Manuel Pita e o filho, Zé, ainda cuidam do Casal da Maceira, de onde saiu há quatro anos a menina guardadora de sonhos
Há um quadriculado imenso de tons de verde e de castanho que arrasta o olhar pelo vale entranhado na Serra da Estrela. Ali, na esquina do fim do Mundo, sempre a descer por caminhos de cabras que serpenteiam as encostas e se estatelam no leito com destino aos casais, onde resistem casas telhadas a colmo, um jornalista perguntou há 10 anos: "Ainda há pastores?"
A história de Casais de Folgosinho, dos Pita, do pastor Hermínio e de Rosa, ‘a Brava’, espalhou-se por festivais de documentários, de Itália ao México, passando pelo Brasil, arrebatando prémios. E a vida destas gentes e coisas, derramada em ecrãs de televisão e cinema, desembocou na ‘spin-off’ da menina que queria arrancar-se ao isolamento e estudar. Uma reportagem da SIC registou o regresso às aulas, há quatro anos, em Gouveia. O documentário de Jorge Pelicano, lançado em 2006, respondeu à inquietação de um tempo que acabará consumido por si próprio.
"Não há novos e os velhos vão morrendo". E a reportagem ‘Rosa Brava’ emitida no ano seguinte, construída em co-autoria com Pedro Coelho, pintou em voz e imagem um sonho concretizado de uma criança guardadora de sonhos e de vacas, ou cabras. Hoje, outro jornalista perscruta o vale de Casais de Folgosinho e pergunta: "Podem dois filmes mudar uma vida?".
ZÉ ESCONDE-SE
A Casal da Maceira pode chegar-se e não ver vivalma. Na paisagem deste, como de outros casais, contrastam os painéis solares. Ninguém é esperado, ninguém sai ao encontro dos forasteiros. À segunda tentativa, Zé, 18 anos, dois mais novo do que a sua irmã Rosa, é descoberto atrás de uma moita, a espreitar, como David Attenborough num dos seus famosos documentários. E sai ao encontro da conversa dos jornalistas com a sua mãe, Maria Pita. A mulher, 56 anos, surge como na televisão, um déjà vu. Os mesmos gestos, as mesmas palavras, as mesmas interjeições. E a mesma opinião sobre como a filha Rosa devia ter encarreirado a vida.
"Eu disse: não vai, fica em casa. Mas disseram-me: ela vai, tem a liberdade de ir. Fui obrigada a deixá-la ir. Ela lá foi, enfadou-se, ajuntou-se e agora já não vai à escola. Tanta coisa para quê afinal?" A pergunta de Maria Pita, com mais de constatação do que de razão reclamada, interroga para além do vale. "Foi uma grande chatice. A guarda veio cá algumas vezes. No início quantas vezes fomos nós a Gouveia, ao Tribunal, por causa dela?
O TEMPO POR PASSAR
O tempo passou pouco por Maria Pita e as ideias, essas, permaneceram imutáveis. "Ela já tem idade. Uma mulher ali na escola. Eu até me envergonhava de lá andar", disse em ‘Rosa Brava’. Preferia que a filha tivesse ficado cá a ajudá-la? "Pois preferia. Mas quem é que mandava? Em primeiro, vinham aí muitas coisas boas... tinha de a deixar ir. O irmão também não foi à escola e já a havia". A única coisa em que concede é que Rosa "aprendia bem". A menina tinha estudado oito anos até concluir o 1º ciclo do ensino básico, em Folgosinho.
Agora é Zé, 5º ano de escolaridade feito, que acompanha os pais nas lides do campo. Quando a irmã foi para Gouveia estudar, também meteu a mochila dos cadernos e livros às costas, "mas depois aborreceu-se". Ela continuou, por pouco tempo, e ficou a viver na residência dos estudantes. A casa ia aos fins-de-semana. Os outros irmãos, Sandra e Raul, de 29 e 35 anos, há muito tempo que saíram do vale e assentaram a vida noutros alicerces.
FAMÍLIA CORTA CENTEIO
No penúltimo domingo de Julho, a família reuniu-se para cortar o centeio, mas de Rosa Maria Santos pouco colheram ou pouco querem lançar aos quatro ventos, que nunca se sabe onde caem as sementes. "Juntou-se há dois anos, mas não fez casamento, nem nada disso. Juntaram-se, prontos! E não foi mais à escola. Primeiro, esteve em Gouveia com o sogro. Mas aquilo lá tiveram algum problema e agora estão a viver à parte", conta Maria Pita. E o que faz a sua filha? "Se calhar só faz a lide da casa. Também não vou lá ver".
"Já cá tinham estado há bocado?", pergunta Manuel Pita, 74 anos, agarrado ao cajado, ainda mais fundo no vale onde pastoreia as ovelhas. "A rede é só para os animais não saírem. É só arredá-la e entrar". Sobre a filha Rosa, saem-lhe poucas palavras, entre a resignação e o cansaço das dores mal suportadas: "Ela quando cá esteve, no corte do centeio, estava feliz. Vai andando. Já lhe perguntei se era feliz e ela diz que sim. Agora é com ela, não é comigo".
O pastor debruça as mãos no cajado e encosta-lhes a cara: "Ela anda bem. É a vontade dela. Está bem com ele. Ajeitou-se à vida dela e dele. Ela também trabalha no campo. Quando é preciso vêm cá e vão. Vêm umas duas vezes por ano".
Rosa Brava conheceu o companheiro, Tó, quando estudava em Gouveia. Ele, pouco mais velho, trabalhava com o pai na construção civil, mas ter-se-ão zangado. Então o casal foi viver para um anexo da vivenda do actual patrão de Tó, ainda em construção, no alto de Aldeias. "Se estão bem ou não, é lá com eles", diz Maria Pita. No Talegre, como apelidam o alto, chamando e batendo à porta ninguém responde.
"Ela foge, não fala com ninguém. Só os vejo sair ao domingo, de mão dada, quando vão para Gouveia. Não falam", conta Ana Maria, uma vizinha, meio intrigada. "Ela passa quase sempre 24 horas por dia fechada em casa. Se agora está lá dentro não sei". Ninguém parece conhecer-lhe trabalho. "Um dia veio para a apanha da azeitona e depois dei-lhe um terreno, ali atrás, para amanhar, mas não fez nada. Ele trata-a bem", diz a vizinha.
Tó anda com o patrão, António, a construir uma casa na encosta oposta à do Talegre, perto de casa. É de poucas palavras, pelo menos no momento. A custo interrompe a bucha da manhã. "Não quero protagonismos, não quero ser famoso", diz, impedindo qualquer contacto com Rosa Brava e enviando em simultâneo mensagens por telemóvel. Como é que ela está?
"O que é que isso lhe interessa? Ela agora até está a trabalhar. Eu quero andar com ela como anónimos. Já viram o que é irmos aí na rua e estarem sempre a dizer: olha, ali vai a Rosa. E tudo a olhar?" O jovem está irredutível, magoado com os anos passados pela companheira. "Não vale a pena virem cá mais. Não me obriguem a ser mal educado, eu sou o marido. Prometeram-lhe mundos e fundos e não fizeram nada".
Aldeias é também uma terra erguida no regaço de um vale, perto de Gouveia. Será que do outro lado da serra, de Casal da Maceira, saltou para ali um pedaço de profundo isolamento, que sobrevive mesmo no meio da multidão, ao domingo?
FACEBOOK (IN)ACTIVO
A página de Rosa Santos no Facebook parece reflectir essa angústia. Aberta em Junho de 2010, regista quase nenhuma actividade. A fotografia de perfil foi alterada em Outubro e a última entrada é um carregamento de imagens feito por telemóvel, há menos de dois meses. Ao todo, o mural tem apenas uma dezena de actualizações. Muito pouco para quem queria conquistar o Mundo para além de Casais de Folgosinho.
Hermínio Carvalhinho, 37 anos, é o pastor estrela principal do documentário. Um dos que beneficiaram, pelo que conheceu de Portugal e no Brasil, pelos amigos e pela melhoria das suas condições de vida, que hoje continua como no documentário. "Nunca mais soube a direcção dela, abalou lá para Gouveia, parece que se juntou com um amigo", conta. "Diz-se que está sempre fechada em casa. Nunca mais a vi. Já andei por um lado e por outro, a ver se consigo o número de telefone dela, para falar com ela, mas ainda não consegui".
Podem dois filmes mudar uma vida? "É preciso que a criança não se deslumbre. Mas quero manifestar toda a minha prudência", disse Álvaro Amaro, presidente da Câmara de Gouveia, em ‘Rosa Brava’. Rosa Maria Santos mudou, não é a menina sorridente, que aos 14 anos esperava que um príncipe entrasse pela janela e a levasse. Que foi pela primeira vez ao médico e ficou "mais bonita e mais magra" aos 16. E conhecida em parte do Mundo e Gouveia. "Oxalá os olhos dos que agora lhe reabriram as portas da escola não mais se fechem", terminava a reportagem, em 2007 (agora a Câmara não respondeu às questões da Domingo).
NOTAS
HERMÍNIO
Em dez anos a sua vida mudou muito. Conheceu Portugal e o Brasil e fez amigos que o ajudam.
OS PITA
Em Casal da Maceira, pouco mudou na família que não queria a filha na escola.
O IRMÃO
Zé, 18 anos, quase não fala. Passa os dias a mandar SMS a pedir uma namorada ou uma moto 4.
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