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Rosa Brava, uma janela de liberdade

Rosa tem 16 anos. Vive em Casais de Folgosinho, um vale isolado, na Serra da Estrela, salpicado aqui e além de pequenos casais - quintas antigas que distam umas das outras pelo menos uma dezena de quilómetros. O Casal da Maceira é o seu mundo, pequeno demais para as suas ambições.

23 de setembro de 2007 às 00:00

Cresceu habituada à terra e aos animais. Foi entre eles que encontrou amigos de brincadeiras. Andou na escola, em Folgosinho, uma vila do concelho de Gouveia, a mais de meia hora de caminho, de pedras e terra que só se deixa fazer a pé ou de jipe. Estudou até aos 14 anos, altura em que acabou a quarta classe. Acabou porque tinha que acabar. Demorou oito anos.

Estrategicamente. A professora sabia que a ligação à escola acabava ali. Continuar implicava uma deslocação diária a Gouveia, mais 12 quilómetros. E essa era uma cedência que os pais não estavam dispostos a fazer. Não podiam perder assim mais duas mãos de trabalho.

Rosa regressou ao vale. Ali ficou a tratar das cabras, das ovelhas, a “pôr couves e tirar batatas”. Mas não se conformou. Nunca. Presa nas muralhas da serra, em caminhos do labirinto da montanha que conhece de cor, quer estudar. Voltar à escola. Garante que é mais feliz se o fizer.

O único irmão, dos três que tem, que ainda vive no vale é o José, Zé como prefere. Com 14 anos é um rapaz de monossílabos. Acabou a quarta classe em Junho. O destino: o mesmo de Rosa. Serra. Uma serra linda é certo. De montanhas de veludo verde. Majestosas. Mas Rosa fartou-se disso. Vê a escola como uma janela de liberdade, que nunca poderá ter se ceder à vida de guardadora de cabras e ovelhas.

Há uns meses fugiu de casa para ir à escola. Pediu ajuda a quem já tinha tentado resgatá-la do vale e devolvê-la à escola. Falou com uma professora de Gouveia, insistiu com a técnica de serviço social da Câmara, implorou aos pais... Foi tema de uma reportagem de televisão que lhe acrescentou ao nome o apelido Brava. Chamou a si as atenções, fez o que pôde. E conseguiu.

UMA BATALHA GANHA

A Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, perante “uns pais irredutíveis”, fez uma participação ao Ministério Público. Manuel e Maria Pita foram chamados à presença de um juiz. Os seus filhos deviam continuar a estudar, foi-lhes dito. Tiveram de aceitar. Contrariados, Maria mais que Manuel. Rosa ganha uma batalha e sente-se pronta para enfrentar a guerra.

O primeiro dia de aulas para milhares de crianças de todo o País foi na passada segunda-feira. Especial para todas. Com sabor a vitória para Rosa.

O vale ainda não amanheceu. O silêncio é de pedra. A luz começa a beber da terra, enquanto o dia nasce. Falta pouco mais de meia hora para “o carro chegar”. Mas na serra isso é muito tempo. Rosa acorda, salta do quarto para a cozinha, onde as paredes enegrecidas pela lareira e um cheiro a “lume” queimam os olhos. Toma o pequeno-almoço à pressa, veste a primeira peça que lhe aparece e sai para a rua. Tem ainda tempo para brincar com o Nico, um cão rafeiro de dois pares de meses, nascido ali mesmo na quinta.

Vai até à pedra mais alta, um dos poucos pontos onde há rede de telemóvel. Surgem as primeiras mensagens de boa sorte para o primeiro dia de escola. O verniz roxo, já gasto, que tem nas unhas sobressai, à medida que os seus dedos saltitam de tecla em tecla. O telemóvel foi o rasgo de liberdade que teve durante os últimos dois anos de serra, cabras e ovelhas.

Hoje Rosa vai voltar à escola. Fica inebriada com a ideia. Se é um dia especial? Ninguém imagina o quanto.

Já passa das sete e o Zé ainda não apareceu. O pai explica: “De manhã a cama é que sabe bem!”. Além disso, “a Rosa quer estudar, mas o Zé é mais malandro”. É verdade que não tem apreço especial pela escola como parece não ter por nada do que se passa à sua volta. Rosa vive nas nuvens, diz que é uma princesa, num mundo de faz-de-conta pintado de cor-de-rosa, mas sabe o que quer. Zé vive longe, distante.

Os olhos de Rosa são dois brilhos de lua. Não está nervosa. Está “feliz, muito, muitíssimo”. Quase em cima da hora, volta a entrar em casa, vai até ao quarto, onde a monotonia das paredes por pintar é quebrada por nomes escritos a giz. São amigos que Rosa foi fazendo. Mais rapazes que raparigas.

A roupa dobrada junto à cama, espera-a desde sábado. Não é nova, mas é a sua preferida. Por isso tem honras de ser usada neste dia, o primeiro de um sonho. A menina que foi pastora, cantarola de voz fininha enquanto enfia na mala “os lápis de cor, o estojo e um livrito”.

VONTADE DE IR PARA A ESCOLA

Põe as pulseiras, ajeita a trança. Prepara-se para sair. Parece uma guerreira. Armada com a mochila às costas e defendida com a cabeça cheia de sonhos. E dúvidas, mais que muitas. “Não sabemos se podemos trazer os livros para casa, nem os horários”, diz. E certezas, outras tantas: “Quero encontrar amigas e amigos. E aprender inglês”.

“Olha! Já ali vem o senhor João Macário!” O taxista chega numa carrinha Peugeot 404 de caixa aberta com mais de 20 anos. Vem apressado, não tem o ritmo da serra, nem quer.

O pai vem até ao cimo do Casal. Não se despede dos filhos. Limita-se a observar a sua partida. “Há tempo que ela andava a querer ir para a escola. Se calhar deixá-la ir logo quando saiu de Folgosinho era uma festa para ela!”, conta de mãos entrelaçadas no cajado.

Mas eles agora vão fazer-lhe falta? À pergunta responde com um silêncio, a seguir uma interjeição, só depois a resposta: “Não estão cá, já não fazem falta, não é!?” Se é ou não, só ele sabe. Fechado em si, conforta-se com a resposta. “Eu é que sou o pastor das ovelhas. Sempre assim foi”. O ardor da vida na serra queimou-lhe o sentir. Homem de trabalho toda a vida, conta mais de 70 anos a mastigar o rigor da montanha.

O trabalho é sempre o mesmo e tem que ser feito. Rosa, se hoje não fosse à escola, ia “cortar giestas” e varrer os currais que é o que menos gosta de fazer. “Cheiram a caganitas”, justifica.

A CHEGADA À ESCOLA

Por aqui, os mais velhos pouco conhecem e o que sabem é suficiente para viverem. Rosa sabe do Mundo, sabe de outras terras, de cidades, “coisas bonitas” que quer conhecer e por isso aproveita a boleia que só a escola lhe pode dar. E vai. Serra acima, serra abaixo.

Há uma estrada de pedras para enfrentar, e só aí gasta-se mais de meia hora. A névoa envolve o caminho. Parece que estamos nas nuvens. Metida no táxi do senhor João, ao lado de Zé, Rosa vai certamente nas nuvens. Passa das sete e meia. Vestidas de verde as montanhas entrecortadas bebem agora uma luz de um amarelo azulado.

No ano passado só o Zé fazia companhia ao taxista, agora vem também a Rosa e ele acha “muito bem”. “Se isto fosse um trabalho de futuro, eu já tinha comprado uma carrinha melhor. Assim andam nesta, não meto lá o carro!”, diz sem parar. O carro de que fala é o seu táxi, um Volkswagen Passat, já com alguns anos, que o espera em Folgosinho. A vila montada como que peça a peça está encaixada na encosta Norte da Serra da Estrela. É aí que Rosa e Zé esperam pelo autocarro. Mas neste primeiro dia, o taxista passou para um lado, passou para o outro e o autocarro sem chegar. Veio mais cedo hoje, por isso é no táxi que prosseguem a viagem.

Chegados à escola, os irmãos, ambos no quinto ano, separam-se. Zé vai para uma turma de alunos com necessidades especiais, Rosa integra um grupo de crianças que seguem percursos curriculares alternativos. Tem 13 colegas - apenas três são raparigas.

Acabada de trocar a ordenha pelos livros, Rosa acha “tudo muito chique”. Fica fascinada ao saber que pode levar os livros para casa, trata-os como pequenos tesouros. “Arranjei duas amigas, tinham as duas óculos. Combinámos andar sempre juntas”, conta à saída, antes de entrar no autocarro que a leva a Folgosinho. “Gostei muito, principalmente da professora. Disse que não fazia mal eu ser a mais velha!”

O percurso que Rosa agora inicia é “reversível e a qualquer altura ela pode seguir os estudos e chegar à Universidade”, garante Isabel Saraiva, presidente do Conselho Executivo da Escola. É um “caminho alternativo”, mas ela não quer saber disso. Só quer um caminho diferente dos que conhece feitos de terra e pedras. Quer um dia ser cabeleireira ou trabalhar no “Albertino”, um conhecido restaurante de Folgosinho.

“Há muitas Rosas por aqui”, acentua Isabel Saraiva. Mas esta cresceu mais alto que as outras. Lutou, quis impor-se e conseguiu. “Estou melhor do que nunca!”, diz-nos, antes de a deixarmos lá no meio do vale, onde fica com a cabeça cheia de sonhos e à espera que a noite passe a correr.

DOCUMENTÁRIO APRESENTOU ROSA

Foi o realizador Jorge Pelicano que deu a conhecer a história de Rosa no documentário ‘Ainda há Pastores?’ filmado durante quatro anos em Casais de Folgosinho.

O filme centra-se em Hermínio, o pastor mais novo do vale, que ouve Quim Barreiros enquanto guarda cabras e ovelhas. Mas conta outras estórias como a de Maria do Espírito Santo, uma mulher de 82 anos que vive sozinha na serra, ou a de João Grazina, o pastor mais velho, cujo maior sonho é ter luz eléctrica. Rosa e Zé surgem como crianças felizes que dividem o tempo entre a serra e a escola, até que os pais proíbem Rosa de continuar a estudar e a fazem regressar ao vale para trabalhar.

O documentário inspirou a reportagem ‘Rosa Brava’, da SIC, do jornalista Pedro Coelho, também filmada por Jorge Pelicano.

TRAJECTO ATÉ À ESCOLA

De casa até à escola Rosa faz, na companhia do irmão, um caminho de duas horas. Primeiro de táxi, em estrada de montanha. Depois, de Folgosinho a Gouveia, no autocarro com outras crianças. Mas logo no primeiro dia de aulas, esse percurso teve que ser feito de táxi, porque o autocarro chegou cedo demais. Apanhou-o no regresso.

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