acompanhado por uma jovem romena de cabelos negros e lisos, olhos muito pintados. “Muchos, muchos problemas. As mulheres daqui não gostam delas porque as polacas querem é casar com os homens da terra”, explicam em coro Pepe e Faustino, negando com a veemência de Pinóquio qualquer interesse nas forasteiras. “As espanholas são melhores. E nem todas as polacas são guapas.”
Cerca de 30 por cento dos casamentos realizados no ano passado em Palos foram entre espanhóis e estrangeiras. “Mais dois anos e os infantários vão estar cheios de crianças loiras”, diz Cristobal Rojas, o assessor da Câmara que lembra o caso de amor de Pepe Ponce.
No polidesportivo local, Pepe, um funcionário da autarquia, percorre o caminho que borda o campo onde adolescentes jogam basquetebol. “Não, não quero mais fotografias, nem nada, estou farto de contar a minha história que é muito simples.” Pepe conheceu a sua mulher há quatro anos na primeira leva de trabalhadoras de Leste para os morangueiros de Palos. O casal viveu dois anos e depois casou. A polaca está grávida, espera o primeiro filho. “Foi uma história de amor normal, só que com morangos. Não tem nada que saber.”
NUNGUÉM PEGA NA LINGERIE
São 17h00 da tarde em Palos de La Frontera. O comércio desperta da sesta. Desde há minutos que à porta de minimercados, mercearias, bazares, retrosarias, se juntaram magotes de mulheres. Parece o primeiro dia de saldos em lojas caras.
Ao lado do concorrido minimercado Dia, a Floresteria Rita e Lencería Madame Loli, uma loja comprida que junta no mesmo espaço flores e roupa interior de senhora, está às moscas. Mariloli encosta-se ao balcão, por cima da sua cabeça estão pendurados soutiens, cintas e cuecas de renda atrevidota. “No primeiro ano, tudo correu bem. No segundo começou-se a falar de lares desfeitos por causa das polacas. Pouquito ainda. Agora está por demais, muitas separações. E não há mais porque a maioria das mulheres vê o homem chegar tarde a casa, mas à conta das aparências …”
Mariloli, mulher baixinha, mira embevecida o marido, Paco, que parece um tocador de flamenco, espadaúdo, moreno, guedelha grande, camisa aberta até à barriga. “Para mim, o produto nacional é que é bom”, jura Paco, rindo-se da confusão polaca junto à sua porta. Mariloli olha confiante o seu homem, enquanto explica a razão do frenesim amoroso em Palos. “Os que caem na conversa das polacas são homens na idade difícil, 40, 50 anos. Não podem ver umas pernas. Elas passam na rua e dizem: ‘Ei, tolo, anda que a tua mulher perdoa’. E pronto, está o caldo entornado.”
Uma empregada da loja põe em cima do balcão um arranjo de açucenas. Mariloli está desconsolada, as polacas não compram as rendas sexy, pretas e vermelhas; nem isso, nem mais nada. “Elas entram, miram e vão embora. Até tenho de estar com quatro olhos, não vá marchar alguma coisa.”
A sete quilómetros da loja de Mariloli, a praia das Dunas está cheia de raparigas loiras deitadas ao sol contra as marcas dos calções e das blusas de meses de trabalho entre morangueiros. Deitam-se em biquíni, entre o lixo do fim da época baixa, indiferentes aos homens morenos que sobre elas se debruçam numa tentativa de meter conversa.
Ali chega Rodica, morena de cabelo curto e buço sobre os lábios finos. Ela veste calças de fato de treino e uma t-shirt com as mangas arregaçadas à camionista. Rodica não faz parte da batalha dos morangos em Palos de La Frontera. “Tenho saudades da Roménia, mas gosto muito do trabalho nos morangueiros e dou-me bem com toda a gente. Mesmo com as espanholas.”
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