Arte de cortejar ou ‘boca’ machista, o piropo começa a ser discutido também como um delito
Que levante o braço a mulher que nunca sorriu ao ouvir um piropo na rua. Comentário elogioso, humorado e com conotação sensual, o dito tradicionalmente lançado por homens ousados tem história no romance, publicidade e política até. Foi rei nos anos 1950, quando a euforia do pós-guerra criou o glamour, caiu em desuso com o espírito livre dos anos 60 e perdeu o ar de graça na reservada sociedade deste século XXI. Acusado de sexista e símbolo de exibição de poder, o piropo começa a ser desconfortável para quem o ouve e perigoso para quem o diz.
Da discussão nas redes sociais saltou ao Conselho da Europa, que em 2011, no artigo 40º da Convenção sobre Violência contra as Mulheres, obrigou os Estados Parte a sancionar o assédio sexual verbal. Insatisfeitas, as mulheres que alimentam o movimento Hollaback (nascido em 2005 em Nova Iorque) pedem mais: querem que o piropo seja considerado crime e convocam as filiadas a divulgar na internet as caras de quem lança palavras ofensivas. As queixas crescem no Canadá, Reino Unido, França e Alemanha. Mas nos países do Sul, onde o calor solta o corpo e a língua, as opiniões dividem-se.
ELOGIOS E ‘BOCAS FOLEIRAS'
Sensual por natureza e pelas personagens que interpreta, São José Correia tem sido alvo de vários piropos, "alguns com graça", como o que ouviu de um homem acompanhado pelo filho que, ao vê-la passar, disparou - ‘Vês? As flores também andam'. "Achei tanta piada que olhei para trás e lancei um beijinho", diz a actriz, que recebeu "outros mais grosseiros, do género ‘comia-te isto ou aquilo', e esses incomodam, claro. Mas isso não considero piropos".
São "bocas foleiras", adianta o escritor Mário Zambujal. Autor confesso de vários "galanteios ou cumprimentos, sempre favoráveis", e que por "timidez" apenas dirige a quem conhece bem, nota que "o piropo é espontâneo, construído para a pessoa e a circunstância do momento, não é uma tentativa de conquista, é um elogio sincero", diz. "E num mundo tão agreste, acabar com uma coisa positiva não me parece boa ideia. Se o piropo fosse proibido, se calhar ficava privado de um dos meus maiores prazeres", brinca.
A mesma opinião tem o humorista Nilton, que considera "o piropo parte da cultura. Há um ‘quê' de envaidecer o outro e até os homens ouvem expressões engraçadas. O mais divertido que me disseram foi ‘se tivesses mais cinco centímetros já marchavas'. Sou fã do piropo."
Usado para elogiar, "até pode cair bem", assume a apresentadora Ana Rita Clara, que recorda o dia em que lhe disseram "se o mundo acabasse hoje já ia feliz depois de ver tamanha beleza". "Segura-me no copo para eu te bater palmas" foi a frase que a escritora Margarida Rebelo Pinto ouviu numa discoteca. "Olá Princesa", a boca escolhida por Clara Pinto Correia para o seu romance mais popular. "Quem me dera ser um cigarro" divertiu a cantora Adelaide Ferreira.
ELOGIO À BELEZA
"Forma de cortejar, usada em Espanha, Portugal e talvez Itália, certo é que o piropo faz parte da comunicação entre sexos", lembra o escritor Vasco Graça Moura, que considera "obscena a pretensão de legislar sobre tal. Seria um desrespeito à civilização europeia e só pode vir de umas damas nórdicas mal assistidas".
Elogiar a beleza feminina tem longa tradição literária, desde a ‘Arte de Amar', de Ovídio, à poesia trovadoresca e à obra de Stendhal, frisa Ana Maria Machado, professora na Universidade de Coimbra. No entanto, a relação de poder está sempre presente: "Na poesia amorosa trovadoresca, cantigas de amor e de amigo, há o decalque da linguagem feudal, transpondo-se para o discurso amoroso a relação económica, um domina e o outro é dominado."
A verdade é que nem sempre cai bem. Clara Keating, do CES - Centro de Estudos Sociais de Coimbra, orientou um trabalho de recolha sobre piropos e nota que estes "partem de expressões fixas e idiomáticas, metáforas enraizadas na língua, que, pela maneira como vão sendo usadas, vão criando violência simbólica". Apesar de na nossa alta literatura "serem mais comuns os casos de assédio e abuso, Lídia Jorge escreveu ‘minha pomba' em ‘A Costa dos Murmúrios' para explicar a réplica desse discurso da sedução", lembra Ana Machado.
E é o "escrutínio e a avaliação do corpo que desde cedo os homens fazem sobre o corpo da menina" o que mais incomoda Maria José Magalhães da UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta. Jargões como o do spot publicitário dos anos 1980 em que se dizia ‘terá casado aos 15?' nem sempre se encaixam no contexto. "Convenhamos que o ‘lambia-te toda' para uma criança de 12, 13 anos, não é apropriado. Mas acontece e muito, porque o homem tem atracção pelo corpo pré-púbere. Antes de criminalizar é importante fazer prevenção primária."
ALVOS APETECÍVEIS
Para Carlos Reis, linguista e professor universitário, "culturalmente, o piropo vale o que vale: desabafo, elogio, engenhoso galanteio ou figura de retórica, o piropo arrisca-se, por esta via (e por causa de tais preocupações legislativas), a ser alçado à condição de prática cultural com a dignidade da literatura, da música ou das artes plásticas".
O antigo responsável da Biblioteca Nacional duvida que "o piropo entre na sinistra categoria do ‘assédio verbal'. Que o digam quantas e quantos alguma vez ouviram um piropo. E que digam também, honesta e sinceramente, se reagiram com indignação ou se sentiram um afago no ego. Vale a pena, entretanto, alertar os incautos: com um tal fundamentalismo à solta, não virá longe o tempo em que uma qualquer polícia de costumes há de medir (e punir!) os decibéis morais do piropo".
Aprecie-se ou não, há quem seja um alvo constante. Raquel Strada, por ser figura da TV, está "preparada para ouvir comentários" e destaca a frase ‘não sabia que as estrelas caiam do céu' como a mais carinhosa que recebeu, sempre de homens "com menos de 25 anos ou mais de 50, os outros têm vergonha".
Para Rodrigo Guedes de Carvalho, pivô da SIC, um "piropo pode ser constrangedor", Pedro Pinto, da TVI, reage com "low profile" e José Carlos Castro, TVI, nunca foi ofendido, pois "as mulheres são reservadas. Em caso de legislar sobre o tema só faz sentido se for para obrigar a que tenham humor".
É também em tom de brincadeira que Júlia Pinheiro diz ter "ouvido muitos piropos, expressões extraordinárias, como ‘ó jóia, anda cá ao ourives'". O mais divertido ocorreu quando apresentava ‘A Noite da Má Língua' e "era muito truculenta nas afirmações. Certa noite ia vestida de azul e ao sair do estúdio dois trolhas disseram ‘quem me dera ser nuvem'".
Francisca Almeida, deputada do PSD, raramente é assediada na rua e reage "conforme o que é dito. Agora, uma ofensa é sempre um crime de injúria, seja de um homem para uma mulher, de uma mulher para um homem ou entre pessoas do mesmo sexo, e isso está previsto na lei".
Para Nuno Morais Sarmento, jurista e político, a questão legal passa por "tornar claro o respeito pela pessoa. Não faz sentido estar a legislar ou a proibir o piropo enquanto forma livre de relacionamento entre as pessoas. O piropo é um elogio leve, às vezes com humor, que existe nas relações pessoais, no desporto, nos negócios e na política até. Basta ler [Alexandre] Herculano".
Em Espanha, durante a ditadura de Franco, a frase "tens os olhos mais negros que o futuro do Caudillo" mostrava galanteio e facção política. E anos mais tarde inspirou o fadista João Braga. "Estava em Madrid, entre 1974 e 1976, e um dia, ao ver uma rapariga muito bonita, disse-lhe - ‘Tens uns olhos mais negros que o futuro do meu País'. Ela perguntou-me de onde era e ao ouvir Portugal riu-se -‘O meu é pior, sou chilena'".
AMOR COM AMOR SE PAGA
A "matéria é delicada", diz Ana Drago, deputada do Bloco de Esquerda, que considera "a forma como nos dirigimos ao outro no espaço público, tendo em conta a nossa condição e o nosso género, sempre relevante. Há formas de abordagem na rua que são absolutamente ofensivas e injuriosas e outras não". Para as mulheres na política, mais hostis do que os piropos são "as ofensas que aparecem nos blogues, nos chats, com teor sexual. Algo que não acontece na crítica a um político homem".
Chocante foi como soou a Sara Prata a frase ‘ó Becas, faz-me aqui um graffiti', lançada à personagem que interpretava em ‘Morangos com Açúcar'. "Estava com um grupo de amigos e fiquei incomodada. Mas cada um é livre de dizer o que quer."
Certo é que há sempre quem pise o risco. Em 2006, Marta Atalaya estava em directo na SIC quando um telespectador interveio via telefone e lançou o ‘és boa como o milho!', a que se seguiram frases obscenas. "O autor do telefonema foi localizado e é bom saber que essas pessoas não ficam impunes. Ainda hoje me pergunto como mantive a calma."
Reagir ao piropo com outro à altura é a arma indicada pela socióloga Maria Filomena Mónica, para quem "este tipo de práticas só podem ser extintas, se é que queremos que o sejam, pela sociedade, pelas mulheres na rua que devem responder aos homens ‘cala lá essa boca'".
Pela parte que lhe toca, e "por ter nascido num país do Sul", já ouviu muitos e bons piropos. "Há uns simpáticos, como ‘que lindos olhos', e outros grosseiros e machistas. Como já fui alvo de ambos sei distinguir e reagir. Não preciso de uma lei que faça com que o delinquente macho vá para a prisão." Dizer aos homens ‘é tão bonito' ou ‘tem uns joelhos lindos', em resposta ao hábito "que eles têm de elogiar as mamas", são frases que tem vindo a pôr em prática. "Numa sociedade machista, eles ficam sem saber como reagir, porque não estão habituados. Mas é simpático eu dizer. Há homens muito bonitos."
"UM PIROPO PODE CONFIGURAR CRIME DE INJÚRIA"
- O piropo pode ser punido na lei?
Juiz Tiago Caiado Milheiro - Há punições para o assédio verbal e o piropo pode configurar uma ‘injúria' se ofender a honra da visada. Desconheço decisões judiciais por injúrias em virtude de piropos, não sei se por falta de queixa ou porque não foram entendidos como ofensivos da honra. Mas há outros crimes, como a importunação sexual, acto exibicionista ou com conotação sexual, como o apalpão, que na revisão de 2007 foi considerado crime.
- Os piropos não grosseiros são tolerados?
- O próprio crime de injúria (punível com pena de prisão até três meses ou multa até 120 dias) dependerá do local onde é proferida a expressão (pois há expressões que no Norte não são ofensivas e no Sul são), da pessoa, do local e das palavras. A apreciação será sempre casuística.
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