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"Pode passar-se de bestial a besta em menos de 30 segundos"

O cantor Gil do Carmo levou a lição ‘bem estudada’ e confrontou o pai com as histórias de uma carreira que já leva 45 anos e que se cruzou de perto – e por vezes de forma dolorosa – com alguns dos mais importantes episódios da vida política e social do País. Como pai e filho, confessaram ainda o orgulho mútuo que sentem um pelo outro...

16 de novembro de 2008 às 00:00

Gil do Carmo – Tudo começou com o ‘Fado Loucura’ há 45 anos. Lembra-se do êxito desse fado e, já agora, que importância tem para si o sucesso?

Carlos do Carmo – Na altura gravei esse fado com o grupo do Mário Simões que era então uma banda muito conhecida, vinda do jazz. E nos locais onde ele tocava, eu aparecia e cantava. Na época eu gravava discos com 45 rotações e um dia ele perguntou-me se não gostava de gravar um fado. Respondi-lhe: 'Tu não deves estar bom da cabeça! Eu só sei um fado de cor, que ainda por cima é da minha mãe [Lucília do Carmo]'. Mas ele convenceu-me, disse-me que gravávamos aquilo de uma maneira diferente, com bateria, coros. E eu a pensar: 'Vai arranjar-me um trinta e um...'. Mas lá o fizemos por graça e surpreendentemente começou a tocar muito na rádio. Foi um sucesso que me surpreendeu muito. Claro que, na rua, as pessoas aproveitavam logo para me dar a machadada: 'Que engraçado você ter gravado um fado da sua mãezinha. E que bem que ela o canta. Você tem jeito mas olhe que ela canta muito bem...'

G.C. – O que é e o que representa para si o sucesso?

C.C. – Tantos anos depois, o sucesso significa algumas prioridades. A primeira é ter alguma saúde, a segunda uma família da qual me orgulho muito, a terceira é ter amigos que prezo. E agora já tenho poucos, porque têm morrido alguns. Tenho envelhecido bem mas a pior coisa é perder aqueles de quem se gosta. E, finalmente, o sucesso é também cantar e as pessoas gostarem de mim. Cantar é a base da minha vida: é graças a isso que conheci o Mundo, ganhei a vida, afirmei-me na sociedade.

G.C. – Não respondeu à minha pergunta.

C.C. – Vou então fazer uma adenda: o sucesso é algo tão volátil que se pode passar de bestial a besta em menos de 30 segundos! Aí de nós se damos muita importância ao sucesso.

G.C. – O sucesso é hoje uma palavra perigosa. Criou-se a ideia de que tem de se ter sucesso sem se saber o que isso quer dizer.

C.C. – Por isso é que tenho as tais prioridades. A vida é um pequeno empréstimo.

G.C. – Passam-se alguns anos e com eles vem a liberdade. Sente que soubemos crescer com a democracia ou sente que estamos encurralados neste momento?

C.C. – É curioso porque, aos 68 anos, tenho tantos anos de democracia como de ditadura, ou seja, 34 de cada. E tenho memória. Antes Portugal era um País cinzento, pobre, desconfiado e profundamente triste. Em criança lembro-me que os meus pais, como muita gente neste País, tinham senhas de racionamento para a comida. Lembro-me da guerra. Mas lembro-me que as pessoas eram pobres mas eram solidárias. Nasci no bairro da Bica, em Lisboa, um dos mais genuínos que a cidade tem, porque viveu uma vida muito ligada ao mundo do trabalho e pouco ligada à noite. As pessoas viviam ali como numa pequena aldeia: quantas vezes se permutava uma cebola, uma batata. Havia o rol das dificuldades no merceeiro, mas que todos faziam questão de pagar no fim do mês. Era uma vida pobre mas honrada. Esta é a imagem que guardo desse Portugal.

G.C. – Saltando para os dias de hoje...

C.C. – O País de hoje tornou-se pobre de espírito. Temos uma classe dominante tão fraca que teve aberta de par em par a porta da liberdade e maltratou-a. Não há memória de haver um golpe de Estado como o que houve em Portugal em que os militares não querem o poder. Ninguém foi pendurado, não houve guerra civil, não houve tiros. Toda a gente desvia as atenções para aquilo que se fez em África, mas esquece-se de que isso é uma consequência daquilo que aconteceu antes: Portugal estava entalado entre os dois blocos, os EUA e a União Soviética. Claro que isso custou mágoas a um milhão de um portugueses, mas a história não se escreve como nós queremos e culpar o Mário Soares ou o Melo Antunes não serve de nada. Depois, em vez de se investir na justiça, escola – que é aquilo que faz um País – construíram-se centros comerciais e começaram-se a comprar carros, roupas de marca. Agora vivemos fechados. Tão fechados que desconfio que há certas pessoas que, quando quiserem abrir a porta, já não encontram a fechadura.

G.C. – Nos anos 80, você foi silenciado. O que aprendeu com isso?

C.C. – Aprendi a continuar a lutar e não deixei de trabalhar. Nessa altura trabalhava sobretudo no estrangeiro, passei pelos países mais incríveis. Fi-lo com muito portuguesismo e muita entrega. Acho que a todos os sítios que fui deixei o País ficar bem, além de ter conhecido de perto extraordinária comunidade que vive lá fora e que teve muita importância para mim.

G.C. – O que aprendeu com a emigração?

C.C. – Muita coisa. Uma delas é ver como é possível amar tanto uma terra que nos trata tão mal. Temos cinco milhões de portugueses fora de Portugal e não temos um ministério da emigração. Temos gente ilustríssima de Paris, na Califórnia, em Nova Iorque, na Austrália e não somos capazes de fazer lóbi com isso. Só são distinguidos para vir cá receber uns prémios ou dar-nos um espectáculo folclórico, batem-lhes imensas palmas e pronto. Devo aos emigrantes o reforço de amor a Portugal e o facto de me terem dado muito trabalho na altura em que aqui em Portugal a Direita resolveu remeter-me ao silêncio.

G.C. – Na altura não era a Direita que estava no poder, era o PS...

C.C. – Ah, era?

G.C. – Está a querer chamar direita ao PS?...

C.C. – Por amor de Deus, não me metas em questões partidárias. O meu partido é o trabalho.

G.C. – Tem saudades de ouvir a avó?

C.C. – Muitas. Essa mulher cantava muito e tu sabes disso. Aliás, ela cantava para ti, ali na varanda. Eu cá nunca tive nada disso!

G.C. – Era a maior. Depois de ter deixado de cantar publicamente lá conseguíamos que ela cantasse para nós. Isso leva-me a pegar numa questão complicada. No rescaldo dos anos 80, lembro-me de ser insultado na escola por ser filho de quem era. E algumas vezes iam buscar os boatos de que o pai tinha saneado a avó. Eu sou testemunha de que isso não é verdade. Não acha que já é altura de esclarecer isso?

C.C. – Uma coisa que não aconteceu não precisa de ser esclarecida. Mas vamos reconstituir a história: na altura em que isso saiu num jornal, era uma época de duro combate político em que valia tudo contra os adversários, inclusive caluniar. Mas a resposta era muito simples, para quem a quisesse encontrar. Se eu tinha saneado a minha mãe do seu posto de trabalho que era a casa (de fados) dela, bastava só ir lá e ver se ela lá estava. Ora ela estava lá todas as noites, havia era pessoas que não queriam ir ver.

G.C. – Não tinham coragem...

C.C. – Mas sei quem foram as pessoas e não esqueço. Agora, vingarem-se nos meus filhos é a coisa mais natural. Todos os filhos de figuras conhecidas, em qualquer parte do Mundo, foram vítimas disso. Eu próprio também fui. Eu tenho um filho discretíssimo, o Becas, que detesta fotografias, não é tão extrovertido como os irmãos mas é muito invejado. É trabalhador, cumpridor mas, em cima disso, é o filho do Carlos do Carmo. Não há nada a fazer. A minha mulher também já foi vítima. O que é que eu posso fazer? Não vou pedir desculpa por as pessoas gostarem de mim e comprarem os meus discos. E agora diz-me tu meu filho, se é muito difícil..

G.C. – Somos três filhos, todos ligados ao ramo de alguma forma. A minha irmã Cila é uma brasa, uma produtora de televisão reconhecida e já sofreu na pele o que é ser filha do Carlos do Carmo. O Becas, pela sua personalidade, não gosta de aparecer, mas é um excelente técnico de som e trabalha com os maiores artistas deste País. Eu canto, sou figura pública e tenho de aparecer naturalmente...

C.C. – E és um grande maluco, aqui para nós...

G.C. – Ser neto da Lucília e seu filho torna muito difícil as pessoas ouvirem o meu trabalho sem terem preconceito. Sinto isso. Julgam que somos todos milionários...

C.C.– Não somos... E tens um belo de um disco, com três ou quatro boas canções e que não têm nada a ver comigo. De mim, só tens o Carmo. Interrogo-me porque não se ouve o teu disco... é estranhíssimo.

G.C. – Como gostava de ser lembrado?

C.C. – O mais garantido é ser lembrado por vocês que, ao serão, vão rir-se tanto com as barbaridades que eu dizia e das coisas bizarras que eu fazia... como aquelas economias que vos levavam a chamar-me ‘tio Patinhas’.

G.C. – E enquanto artista?

C.C. – Como alguém que se deu a isto com muita paixão e muita auto-estima.

CARLOS DO CARMO: 'ERA INTERESSANTE FAZER-SE UM FADO AOS CONTENTORES QUE QUEREM PÔR À FRENTE DO RIO. SE FOR PRECISO, EU CANTO-O'

G.C. – Acha que neste momento, a forma como se escreve esta nova Lisboa é coerente? Há gente com talento a fazê-lo?

C.C – Haverá sempre. Lisboa é uma musa inspiradora. Fazem-lhe as maiores maldades todos os dias mas ninguém lhe destrói a alma, o Tejo, a Luz. Vivemos tanto tempo de costas voltadas para o rio e, agora que finalmente nos virámos para ele, querem escondê-lo. Nesta altura, por exemplo, era interessante fazer-se um fado aos contentores que querem pôr à frente do rio. Se for preciso, eu canto-o. E já que é com contentores que querem tapar o rio, e com muito respeito pelos Xutos & Pontapés, lanço aqui o desafio ao Zé Pedro para esse tal fado...

G.C. – O pai tem o dom da palavra. Acha que a sua opinião tem real influência?

C.C. – Não tenho essa presunção. De uma maneira geral, acho que os artistas têm pouco peso na sociedade de hoje. As pessoas podem ter prazer ao vê-los actuar mas não sei se lhes dão credibilidade enquanto cidadãos. Sou um homem cheio de fraquezas e não quero ser exemplo para ninguém. Só quero é deixar claro que tenho opinião, ou seja, sou um voto, mas não sou um verbo de encher.

PERFIL

Carlos Alberto Ascenção de Almeida, mais conhecido como Carlos do Carmo, nasceu em Lisboa a 21 de Dezembro de 1939. É filho da conhecida fadista Lucília do Carmo e de Alfredo de Almeida, livreiro e hoteleiro. Estudou hotelaria na Suíça mas iniciou a sua carreira artística em 1964. Nesse ano, casou com Judite do Carmo, casamento que dura até aos dias de hoje e do qual resultaram três filhos: Cila, Alfredo e Gil. Este último estreou-se em 1997 com o álbum ‘Mil Histórias’. O seu mais recente disco chama-se ‘Sisal. Gil do Carmo é ainda responsável pela programação do seu bar, o Speakeasy.

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