page view

No meu tempo já era

‘Meia-noite em Paris'. Woody Allen regressa com um filme sobre regressos ao passado. Um desejo que serve tanto o enredo como o próprio Allen

25 de setembro de 2011 às 00:00

Woody Allen tem um traço que o distingue de todos os outros. Entre-se na sala com o filme a meio, ou vejam-se apenas os créditos finais, reconhece-se o seu trabalho. É um autor. Tal como os irmãos Marx testavam primeiro os seus números ao vivo em teatros, Allen teve uma intensa experiência de escrita televisiva prévia à sua carreira de cineasta, o que lhe permitiu exercitar-se, esgrimir um estilo, errar sem complexos.

Alguns dos denominadores comuns das suas longas-metragens passam pela magra margem para a contemplação, pelo desfilar de números e caricaturas como na revista e no Vaudeville, pelos ingredientes clássicos de cinema como enredo e ritmo, pela expressão preferencial através das palavras (mais do que imagens), pela destreza na escrita humorística, sobretudo nos diálogos. Depois, há aquela benevolência que o realizador sempre procura no público.

Allen usa o cinema como um confessionário, na esperança de que a audiência o perdoe. Humaniza todos os pecados, desde dúvidas a incertezas, mesquinhez, neurose, narcisismo. Consegue sempre manipular o público de forma a que o protagonista que transgride – na realidade ou na fantasia – seja não apenas absolvido, como o preferido.

Todos juntos, os seus filmes formam uma auto-ficto-biografia contínua, alternando a presença física de Woody com a presença fantasmática das suas palavras repetidas por outros actores. O resultado é paradoxal, pois acaba por se tornar difícil conhecer a máscara atrás das máscaras. Pacato ou perverso? Senil ou dotado de uma renovada graça? Hilariante ou de um humor repetitivo e estafado?

CONTRASTES

‘Meia-noite em Paris’ é um bom exemplo dessas antinomias. Aliás, a sua popularidade, depois das tragédias ‘Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos’ e ‘Tudo Pode Dar Certo, revela-o. Neste último trabalho, Allen tanto parece repetir-se, relativamente ao ‘Rosa Púrpura do Cairo’, ‘Balas sobre a Broadway’ ou ao seu conto ‘The Kugelmass Episode’, como parece troçar de si próprio, da sua obsessão pelo passado, o seu pró-europeísmo, o seu romantismo insaciável, a sua obsessão pelos triângulos amorosos ou por Paris, com os seus quiosques, cafés e tom boémio à grande.

Exacto. ‘Meia-noite em Paris’ é mesmo mais um filme de Woody Allen, daqueles que faz com que muitos fãs sintam nostalgia pelos seus primeiros trabalhos, esses sim, tidos como originais. Mas se esta longa-metragem pergunta em que época gostaríamos de viver (para a maioria das pessoas será a que antecede o seu nascimento), essa melancolia pelo início da carreira cinematográfica de Allen só aproxima quem a cultiva do realizador. E também gostaria de regressar ao seu passado.

RESUMO

Um argumentista de cinema com pretensões a escritor viaja para Paris com a noiva e os pais dela. Descobre uma forma de regressar ao passado e conhecer os seus ídolos literários.

Realizador: Woody Allen

Intérpretes: Owen Wilson, Rachel McAdams e Kathy Bates

CINEMA: ‘A AUTOBIOGRAFIA DE NICOLAE CEAUSESCU’

Eis um filme rigoroso e meticuloso sobre a ascensão e queda de um ditador, a passagem da realidade à megalomania, do foco à desproporção e elefantíase. Tudo através da compilação de milhares de horas de imagens oficias. É obra.

Resumo: O filme usa as imagens reais que Nicolae Ceausescu, antigo presidente da Roménia, mandou filmar enquanto era o rosto do regime comunista .

Título original: ‘Autobiografia lui Nicolae Ceausescu’, de Andrei Ujica

CINEMA: ‘VÉNUS NEGRA’

Trata-se da história de uma mulher da tribo khoikhoi que foi exibida nos salões europeus e usada para legitimar o racismo e a escravatura. Ou seja, trata-se da brutalidade e da barbárie entre nós, desde a velha e nova violência ao antigo e actual voyeurismo.

Resumo: Baseado numa história verídica, o filme narra o percurso de uma mulher africana, levada para a Europa para ser exibida como uma criatura exótica no início do século XIX

Título original: ‘Venus Noire’, de Abdellatif Kechiche

Intérpretes: Yahima Torres, Andre Jacobs e Olivier Gourmet

CINEMA: ‘EU VI O DIABO’

Um psicopata perverso mata a namorada de um polícia que jura vingança. Os papéis invertem-se e o espectador passa o tempo a ver o diabo e o seu reflexo, que afinal existe, numa sucessão de cenas de horror disruptivo onde a moral foi a primeira vítima. Mas continua rainha no cinema ocidental.

Resumo: Filme de acção sul-coreano, cruza a história de um assassino violento com a do polícia que o persegue

Título original: ‘Akmareul Boatda’, de Jee-woon Kim

Intérpretes: Byung-hun Lee, Min-sik Choi e Gook-hwan Jeon

FUGIR DE...

SESSÕES ÚNICAS

Insuportável esta moda de exibir filmes num só dia. A coisa estreia e eclipsa-se na mesma data, género concerto. Já aconteceu, por exemplo, com Godard e Trier. Na semana passada "estreou" (tem mesmo que ser entre aspas) o filme de Cameron Crowe sobre os Pearl Jam. Alguns dirão que mais vale passar um dia do que nenhum. É. Mais vale um copo de água em três semanas do que morrer à sede.

Tem sugestões ou notícias para partilhar com o CM?

Envie para geral@cmjornal.pt

o que achou desta notícia?

concordam consigo

Logo CM

Newsletter - Exclusivos

As suas notícias acompanhadas ao detalhe.

Mais Lidas

Ouça a Correio da Manhã Rádio nas frequências - Lisboa 90.4 // Porto 94.8