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O mirone e a Medusa

Todo o espectador de cinema é um voyeur. Acordado na escuridão, vê o outro na tela, perscruta rostos, corpos, histórias, privacidades. A uma distância segura. E muitos filmes sobre voyeurismo são metáforas sobre a realização e o público. Metáforas conseguidas quando, nomeadamente, conseguem fazer do espectador um cúmplice da curiosidade do personagem mirone, mostrando como ele próprio, ao sentar-se na sala de cinema, está a espreitar pelo projector-fechadura. Um desses filmes é ‘Peeping Tom’ de Michael Powell (1960), sobre um homem que filmava as suas vítimas a morrer. Um trabalho censurado talvez porque, justamente, confronta o espectador com o facto de não estar apenas a ver mas também a participar, mesmo que com sentimentos ambivalentes.

07 de dezembro de 2008 às 00:00

‘Quatro Noites com Anna’ (Jerzy Skolimowski) aborda igualmente o voyeurismo, ainda que fique muito aquém de ‘Peeping Tom’. Parte-se duma história comum, inspirada numa pequena notícia verídica, sobre ‘Léon’, um homem pobre, solitário e no limite da oligofrenia, que vive obcecado com a rapariga da porta ao lado. Existem pouquíssimos diálogos e mistura-se thriller, drama e comédia. Resultado: ‘Quatro Noites com Anna’ é um filme quase mudo que cruza ‘Mr. Bean’ com ‘Psycho’.

‘Léon’ assistiu ao estupro de ‘Anna’ por um encapuzado. Depois do violador fugir, ele foge também, abandonando-a naquela situação. E foge porque ela olha-o nos olhos, fixa-o, o que lhe é insuportável. Após a morte da avó, a única pessoa a quem estava ligado, ‘León’ entra à sorrelfa no quarto de ‘Anna’, enquanto ela dorme. Durante quatro noites que parecem uma sucessão das fases do jogo amoroso, desde sedução ao compromisso. Terminando com a desilusão.

O filme leva a que o espectador ignore a transgressão de ‘Léon’ que se esconde como se tivesse o anel de invisibilidade de Giges. A assistência acaba por torcer para que ‘Anna’ não acorde e para que ele nunca seja descoberto. Afinal, se for apanhado será como se o próprio espectador fosse surpreendido a espiar. Mas o melhor desta fita é mostrar outro lado do voyeurismo: para ‘Léon’, o olhar do outro é um olhar de Medusa. Mortal. O protagonista, refém duma atroz timidez, só se aproxima quando ela não o pode ver. Teme a consciência do outro e, tal como o protagonista de Nabokov, prefere uma ‘Lolita’ adormecida. |

CYBER-MIRONE

‘Peeping Tom’ criou um subgénero no cinema. ‘Estranhos Prazeres’ (Kathryn Bigelow, 1995) é a versão cyberpunk do filme-mirone, que confirma a tendência do cinema em desfrutar do sofrimento da mulher como motor da intriga. E como trauma/prazer do espectador.

ESPIÃO APAIXONADO

Kieslowski, um outro cineasta polaco, melhor conhecido pela trilogia ‘Azul, Branco e Vermelho’, realizou ‘Não Amarás’ (1988). O tema é também o voyeurismo. Numa versão menos cómico-infantil, embora seja um adolescente de 19 anos que espia uma mulher de trinta e muitos.

TORRE DE VIGIA

O protagonista de ‘Monsieur Hire’ (Patrice Leconte, 1989) é um mirone particular, mais interessado no quotidiano da mulher que observa do que na sua intimidade. Acaba por ser ele próprio o espiado, quer pela polícia, quer pela vizinhança. E pelo espectador, claro.

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