Teófilo Braga liderou investigação de casos como 'Face Oculta' e 'Apito Dourado'.
omeço por uma declaração de interesses: o que escrevo só a mim me compromete.
Confesso que não me sinto confortável no papel de especialista na área do crime económico – apesar de nos anos 90 me ter sido confiada a coordenação do departamento da Polícia Judiciária que centraliza competências nestes crimes. Sendo que, ao longo de trinta anos, as equipas que liderei se confrontaram com casos desta natureza que, por fortuna ou acaso, ganharam estatuto no conhecimento e discussão pública.
Na mesma linha, descomprometida mas assumindo a minha quota-parte de responsabilidades, afirmo que o sistema de justiça penal tem vindo a falhar no combate a esta criminalidade, mostrando, em termos gerais, uma incapacidade gritante de responsabilizar os infractores, nalguns casos por qualidade deficiente da investigação admito, mas sobretudo porque, apoiados por defesas poderosas e bem pagas, ‘encontram’ sempre um miraculoso ‘alçapão’ na lei, um vício, uma nulidade escondida. Quando isso não chega, avançam com uma bateria de ações a raiar os limites do tolerável – criando e alimentando fait-divers e suspeições com os meios que o dinheiro e poder possibilitam – o que inclui a manipulação dos media – no sentido de lhes garantir um livre-trânsito para a impunidade.
Quando isso não é possível, obriga-se à eternização da acção penal através da utilização, quase pornográfica, de manobras e expedientes dilatórios até à "gloriosa" prescrição final. Dito isto, o veredicto tem de ir no sentido de inexistirem inocentes pela aparente capitulação da justiça neste combate. Combate que não é só da Justiça mas em que uns são, apesar de tudo, mais culpados que outros…
Exige-se inverter este rumo. Não nos podemos quedar perante aquilo que parece ser uma inevitabilidade e procurarmos conforto no facto de esta criminalidade ser tão antiga quanto as sociedades.
Até porque, citando Kofi Annan, "a corrupção fere os pobres desproporcionalmente, desviando os fundos para o desenvolvimento, comprometendo a capacidade de um governo prestar serviços fundamentais, alimentado a desigualdade e a injustiça, desencorajando o investimento e auxílio estrangeiros".
NA ORIGEM DA CRISE
Em Portugal não se conhece qualquer estudo, reconhecido, que permita estabelecer com exactidão a riqueza que foi desviada criminosamente de fins públicos para os bolsos e interesses privados e/ou de grupos e suas clientelas. No entanto, não andaríamos longe da realidade se nisso encontrássemos uma das principais razões da crise grave que atravessamos e leva os cidadãos a desacreditarem de quase tudo. Como se chegou a este estado de coisas?!
Há estudiosos que entendem que o crime económico, como os outros crimes, tem origem em desvios no processo de formação social e que, terminado este processo, o cidadão é um indivíduo socialmente desintegrado, que não acredita na sociedade enquanto grupo destinado à satisfação do bem comum.
Esta situação agravou-se com a tomada do poder político por quadros ou funcionários gerados nas juventudes partidárias, em detrimento de figuras de reconhecidos méritos que deixaram de ser solicitadas para cargos públicos.
Estas "figuras" tomaram conta dos lugares políticos e passaram a enxamear os lugares de nomeação da administração onde satisfazem todo o tipo de interesses menos aquele que deveriam perseguir – o interesse público.
Não admira, pois, que os lugares mais disputados por tais políticos profissionais sejam os que possuem maior orçamento e/ou competências para atribuir subsídios, isenções e outros benefícios…
Em simultâneo aparecem, como cogumelos, institutos públicos e fundações "à pala" – passe o plebeísmo – da argumentária da "celeridade e simplificação do processo de decisão", o que não passa de uma forma canhestra de encapotar a "desorçamentação" e fugas às boas regras de execução e controlo fiscal.
Aparecem ainda, sob a capa bondosa da "defesa da cidadania", das necessidades de dar "competitividade à economia", ou jargões da mesma índole, os segredos – "segredo bancário", "segredo fiscal", "segredo profissional" e "segredo das comunicações".
Segredos que apenas servem os interesses de grupos restritos de cidadãos e/ou empresas com posição dominante. É neste caldo que medra o crime económico, com relevo para a corrupção.
CRIME SOFISTICADO
Crime económico que cada vez mais justifica a qualificação de "crime organizado", tal é a evolução para formas mais sofisticadas e fluidas do que a arcaica passagem de dinheiro "por debaixo da mesa" ou das estórias das "malas cheias de dinheiro".
Em resumo, temos um povo permissivo e com fraca formação na avaliação do interesse público; uma geração política provinda daquela massa de recrutamento, profissionalizada e movida por interesses incompatíveis com a "coisa pública"; a máxima tutela dos interesses privados em detrimento da transparência; um aperfeiçoamento das formas de execução do crime, por um lado, e um aparelho de Estado desarmado em termos organizacionais e de meios, tolhido por um conservadorismo, que persiste, quanto ao modelo de investigação, por outro.
Assim, tendo como seguro que a prevenção não é menos importante do que a repressão, urge pugnar por maior consciência cívica na defesa
do interesse público; criar códigos de conduta para funcionários públicos e titulares de cargos políticos, sob a forma de lei, com carácter vinculativo e poder coactivo, contendo a previsão de sanções; incentivar os cidadãos a denunciarem as situações criminosas de que por qualquer forma tenham conhecimento – retirando a carga negativa associada à delação gratuita e dando-lhe o sentido de acto de cidadania.
O sistema de justiça tem vindo a falhar, mostrando-se incapaz de responsabilizar estes delinquentes de grandes recursos económicos provenientes da actividade criminosa e escorados em outros poderes de que toda a gente fala mas que ninguém ousa enfrentar… Actividade criminosa que vem sendo caracterizada, e bem, como larvar, silenciosa e tentacular, que se foi introduzindo e apoderando dos centros de decisão política, económica, administrativa e, até, judiciária.
PODEROSOS ADVERSÁRIOS
Estes são os adversários e o crime organizado o maior desafio que se põe às democracias – não sendo despropositado citar, sem ponta de ironia, Manuel Alegre quando diz: "Ou o Estado democrático resolve os problemas da República ou alguém os resolverá contra ele". Para conseguir este desígnio é obrigatório, além de verdadeira vontade política, traduzida em leis adequadas e consequentes, um poder judicial forte, prestigiado e independente, apoiado por uma investigação criminal isenta, imparcial, despreconceituosa, corajosa e livre de qualquer vinculação ou submissão funcional ao poder executivo.
Este crime organizado transnacional, de modelo empresarial, que se alimenta de uma economia selvagem e que utiliza um vasto e complexo conjunto de medidas defensivas – por forma a garantir a ocultação e dissimulação das suas actividades criminosas e proveitos – não se compadece com o modelo clássico de investigação retrospectivo, alicerçado no raciocínio dedutivo e na reconstituição do passado, pensado para responder ao crime tradicional, comum.
Exige-se um novo modelo, de acentuado pendor preventivo, proactivo, sustentado em novas capacidades funcionais e tecnológicas, que produza conhecimento sobre a realidade em que intervém.
Um modelo que não limita o seu objecto de análise ao acto e seu autor mas, antes, à actividade criminosa. Que não visa só a reconstituição histórica do facto mas o conhecimento em tempo real daquela actividade e, no possível, a sua antecipação de modo a dar-lhe resposta oportuna, consequente e eficaz. Este paradigma de abordagem ao crime tem maiores exigências de qualidade e qualificações (não apenas académicas) dos investigadores mas, também, de meios e instrumentos.
Uma abordagem séria, consequente e, sobretudo, em tempo útil a estes crimes implica a utilização – na medida das necessidades mas sem quaisquer complexos – de todos os meios especiais de obtenção de prova que a lei consente, mesmo os mais intrusivos – e que, por isso mesmo, estão sujeitos a controlo jurisdicional apertado e apenas utilizáveis nos casos de criminalidade mais grave, como é o caso –, referimo-nos, naturalmente ao uso de vigilâncias e escutas ambientais, com registo de imagem e som; intercepções telefónicas, de correio electrónico e de dados por via telemática; acções encobertas e uma real utilização do chamado "direito premial", indo no sentido que o agente passivo da corrupção – colaborante de forma relevante com a justiça – possa não apenas ter atenuação especial da pena mas, até, a sua dispensa.
Nesta linha, porque não avançar com a criminalização do enriquecimento ilícito? Isto, apesar de já ter sido mais entusiasta quanto ao tema, não por razões estritamente constitucionais, que serão ultrapassáveis, mas por temer que os investigadores, munidos desta ferramenta e com a "inultrapassável" falta de meios, caiam na tentação de descurar a investigação dos crimes a montante que são, afinal, a causa desse enriquecimento criminoso…
Tudo a par do contínuo reforço da cooperação internacional; da agravação das penas da corrupção, em todas as suas formas, quer respeitem a funcionários públicos quer a titulares de cargos políticos e, consequentemente, ao alargamento dos prazos de prescrição. Decisivo para evitar as "investigações arqueológicas" é obrigar as inspecções administrativas a comunicarem às autoridades os factos com relevância criminal logo que os detectem, sem aguardarem pela aprovação do relatório final pela tutela, a par da necessidade de criar um regime sancionatório agravado para o incumprimento de ordem judicial que determine a quebra do sigilo bancário – nomeadamente quando sejam utilizados expedientes dilatórios para reter ou sonegar informação ou documentação – aplicável às entidades bancárias, administradores, gerentes e/ou seus agentes.
VONTADE
Não finalizarei sem insistir naquele que me parece ser o requisito mais importante, essencial mesmo, para levar a bom termo esta luta, que deve ser de todos – a Vontade.
Vontade política séria e vontade, sem fundamentalismos mas firme, das entidades investigadoras – Ministério Público e PJ – a actuarem, de forma agressiva e proactiva, solidária, coesa e articulada – no respeito dos seus saberes e competências – a par, obrigatoriamente, de um poder judicial independente, sabedor e descomplexado.
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