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Peixe preso pelos anzóis da economia

A faina é das mais duras tarefas. no mínimo, os pescadores trabalham 70 horas semanais por 150 ou 200 euros. O peixe é vendido depois por valores que chegam a atingir seis vezes mais.

26 de abril de 2009 às 00:00

Na captura do peixe-espada preto, em Sesimbra, só os ventos moderados a fortes arrepiam a faina. Acima dos 25–30 nós, as vagas elevam--se a mais de 4–5 metros de altura. Em terra de pescadores, conta-se que um dos peixes capturados salvou da morte quatro dos oito tripulantes do ‘Monte Santiago’. O barco pescava a 15 milhas do cabo Espichel. E uma nortada voltou-o, decepando a ponte do leme do convés. Os homens foram atirados às águas profundas e geladas do Atlântico em Abril de 1996 e um terá usado os dentes do peixe para soltar a corda da jangada pneumática que estava presa ao barco e se estava a afundar. Mas nem histórias dramáticas demovem estes homens da pesca. O pesar das memórias não mata a fome. Como entre 19 embarcações nesta arte, a ‘Carlos e Rui’ faz-se ao mar, num vaivém, três vezes por semana e num total de 70 horas de trabalho, para içar o peixe que mordeu o isco.

Terça, a ondulação rasou um metro e meio de altura. O suficiente para a náusea dos observadores que se fizeram ao mar. Mas para os pescadores foi como pouco mais que umas lombas numa recta de estrada alcatroada. Não é isso que os rala. 'A pior vida que existe é esta, porque se pesca à noite', comenta um dos sete tripulantes de mar da embarcação, com quase 16 metros de comprimento.

Uma hora e quarenta minutos depois de Sesimbra, a sete milhas do cabo Espichel, a sonda assinala a bóia do pesqueiro. Previa-se que com o cair da noite o vento amainasse. Mas não. Na borda da embarcação, à proa, um pescador lá sentado embala o corpo, habituado à ondulação. Perto das 19h00, puxa a bóia para bordo. Outro deles enrola a corda, que a ela vem presa, ao alador. O motor arranca um som infernal e assim se mantém. Antigamente, eram precisos três homens para puxar as cordas, que se estendem por mais de mil metros de profundidade. Agora, a máquina fá-lo em sete horas.

À superfície, vê-se roazes rápidos como flechas. São os piores predadores dos anzóis, porque tiram o peixe todo. Se andam por ali, é mau sinal. Debaixo de água, a corda, presa a duas bóias, é uma espécie de estendal que sustenta fios de nylon com 5600 anzóis com sardinha (ou cavala). Se capturarem menos de uma tonelada de peixe é fraca a faina. Mas se chegar às três toneladas é bom de mais.

O mestre da embarcação, Carlos Macedo, 56 anos, critica que os pescadores ultrapassem o seu limite próprio de arte do palangre de profundidade. 'O excesso de artes é o pior que pode existir, porque se ficar lá calada eu não posso pescar naquela zona.' Entretanto, pelo rádio ouve-se os mestres de outras embarcações queixarem-se de que não há peixe. 'Há que ter paciência', vai repetindo um.

A noite está mais fria que as anteriores. Os tripulantes, vestidos com oleados, tiram o peixe que vem agarrado ao anzol no andamento da linha puxada a alta velocidade. Deitam-nos em caixas de plástico, que os homens mais à ré vão acondicionando. Na proa, outro homem recolhe as linhas em bidões. E, no final, ainda têm que lançar outra arte com novo isco.

Com 25 anos, Abel segue a vida da família: pescador. No barco do tio, o ‘Carlos e Rui’, ganha tanto como os outros: 150, 200, 250 euros por semana (o mestre e o motorista ganham normalmente mais meia parte cada um). Depende da faina. 'Não há emprego, e eu também não tenho estudos. Fiz o 6º ano, mas não gostava da escola...' Não gostava nem se arrepende. 'Há vidas piores', diz, sorridente. Só que 'cada vez está pior'. Há menos peixe, e vende-se mais barato. Tem, por isso, cada vez menos luxos. A renda da casa já ultrapassou o sufoco dos 560 euros, acompanhando a descida da taxa Euribor até se situar nos 300 euros. A sua mulher cuida da filha e, para que tenham uma vida melhor, ele mete o seu pequeno barco ao mar, um dia por semana, para ganhar mais 50 a 60 euros semanais.

711 QUILOS É POUCO

Aquém do desejado, o ‘Carlos e Rui’ não capturou mais de 600 quilos de peixe-espada preto. O restante são tubarões de profundidade, também para consumo.

'Pela lei, a primeira venda de pescado tem que passar pela lota, onde o peixe é comercializado em leilão. A única forma de não ir a leilão é que a embarcação seja sócia de uma organização de produtores', explica Carlos Macedo, chefe de serviços da Artesanal Pesca, uma das que congrega 14 dos 19 barcos de pesca do peixe-espada preto em Sesimbra. Estes têm contratos de venda à organização, ao preço fixo de 2,80 euros, 70% do peixe, e 2,50 os restantes 30%, para filetes e congelados.

Sócio de um restaurante, Pedro Carapinha, de 35 anos, comprou por 3,20 euros o quilo, à Artesanal Pesca, o peixe-espada preto, que vende a 8 euros a dose. Lucra bem mais do que se tivesse comprado na praça, por 6 euros. Quase o dobro.

Às seis e meia da manhã, o peixe que é descarregado na Doca de Pesca de Sesimbra cruza-se com as sardinhas e os carapaus capturados, junto à costa, durante a mesma noite. Cada vez que uma embarcação descarrega, o peixe é levado para a lota e, enquanto é pesado, ouve-se uma campainha tocar. Avisa que se vai iniciar o leilão. Na bancada, os compradores vêem as sardinhas frescas que vão ser vendidas. No monitor, o preço do peixe cai em contagem decrescente, até o comprador fazê--lo parar com o comando. Cabazes de 20 quilos de sardinhas a 45 cêntimos cada; outros a 60 cêntimos. É por esse preço que Manuel António, de 55 anos, comprou e agora vai vender na praça do Lavradio, no Barreiro. A avaliar pelos preços de venda em Sesimbra, 3 euros o quilo, rende 6 vezes mais o preço de custo.

'A sardinha, este ano, ainda não ultrapassou um euro o quilo. Tem andado, em média, a 50 cêntimos' – diz Manuel Cardoso, dirigente da Sesibal, Cooperativa de Pesca de Setúbal, Sesimbra e Sines. 'O sector atravessa uma fase muito complicada: apoios prometidos pelo Governo e não cumpridos; combustíveis caros; o valor do pescado continua igual desde há 1o anos; e a falta de pessoal para trabalhar a bordo, as pessoas não querem trabalhar no sector primário.' Venham os santos populares para acelerar o comércio da sardinha. Nessa época, quando escasseia, a sardinha dispara para os 6–7 euros.

Lisdália Martins, técnica da Doca Pesca, repara que 'tem vindo a baixar a quantidade de peixe vendido. Nota-se uma grande diferença entre o preço que sai da lota e que é vendido no mercado.' (ver tabela de comparação de preços). A lota de Sesimbra foi a que mais peixe vendeu, no País, no ano passado: mais de 22 milhões de euros. No entanto, nos dois primeiros meses deste ano, face a 2008, registou-se uma quebra de 24,3% no volume de peixe transaccionado e um abrandamento de 18,1% no preço médio do pescado.

NA PRAÇA NÃO HÁ CLIENTES

Manuel Santos, de 53 anos, só vende peixe graúdo na praça, portanto mais caro. O que está em crise. Durante a semana faltam clientes, ao fim-de-semana é que lá aparecem as gentes de fora, dispostas a gastar dinheiro em peixe fresco. Se não for a restauração a salvá-lo, não é com 15 a 20% que acrescenta ao preço de custo do pescado que paga os 1500 euros de despesas fixas que tem. Tony, de 77 anos, um afamado comerciante da zona, com o restaurante Tony Bar, é um dos compradores. Cherne, imperador, linguados, robalos. Os seus clientes, classe média-alta, não se importam de pagar a sua comissão de 100% no preço do peixe, porque procuram qualidade na confecção.

Outro peixeiro, Carlos Manuel, de 47 anos, faz coro com Manuel Santos: 'As pessoas não têm dinheiro para consumir.' Na banca de Carlos Pinto, 44 anos, lá vai saindo mais alguma coisa. Nesta altura compra-se mais peixe para grelhar: sardinha, carapau e besugo. Os preços rondam os 3 euros para as duas primeiras espécies e os 6,50 euros para a segunda.

São clientes como Artur Borges, de 68 anos, que lhe dão movimento às contas: 'Venho à praça duas a três vezes por semana.' Pega no carro e faz menos de meia-dúzia de quilómetros. Nesta última viagem comprou um quilo de sardinhas frescas. Na varanda do apartamento, a sua mulher, Maria José, de 65 anos, grelha o peixe, que já lhes foi vendido seis vezes mais caro do que em lota. E que, desde o pescador até ali, já vai em ‘quarta-mão’.

QUANTO CUSTA CADA ESPÉCIE?

Os preços do pescado variam sazonalmente e consoante a procura. Os valores assinalados ao lado correspondem aos da praça de Sesimbra, nesta semana, ao preço médio de venda na lota de Sesimbra, entre Setembro de 2008 e Fevereiro último (incluindo taxas), e aos hipermercados com venda on-line (alguns não mencionam se o peixe é nacional).

LINGUADO

Lota: 11,95 €

Praça: 20 €

Hipermercado: 28,49 €

SARDINHA

Lota: 0,54 €

Praça: 3 €

Hipermercado: 2 €

ROBALO

Lota: 9,69 €

Praça: 16,50 €

Hipermercado: 24,59 €

CHERNE

Lota: 15,26 €

Praça: 16,50 €

Hipermercado: 16,95 €

CARAPAU

Lota: 1,05 €

Praça: 3 €

Hipermercado: 2 €

BESUGO

Lota: 5,36 €

Praça: 6,50 €

Hipermercado: 9,98 €

PEIXE-ESPADA PRETO 

Lota: 3,20 €

Praça: 6 €

Hipermercado: 5,45 €

POLVO

Lota: 4,40 €

Praça: 6 €

Hipermercado: 6,98 €

CHOCO

Lota: 5,49 €

Praça: 10 €

Hipermercado: 7,96 €

MAIS 10% EM TAXAS NA LOTA

O comprador normal na lota paga de taxa 5% sobre o valor de leilão, os industriais pagam mais 2% e as organizações de produtores 3%. Soma ainda o IVA de 5%. Os pescadores pagam 2 a 4% sobre a venda.

TRÊS VEZES POR SEMANA À PESCA

Uma embarcação com quase 16 metros como a ‘Carlos e Rui’ tem sete pescadores no mar e oito em terra. Preparar as linhas para lançar ao mar é um trabalho moroso. Três vezes por semana, os pescadores fazem-se ao mar ao final da tarde; quando regressam, por volta das 8h00, vão ajudar os que estão em terra até às 12h30. É nesse momento que mais convivem. E as distracções são muitas, especialmente para quem passa mais tempo no mar do que em casa com a família.

DOSE DE PEIXE-ESPADA PRETO POR 8 EUROS

A dose do peixe-espada preto grelhado custa 8 euros no Restaurante Maré, em Sesimbra. Pedro Carapinha, de 35 anos, sócio do estabelecimento, compra este peixe directamente à Organização de Produtores de Pesca, Artesanal Pesca, por 3,20 euros o quilo. Por sua vez, os pescadores receberam um valor fixo de 2,80 euros por 70% do peixe-espada capturado e 2,50 por 30%, que serve para filetes e congelados. As sardinhas, por exemplo, Pedro compra-as na praça a 3,50 euros o quilo. Menos 50 cêntimos do que os particulares. A dose, com seis sardinhas, cerca de 400 gramas, é vendida a 7,50 euros. Cada quilo de sardinha é vendido em lota a uma média de 54 cêntimos o quilo. Todos os pratos no restaurante são naturalmente guarnecidos com salada e batata cozida.

"SARDINHAS DE SESIMBRA JÁ ESTÃO BOAS"

Artur Borges, de 68 anos, vai ao mercado de Sesimbra duas a três vezes por semana. Compra habitualmente pescada, corvina. E sardinha, por 3 euros, na banca de Carlos Brito, de 44 anos. O peixeiro conta que agora o peixe para grelhar é o mais vendido. Em casa de Artur, a mulher, Maria José, de 65 anos, formadora em Cozinha, grelha o peixe para o almoço. "As sardinhas de Sesimbra já estão boas. Embora nos Santos Populares fiquem ainda melhores", diz.

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