Trouxe da Alemanha o saber de um afinador. Um dia pôs um anúncio no ‘Diário do Sul’ e descobriu que o Alentejo estava inundado de pianos a precisar da sua ajuda. Nunca mais se foi embora, nem quando os incêndios do ano passado lhe queimaram doze pianos e 450 oliveiras – sim, porque Ulf Ding é também agricultor.
Os pianos de António Vitorino D’Almeida, Olga Pratz, Bernardo Sassetti, Mário Laginha, entre outros, conhecem-no bem. Ulf Ding – o alemão de nome musical que, a partir de Montemor-o-Novo, cruza o País com a sensibilidade de músico e o engenho apurado de construtor de pianos – tem um objectivo primordial quando cuida dos instrumentos. “Gosto muito de tocar e quando estou a trabalhar para outros pianistas o meu objectivo é que o piano soe o melhor possível e que o pianista toque o melhor possível, para criar esse momento especial que é a música.”
Um construtor não precisa saber tocar para fazer um bom trabalho, mas sente que o facto de ser músico aumenta a confiança que os clientes têm em si. “Tocar piano faz parte da minha ideia do piano como um todo. São duas coisas muito ligadas e parece-me que isso passa para os clientes. Sinto mais confiança.”
MUDAR DE VIDA
Começou tarde a tocar piano. Já tinha dezanove anos e por isso dedicou-se a sério. “Tive três professores muito bons e fiz o Conservatório.” Entretanto, em 1987, os quatro irmãos Ding juntaram-se e compraram a quinta das Artosas onde hoje reside. “Surgiu-me a ideia de mudar a vida e vir para Portugal. Nesse sentido senti necessidade de saber como tratar o meu instrumento. Não sabia como seriam os serviços aqui e queria ser auto-suficiente.”
Durante um estágio de seis meses com o amigo que fazia a manutenção do seu piano compreendeu a complexidade da construção. “Não tem tanto que ver com a afinação, mas com o funcionamento da mecânica. Quando a mecânica não funciona, o pianista também não consegue passar os sons que pretende. Quando percebi isso decidi fazer o curso de construção de pianos, durante três anos e meio.”
Terminado o curso, em 1992, carregou um camião com os seus haveres e num mês estava em Portugal. Arranjar trabalho não foi fácil – “a dificuldade de estar num país estranho, à partida, foi não saber a língua, não conhecer o mercado e, profissionalmente, não saber como fazer os contactos”. Inicialmente trabalhava para a Alemanha, fazendo restauros de pianos que trazia à dezena de cada vez e depois levava de volta. À medida que ia aprendendo português pôs – finalmente – um anúncio no “Diário do Sul”.
DEDICAR A VIDA AO PIANO
O anúncio no jornal resultou numa revelação dupla – a de que no Alentejo há muitos pianos e a de que precisam de cuidados urgentes. “Continuo a surpreender-me porque muitas vezes são pianos muito bons, grandes. Agora sei que costumavam estar nos montes, onde os filhos da família aprendiam a tocar. Existem bastantes pianos particulares que durante anos ou décadas não foram tratados.”
Ding percebeu rapidamente que só na região há um “mar de trabalhos”. Além da recuperação dos pianos, as condições climatéricas ditam que tenham de ser afinados bianualmente. “Isso tem a ver com as extremas amplitudes térmicas – o Inverno, muito húmido, e o Verão, muito quente e seco. São os períodos em que convém afinar o piano para adaptá-lo a esse tipo de clima.” O facto é que, só no Alentejo, tem actualmente entre 40 a 50 clientes particulares, mas a Piano Ding – a empresa que criou em 1996, também foi conquistando mercado no resto do País. “Há poucos afinadores em Portugal. Em termos de construtores de pianos, salvo erro, sou o único que tem a formação teórica.”
A vida dele é dedicada ao piano, o que o inspira é criar condições para que a música possa acontecer. “Quando arranjo uma peça antiga, que já não toca, o objectivo é o de que no fim seja possível fazer outra vez música naquele instrumento.”
MÚSICO 'ALEMENTEJANO'
As várias competências que reúne viabilizaram uma experiência única, quer para o músico Ulf Ding quer para as populações das aldeias onde, em 1996/97, deu recitais de música clássica subsidiados pela Secretaria de Estado da Cultura. “Foi um trabalho pioneiro. Aqui mais uma vez resultou o serviço completo de levar lá o piano, afiná-lo e tocar um concerto. Foi muito gratificante para mim.”
Ding sempre teve vontade de tocar outra música além da clássica. “A clássica, no fim de contas, é uma reprodução. Deixa muita liberdade ao pianista em termos de interpretação, é uma grande escola técnica, de gosto musical e de desenvolvimento emocional. O que os grandes mestres conseguiram de facto foi expressar emoções com aquilo que compuseram.” Mas “criar momentos musicais a partir de nada, específicos de um momento” seduziu-o e pensa que é uma experiência “indispensável para qualquer músico”.
No seu caso, aconteceu de forma natural com o desenvolvimento da empresa e a construção da própria casa. “O tempo disponível para praticar música clássica foi ficando cada mais escasso. Foi o que me levou a entrar mais pelo caminho da improvisação e pelo jazz.” Desde então é membro de vários grupos. O primeiro em que participou foi o Trio Dó Maior a que se seguiu a criação do Mãos Livres – que integra guitarra portuguesa, piano e percussão – na origem do qual está um disco de António Vitorino d’Almeida e Carlos Paredes.
O projecto que mais o absorve, porém, é o dos Sons de Cá que tocam “uma mistura entre música tradicional, jazz e clássica”, que classifica como “música do mundo”. “Mesmo sendo alemão assumo-me alentejano – até me chamam alementejano”, explica-nos.
A DOR MAIOR
A Quinta das Artosas, onde vive, esteve integrada numa herdade onde, desde o século XVI, monges agostinhos produziram o necessário para bastar-se em termos alimentares. A estrada nacional e a auto-estrada asfixiou-a um pouco, mas mantém preservadas boas condições para a agricultura. Esta é mais outra das facetas do músico, que ainda arranja tempo para ser professor de Estudos Musicais na escola de técnicas de som em Montemor. “Já aqui fizemos agricultura biológica. Ultimamente, reduziu-se um bocadinho a actividade – com o nascimento da minha filha, há dez meses. Viver num espaço rural, também passa por assumir as responsabilidades inerentes. Quando me mudei da Alemanha para aqui, um dos aspectos fortes era o de conseguir produzir os meus próprios alimentos de uma maneira mais saudável.”
O Verão quente de 2003, que também trouxe o fogo até aqui e enegreceu a paisagem, tornou, porém, a tarefa mais difícil. Além de avultados danos materiais, a dor maior para Ulf foi a perda das árvores consumidas pelas chamas. “Ardeu-me uma arrecadação com doze pianos e material. Guardei os quadros ardidos para um dia, talvez, fazer uma exposição. Foi um dia horrível, 2 de Agosto! Fora os danos materiais – pianos, alfaias agrícolas, tractor, uma mota e uma roulotte – arderam à volta de 450 oliveiras, centenárias – e algumas das quais com quase dois mil anos - que foi a dor maior. Pianos, podem comprar-se com dinheiro.”
Entretanto, a água, que brota abundante das nascentes da quinta, e a da chuva cumpriu o seu papel regenerador e a chegada da Primavera ajudou a apagar as marcas do fogo no terreno, limpo por Ding.
“Vê-se tudo a rebentar… Vamos reflorestar o olival através das raízes antigas. Nestas árvores, que já eram muito antigas, as raízes têm uma força brutal. Há, à volta das raízes, rebentos. O grande trabalho é escolher quais vão ficar”.
Ulf Ding assume que “estes são os aspectos do alemão que veio para Portugal e que há doze anos atrás não comia azeitonas, ou não gostava muito, e entretanto já não pode viver sem elas. Também tem que se dizer que este vinho alentejano muda o sangue de um homem”.
Ulf Ding restaura pianos. Históricos ou não, começa por curar-lhes a alma. “No restauro começa-se pela alma do piano, o tampo harmónico, que vai transmitir o som. Acontece muitas vezes que, com o tempo e as mudanças de clima, o tampo racha. O que faço é fechar as fendas com a mesma qualidade de madeira.”
A primeira coisa a fazer é compreender se a construção do piano e o estado dele justificam o restauro. A imutabilidade do piano – há mais ou menos 100 anos que se encontrou a forma definitiva do piano acústico – facilita depois o trabalho. “As peças que arranjo hoje, quer em termos de materiais quer de medidas, são as mesmas dessa época.”
Em Portugal, é autor de dois restauros muito importantes: o de um Pleyel de 1845, que está no Palácio de Queluz e de um Boisselot, do início do século XIX, exposto no Museu da Música.
O Pleyel, de que fez o restauro geral, “é um piano de uma edição muito elaborada, com muito artesanato à volta, muitas peças de latão. Era o piano da rainha. Como móvel é muito especial e foi encomendado especialmente a Pleyel. Esteve 30 ou 40 anos parado no Palácio de Queluz”. O outro piano, de que restaurou a parte acústica, foi trazido por Franz Liszt para Portugal quando aqui deu uma série de recitais. “É um piano com muito que contar. Foi mais especial para mim por causa da minha história pessoal. O Franz Lizt é sempre um dos grandes professores para qualquer pianista clássico. Saber que o Lizt tocou naquele piano, ainda hoje me arrepia.”
Quanto tempo demora um restauro? “Um piano 'normal' demora dois ou três meses, mas um piano desses demora sempre, pelo menos, o dobro. É um trabalho muito especial.”
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