Fomos a Itália acompanhar os portugueses que ajudam migrantes e combatem crimes no mar.
Em rolos, costurados na roupa interior, os migrantes traziam milhares de dólares. Tentavam esconder das máfias o dinheiro com que iriam lançar uma vida nova na Europa. Famílias inteiras já tinham pago 17 mil dólares (15 mil euros) por cabeça para serem transportadas de Fethiye, na Turquia, contornando as ilhas gregas, para uma qualquer praia do sudeste de Itália. Seriam desembarcados como gado. Quem lucrava eram três ucranianos. Traficantes de pessoas.
Alugaram um iate por 2600 euros/dia e receberam 600 mil. O navio patrulha ‘Tejo’, da Marinha Portuguesa, seguiu-os durante dois dias, no Mediterrâneo Central. Abordou-os assim que o iate entrou em mar territorial de Itália. Os 45 migrantes apressaram-se: "Somos do Irão, Iraque e Síria". Sabem tratar-se de nacionalidades que garantem um asilo na Europa. São rostos de um novo fenómeno: famílias ricas (para a realidade desses países) que fogem - à guerra e às perseguições políticas e religiosas - em iates de luxo alugados por centenas de milhares de euros.
"Temos um sistema bem montado a bordo. Os nossos Fuzileiros trouxeram-nos do iate. Cinco de cada vez. Foram revistados e triados. Registámos nacionalidade, idade, género e bens. Um dos homens tinha um braço macerado e outro estava muito ansioso. A nossa enfermeira de bordo acompanhou-os e foi dada a todos uma sopa quente, feita pelos nossos cozinheiros. Como manda o protocolo da agência Frontex, foram entregues à Guardia di Finanza. O mesmo aconteceu aos três traficantes, conhecidos no meio como ‘facilitadores’". O relato do resgate dos 45 migrantes, entre os quais sete mulheres e nove crianças, nos últimos dias de julho, sai fluído a Robalo Franco, comandante do ‘Tejo’. Afinal, é uma missão "treinada dezenas de vezes".
E foi esse treino que permitiu, dias depois, detetar mais 50 migrantes que seguiam num veleiro, à noite, em águas italianas. Na embarcação encontravam-se quatro tripulantes russos, depois entregues às autoridades transalpinas.
A Domingo acompanhou ao largo de Brindisi, em Itália, a missão das três dezenas de militares da guarnição, reforçada com uma equipa do pelotão de abordagem dos Fuzileiros, uma inspetora do SEF e um elemento da Guardia di Finanza.
São homens e mulheres experientes. Veloso Domingos, o oficial imediato do navio, tem 25 anos e é o quarto mais jovem a bordo. "O dinheiro que os migrantes traziam foi todo colocado num saco individual com o resto dos seus pertences. Ser--lhes-ão devolvidos mais à frente", explica. É Domingos quem organiza tudo a bordo. "Já viemos preparados de Lisboa com talheres e pratos de plástico para alimentar os migrantes, assim como cobertores para os aquecer e lonas para os proteger dos elementos. Temos inclusive a bordo uma casa de banho portátil de forma a ‘blindar’ o interior do navio. Eles ficam sempre no convés do navio, no exterior ao ar livre, não precisam de entrar em qualquer circunstância. Assim defendemo- -nos de eventuais ataques ou de doenças que possam transmitir", afirma Veloso Domingos.
O veleiro ‘Santa Maria’, de onde foram resgatados os 45 migrantes, foi inicialmente detetado por um avião patrulha espanhol, também a operar na agência Frontex. "É uma complementaridade fundamental. Eles detetaram, nós acompanhámos, abordámos e triámos a bordo, e os italianos (autoridade local) recolheram e encaminham para a Justiça", explica Robalo Franco.
"Não é por você estar aqui que o digo, mas tenho uma tripulação fantástica", assegura o comandante, que a 9 de setembro, um dia depois de o ‘Tejo’ regressar à Base Naval de Lisboa, entrega o navio a outro comandante. Robalo Franco vai estudar. Um curso que lhe permitirá a promoção mas, também, mais tempo em terra. O comandante é um veterano em missões no Mediterrâneo Central. Em 2014, como imediato do patrulhão ‘Viana do Castelo’, resgatou centenas ao sul de Itália. Diz que nunca irá esquecer a imagem das crianças, felizes, a ajudar os marinheiros a dobrar os cobertores com que os migrantes foram aquecidos ao subirem a bordo. "Ainda emociona só de ver as fotos", desabafa. Os militares da Marinha são homens e mulheres firmes. Mas o coração de pai, mãe ou irmão dá sempre sinal. Bate ao ritmo das emoções, mas não do mar que não raras vezes castiga quem busca o sonho europeu.
"A missão agora é diferente. Naquela zona (entre Itália e Líbia), apanhávamos botes com centenas em desespero. Nos setores que agora nos estão atribuídos servimos de tampão à imigração ilegal realizada por meio de iates que saem da Turquia", explica o comandante. Nessas embarcações seguem principalmente famílias endinheiradas, que se colocam nas mãos de traficantes ucranianos, russos ou turcos. Há médicos e engenheiros a arriscar tudo. "É uma imigração ilegal mas de luxo, comparada com outras em que as pessoas são colocadas, sob ameaça de espingardas e depois de terem pago, em botes já a afundar…", conta um militar. Os crimes mais graves acontecem em zonas da Turquia, mas principalmente na Líbia, onde a Marinha italiana tem uma ação de força que, em conjunto com o mau tempo e confrontos entre traficantes fez diminuir, em duas semanas, as tentativas de migração.
Até 30 de julho foram intercetados 95 085 migrantes no Mediterrâneo Central. Pouco mais que no mesmo período de 2016. Ainda assim, 2200 morreram ao tentar chegar à Europa em botes de madeira ou borracha que naufragaram. "É um negócio com a vida humana. As máfias descarregam as pessoas no mar, junto a navios de Organizações Não Governamentais ou das Marinhas a operar no âmbito da Frontex, e depois voltam para recuperar os barcos e os motores", assinala um agente.
As operações especiais
Alguns daqueles que conseguiram sobreviver às máfias e ficar na Europa podem estar em Brindisi. A pequena cidade de 80 mil habitantes no sudeste italiano, no ‘calcanhar da bota’ da Península Itálica, esconde um barracão onde vivem centenas de migrantes. A maioria veio da África negra, principalmente da Nigéria. Não é algo que os locais gostem de mostrar. Afinal, a poucas centenas de metros, famílias com muito dinheiro passeiam junto ao mar. Aproveitam o calor da noite. Elas com vestidos leves a mostrar os bronzeados. Eles de camisas Armani. Comem gelado e vão dormir aos seus iates de centenas de milhares de euros. Quando se deitam, estarão os migrantes a levantar-se para apanhar os autocarros que os irão levar do barracão até às plantações onde trabalham no duro e são explorados pelos patrões italianos.
Uma realidade que não passa ao lado dos sete agentes do Grupo de Ações Táticas (GAT) destacados em Brindisi. São a elite da Polícia Marítima portuguesa. Seis dias por semana, saem para o mar às nove da noite em ponto. Só regressam às nove da manhã. Doze horas numa lancha em missões classificadas. "Não posso revelar pormenores sobre as ações em que estamos envolvidos", atira à partida o chefe da equipa do GAT. Esta unidade de operações especiais, pouco divulgada em Portugal, é usada quando o caso "vai além das capacidades" de outras polícias. "Treinamos e estamos preparados para tudo", assegura o chefe. Seja abordar um cargueiro que trafica droga, ou tomar um cacilheiro cheio de reféns. Em Lisboa, costumam fazer exercícios no Bugio, onde o mar bate e gera condições "difíceis e desgastantes". "Somos lançados no mar, totalmente equipados, ficamos um bom tempo e depois a lancha recolhe-nos um a um. É duro", descreve.
Brindisi foi no império romano a ‘porta do Oriente’. Era lá que terminava a Via Ápia, a principal estrada da antiga Roma. Duas colunas romanas marcam o local. A sua posição estratégica fez com que chegasse a ser capital de Itália alguns meses durante a II Guerra Mundial. É que a Albânia está logo ali. Uma travessia de apenas 100 quilómetros através de mar por norma calmo e temperatura tropical. Cenário ideal para o crime organizado. Naquele pequeno país balcânico multiplicam-se as redes de tráfico de droga e armas. Antes de ser empenhado na missão do veleiro ‘Santa Maria’, o ‘Tejo’ seguiu um cargueiro com 80 toneladas de tabaco de contrabando. A 4 de agosto, estava a Domingo em reportagem no local, foi apanhada uma embarcação com mais de duas toneladas de haxixe. A maior apreensão italiana em dez anos.
Os agentes do GAT operam com armas de guerra e equipamento de visão noturna. Movimentam-se numa lancha rápida enviada de Lisboa, por estrada. A zona é um ninho de criminosos. Razão pela qual os italianos solicitaram à agência europeia Frontex, e esta a Portugal, uma unidade altamente treinada. "Isto é bonito. Parece um postal. Mas só de vista. Acontece muita coisa aqui ao largo. Estamos em Brindisi para colaborar com as autoridades italianas e a Frontex", explica o chefe. Na rua, os agentes do GAT passam despercebidos. São discretos e simpáticos. A maioria também esteve em missão na Grécia, na ilha de Lesbos. "São realidades completamente diferentes. Lá, atuávamos principalmente na salvaguarda da vida humana, resgatando migrantes em dificuldades na travessia. Aqui caçamos criminalidade organizada", descreve um dos elementos.
‘Tejo’ e GAT são os rostos, respetivamente muito e pouco visíveis, da participação portuguesa na operação Triton. Uma ação da Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex). Um empenhamento muito elogiado pelos italianos e pela União Europeia. "Todos gostam de trabalhar com os portugueses", assegura David, italiano, oficial de ligação da Guardia di Finanza a bordo do ‘Tejo’. O pouco tempo de lazer a bordo do patrulha é passado em convívio. Nas salas de praças e sargentos estão representados os clubes preferidos da tripulação: Benfica; Sporting; FC Porto e Boavista. Robalo Franco é do Sporting. Os praças ouvem Pink Floyd e Coldplay. Os sargentos preferem fado. Todos os dias há uma música de José Cid que passa "pelo menos cinco vezes", lamenta o imediato.
Num compartimento à proa do navio, junto aos frigoríficos extra para "reforçar a capacidade de sustentação" do navio e guarnição, os cinco Fuzileiros do pelotão de abordagem montaram um ginásio. São os primeiros a entrar e os últimos a sair quando há ação. Abordam embarcações em passos arriscados. Não lhes falta agilidade apesar de carregarem sempre as armas e mais 30 quilos de material. "Quando estamos em missão, com o calor que aqui faz [a sensação térmica chega aos 40ºC com humidades de 90% durante a madrugada], suamos tanto que as roupas ficam a pesar mais um quilos", descreve o sargento da equipa do pelotão de abordagem. Mas é para lidar com esses desafios que treinam todos os dias. "Estamos sempre prontos!", assegura o fuzileiro.
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