Se a caneta falasse o texto sairia tremido. Não que o tema contagie, mas quem o escreve faz parte de um por cento da população nacional, que nem sempre, ou quase nunca, consegue falar com fluência. Os dicionários, que trazem tudo, definem quem fala assim.
É, pois, gago: criatura cujo pensamento é mais rápido do que o vocábulo, e que não possuem segurança verbal para o exprimir. Caracterizada por fala interrompida, ou por silêncios, demoras e repetições de sons, sílabas ou palavras, produzidos com excesso de tensão muscular, a gaguez, inexplicavelmente atinge mais os homens.
Embora alguns estudos relacionem este facto com o aumento da testosterona, antes do nascimento, o que afectará a acção de determinados químicos existentes no cérebro dos rapazes, as razões para as mulheres, e nem todas, serem poupadas, vive no cofre da Psicologia.
Na verdade, e paciência, a causa desta perturbação da comunicação não está definida. Entre uma lesão cerebral ou uma questão psicológica, o consenso encontra-se em lista de espera. Contudo, há avanços. Em 2002, cientistas alemães das universidades de Hamburgo e Gottingen, concluíram que a gaguez crónica é provocada por uma anomalia estrutural no hemisfério esquerdo, resultando de uma disfunção nas áreas do córtex cerebral relacionadas com a linguagem.
O último grito da ciência chegou, em 2004, via cientistas das Universidades de Purdue, em West Lafayett, EUA, que mostraram que o cérebro dos gagos processa a linguagem de forma diferente. Portanto, mesmo de bico calado, e apenas a pensar, os gagos são mais lentos. Apesar destas descobertas terem saído do tubo de ensaio, nada ficou provado.
AO MICROFONE A GAGUEZ DESAPARECE SEM EXPLICAÇÃO
Sejam quais forem os porquês a disfunção tende a manifestar-se entre os dois e os sete anos, com especial incidência aos cinco anos. Quase sem se dar por isso, os catraios desatam a tropeçar nas sílabas, apresentando dificuldade em verbalizar certas palavras, o que origina um processo que prejudicará a fluidez oral, até se transformar num problema inveterado. Em 80 por cento dos casos, a gaguez regride espontaneamente antes dos quinze anos, mas pode ser permanente, e é senhora capaz de interferir na vida social e profissional.
Situações geradoras de stress e tensão interligam-se ao pára-arranca do discurso. Falar em público. Um exame oral. Uma entrevista de emprego. Podem significar tormentos. A cantar, e valha-nos isso, um gago nunca gagueja. Simples. A situação não exige comunicação, porque apesar de existir um destinatário, não há diálogo. Mas não é só na cantoria que o pasmo se dá.
Mário Dias, coordenador da equipa de animadores de Música da TSF, se diante de um microfone a sua acentuada gaguez desaparece. “Desde miúdo percebi que, enquanto punha discos e falava, não gaguejava”. O profissional da rádio nunca descobriu a evidência: “Em estúdio não gaguejo”. Nem uma vez. Nunca quis recorrer a um terapeuta, “já que se eu deixar de ser gago perderia a minha identidade!”.
Hernâni Miguel, 49 anos, figura carismática do Bairro Alto, talvez já tenha vindo ao mundo gago. Na adolescência teve um professor específico da fala, mas um dia as aulas seguiram a seta da fava: “Quando entendi que o motivo era psicológico, deixei de ir”. Inventou o truque: substituir as palavras que mais lhe custa pronunciar por outras. Canja é encontrar uma agulha no palheiro a revelar quais aquelas que são fáceis: “Só sei no momento em que as quero dizer”.
Ler jornais em voz alta resumia-se a técnica de Raul Solnado para disciplinar a subtil gaguez que o acompanha desde a meninice. O consagrado artista de 77 anos, que faz rir, até a neura, define-se como um homem tímido. “Talvez eu gagueje por timidez”. Ponto final. Se dependesse dele a Psicologia entrava em falência: “Não sei e nem quero saber qual é a causa e tão-pouco quero saber de terapias!” O facto de nem todas as frases lhe saírem a jacto nunca serviu de obstáculo para pisar o palco e de ter tido um rol de namoradas: “Ser gago é o meu charme”.
Charme, e a potes, tem Maria João Seixas. A jornalista e escritora, 62 anos, a gaga mais assumida da Televisão e arredores, associa a sua disfluência ao que os psicólogos chamam de mito – Susto. “Eu tinha três anos, estava ao colo do meu pai, e de repente, dizem que me assustei com o barulho de um comboio”. A ex-júri da Cornélia lembra que a forma como os pais encararam as consequências do sobressalto ajudou-a bastante, “fizeram com que eu achasse que falar diferente tinha graça”. Aos 12 anos o estado agrava-se e um tratamento em Paris, quase foi o milagre, não fosse depois ter frequentado um instituto em Lisboa, onde fruto de um dos exercícios começou a contrair tiques faciais de gagos que sofriam de doenças do âmbito psiquiátrico que coexistem com a gaguez. Saiu porta fora. Entrou na leitura da poesia em voz soprano alto. Os entendidos na matéria não associam sobressaltos à gaguez, mas com Mário Laginha, a excepção à regra duplica.
O mestre do piano recorda que a reminiscência do seu discurso nem sempre ser corrente remonta aos seus três anos e recai numa partida que os primos lhe pregaram. Fazer terapêutica foi ovni que nunca viu. É um gago com humor e honra: “Comecei a brincar com isso. E nunca senti que fosse um handicap”. Se o pianista e o compositor quiser, pois o impossível acontece: “Falo devagar e ninguém iria reparar. Mas é uma chatice!” Falar de fita métrica. Vai falando até que as palavras façam fila.
A natureza deu a Cesário Neves, 47 anos, profissional de panificação e pastelaria, a exigência necessária para que possa presidir a Associação Portuguesa de Gagos (APG). É gago tal como os cinquenta associados. Não é a confraternização o intuito da única organização do País que se interessa pelo tema.
Com um gabinete de apoio clínico montado, a APG ultrapassou a ideia que surgiu numa brincadeira entre amigos, que de comum tinham a mesma disfunção da loira preferida de Hollywood, Marilyn Monroe. E de outras figuras.
Aristóteles – insigne discípulo de Platão – era gago, mas não tanto como o orador ateniense, Demóstenes, que para admoestar a gaguez, declamava com pedras na boca. Winston Churchill preferia o charuto e o gin tónico, sem gelo, para distrair a gaguez. Aquando da II Guerra Mundial, a Grã-Bretanha foi conduzida à vitória por ele e por outro gago famoso: o Rei Jorge VI.
Inclusive, no livro ‘Êxodos’, percebe-se que Moisés podia ser sócio da APG: “Eu sou gago, e o que é que eu lhes vou dizer. E se eles não acreditarem em mim?” Pelo sim, pelo não, o irmão Arão fazia o jeito de cada vez que se queria dirigir ao povo judeu.
A explicação para encontrarmos um tão variado tipo de gente é simplificado por Helena Germana, psicóloga clínica, professora da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal: “Não há perfil. A gaguez pode ocorrer em qualquer personalidade”.
Durante a infância, o papel dos pais é fundamental. Corrigir, interromper, pedir para repetir a frase, ou para falar devagar, são alguns exemplos do que não se deve fazer para encarar um filho gago. “Os pais devem proporcionar momentos de calma e não exercer pressões temporais”.
Também os educadores assumem funções importantes na gaguez infantil. A procura de um terapeuta da fala não corresponde ao desejado, sobretudo pela notícia nada animadora: “Portugal não tem um serviço específico para pessoas que sofram de gaguez”. Quanto à cura, “até aos 10/12 anos de idade é possível”. Nada mau. A partir daí o máximo que a ciência dá são melhoras.
CARACTERÍSTICAS SEM PERFIL
“Não há perfil. A gaguez pode ocorrer em qualquer personalidade”, explica Helena Germana, Psicóloga Clínica, professora da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal.
Durante a infância, o papel de pais e educadores é claro – proporcionar a calma e não pressionar as crianças a falarem como não podem. Corrigir, interromper, pedir para repetir a frase, ou para falar devagar, são alguns dos exemplos do que não se deve fazer a quem na maioria das vezes nasceu assim.
ARISTÓTELES (384–322 a.C.) - Filósofo grego
HIPÓCRATES (460–377 a.C.) - Estudioso grego das práticas de saúde, conhecido como o ‘pai da medicina’
DEMÓSTENES (384 a.C. - 322 a.C.) - Orador e político grego
MOISÉS (cerca de 1500 a.C) - Profeta israelita da Bíblia hebraica
BRUCE WILLIS (n. 1955) - Actor norte-americano
LEWIS CARROLL (1832-1898) - Autor inglês, célebre pela obra ‘Alice no País das Maravilhas’
JORGE VII (1895-1952) - Rei britânico entre 1936 e 1952. Último imperador da Índia e último rei da Irlanda. Pai da rainha Isabel II
CHARLES VI (1368-1422) - O ‘Bem Amado’, rei de França entre 1380 e 1422
DARWIN (1809-1882) - Naturalista britânico, desenvolveu a teoria da Evolução e da Selecção Natural
MARILYN MONROE (1926-1962) - Nome artístico da actriz norte-americana Norma Jean Baker
WISTON CHURCHILL (1874-1965) - Estadista britânico, escritor, jornalista, orador e historiador
A ASSOCIAÇÃO QUE OS AJUDA
Associação Portuguesa de Gagos Fundada há dois anos por um grupo de amigos que, de comum, têm a gaguez. As suas actividades não se restringem ao convívio, mas oferecem aconselhamento e apoio clínico. Sediada na Figueira da Foz, a única colectividade nacional que se debruça sobre o assunto, só tem um requisito obrigatório para a entrada dos sócios: serem gagos. Cesário Neves, o presidente da associação, explica: “Fazemos conferências e debates.” Mais ainda: a 20 de Outubro, dois dias que antecedem o Dia Internacional da Gaguez, cabe-lhes a feitura do primeiro congresso nacional sobre a gaguez, a decorrer em Coimbra. http://gaguez.no.sapo.pt/links.htm
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