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Três vidas segundo religiões diferentes

João Braga canta fado. Samuel Tuaty dirige uma consultoria. Abdool Vakil é banqueiro. Três homens, três vidas, três religiões diferentes. Católica. Judaica. Muçulmana.

07 de outubro de 2007 às 00:00

Quis ir preparado para a viagem da morte. Recebeu a Extrema Unção e está vivo. João Braga. Quando, há 22 meses, foi ao Hospital da CUF jamais pensou que o mal-estar gástrico era, afinal, um enfarte agudo. Logo que o médico o informou de que o seu coração teria de ser aberto um vendaval de sentimentos assolou-lhe o peito. Medo. Pena. Revolta. Mas a fé nunca tremeu. “Fui roubar umas coisas ao Pai Nosso: ‘Seja feita a Sua vontade’.” Se fosse vontade divina de que chegara a sua hora, partiria de mãos resignadas. A semana que antecedeu a operação ajudou-o a secar as lágrimas. A boa-disposição da equipa médica e o humor do cardiologista José Fragata em muito o ajudaram a descontrair da aflição. Ciente do perigo, pediu ao seu amigo, o cónego João Seabra, que lhe administrasse os últimos sacramentos. Na altura, confessa, “fez-me impressão pedir”, mas no momento em que os recebeu fez-se luz de placidez. Depois de encomendar a alma a Deus, entrou no bloco operatório e, para júbilo do ferrenho sportinguista viu paredes verdes. A nesga do efeito da anestesia, não esquece o que lhe disseram: “Goze agora porque a partir de Janeiro a sala vai ser pintada de vermelho!”

A sala da sua casa tem quadros. A Amália Rodrigues. Livros. Discos. Cruzes só a da Cruz Vermelha, que está arrecadada num estojo. A crença não se mede na cifra de imagens sacras expostas. João Braga, 62 anos, casado, dois filhos, alfacinha, nasceu no seio de uma família católica, estudou em colégios de cariz religioso, mas não foram estes os factores que determinaram a sua devoção. “A minha fé não é cega, é lúcida”.

FERNANDO PESSOA INCENTIVA

Aos quinze anos encontrou na “Mensagem” de Fernando Pessoa a frase bendita: “Devemos ser tudo de todas as maneiras”. Fez vontade ao poeta. Viajou. Leu o Alcorão, a Torá e o Novo Testamento. A conclusão veio séria: “A única figura que não dispunha de razões para mentir era Jesus Cristo”. Que ninguém pense que estamos diante de um beato de sacristia ou de um Católico Apostólico Romano isento de dúvidas. “Quando faço certas perguntas, há padres meus amigos que dizem que eu estou a ser cínico”. Há outros membros do clero que nunca contarão com a sua amizade: “No outro dia, saí porta fora da igreja de Santiago do Cacém”. Irritou-se com o dedo espetado de um clérigo que, em plena missa, classificou todos de pecadores.

A senda de fadista, e as senhoras que esqueçam os pleonasmos, “é de pecado e de devassidão”. Contudo, uma teoria serve de almofada: “Eu confio que Nosso Senhor tem um senso de humor muito grande, e se nos deu os instrumentos é capaz de não ficar muito aborrecido quando nós os usamos”.

De convicções monárquicas, acérrimo defensor do “Não” ao aborto, contra a eutanásia, sem paciência para casamentos de gays e lésbicas, relativamente a métodos anticoncepcionais, e na parte que lhe toca, “não uso, por falta de jeito”. Mais importante do que a fraca perícia é o princípio capital: “A vida é intocável”. Para evitar insónias, considera que os homens deviam ser instruídos sobre os dias em que as relações sexuais não acabam em gravidez. O método natural, que já ocasionou a vinda de resmas de bebés ao Mundo, se levado à risca “é seguro”. Se o ciclo menstrual da mulher for irregular, também é seguro que as contas desandem pelo cano abaixo. Nesse caso, “azar, paciência”. E se a mulher intrujar os cálculos “que se aguente!”. Pode aguentar ou bater à porta do parceiro. “Tudo isso é verdade, mas a criança está sempre protegida.”

Verdade é um homem de direita cantar poemas de um amigo que é de esquerda. “Manuel Alegre é patriota”. O trovador escreve a Pátria e o fadista canta-a com gosto. Menos gosto tem pela alínea da Constituição que afirma que Portugal é um Estado laico: “Julgo que é um bocadinho ingrato. Se hoje somos uma nação independente devemos bastante à religião católica”.

Não. Nem vê-lo por um canudo. O Antigo Testamento. A alergia assenta na negação de um povo eleito: “Deus – entidade de bondade extrema – não iria eleger um, teria eleito todos”.

MEZUZAH PROTEGE

No umbral da porta da casa de Samuel Tuaty, um pequeno rolo de pergaminho que contém trechos da Torá está pregado. Mezuzah é a caixa que os protege. Na sala, a sinagoga de Tomar não sai da tela. Na cabeça, a kipá – solidéu – não precisa de gancho para não cair. O profeta que conduziu o povo judeu não só vive emoldurado na parede. Está na sua admiração: “Moisés foi um líder inquestionável”. O vice-presidente da consultoria Capgemini, de 43 anos, é directo: “Nós, os judeus, somos o povo eleito”. A crença que sente por Deus – ser superior e inspirador – enquadra-se nesse conceito. E não vê que essa eleição prejudique as outras doutrinas. “A tolerância no Judaísmo é muito grande”. O fascínio pela Torá centra-se na admiração de ali ver reflectidas questões que são actuais. Entenda-se: “O Judaísmo não é só uma religião.” É uma cultura. Uma forma de estar na vida. Uma maneira de pensar. Samuel, judeu sefardita, nascido numa família religiosa, seguiu a ortodoxia judaica até aos 15 anos. O motivo de ter interrompido o cumprimento do Sábado – dia de descanso e de reflexão – recai em diversos factores. “Por força da vida, do dia-a-dia, dos estudos”. Enquanto aluno do Liceu Pedro Nunes, nunca ninguém lhe franziu a testa por não ir às aulas nesse dia, mas foi nesse tempo que de ortodoxo passou a tradicionalista.

“É nas tradições que eu mais me identifico”. A sua boca só conhece alimentos kosher – os que estão de acordo com a Torá. Jejua no Yom Kipur (Dia do Perdão). Rege-se pelo calendário gregoriano mas comemora Roshashanah (Ano Novo judaico). Na Pessach (Páscoa judaica), o chametz (alimento fermentado) nem entra pela fechadura. “Embaraços no trabalho? Não!” Nem mesmo aquela vez, faz 10 anos, tinha recém-abraçado a empresa quando, em plena Páscoa, teve que fazer uma viagem de negócios a Londres. “Preparei a comida para levar”, contudo, o farnel esgotou. Pior: as reuniões terminaram à hora em que os restaurantes kosher tinham no ‘adito’ o letreiro ‘closed’. “Só me restou uma alternativa: acompanhar o meu colega”. Teve sorte. O jantar era buffet. Os ornamentos dos pratos serviram-lhe de refeição: uvas, curgetes, meia rodela de laranja.

Os colegas não estranham, muito menos os amigos, que Samuel não conheça o travo de um bife com natas. A tolerância é o cartão nacional. “Apesar de haver episódios pontuais de vandalismo, Portugal é um país tolerante. Os trogloditas que profanam cemitérios não conseguem assolar as relações, desde há muito consolidadas. A memória atira exemplos. O seu pai, que durante meio século foi o responsável do talho israelita, era amigo de elementos da comunidade islâmica. A amizade do rabino Abraham e do cardeal Dom António Ribeiro. Samuel é judeu e é português. Quase ao mesmo tempo. Depois de Portugal, a maior afinidade que nutre é por Israel. Mas que não se misture o Benfica e a Selecção Nacional com o ideal da existência de uma pátria ancestral. Na juventude foi ao Estádio da Luz assistir a um jogo de futebol e até levava um cartaz para animar a equipa israelita. Ainda o árbitro tinha acabado de soprar no apito “já estava a torcer por Portugal”.

Quando concluiu o curso de Matemáticas Aplicadas quis fazer uma pós-graduação em Gestão na terra que a Torá garante ser a prometida mas a morte prematura dos pais adiou o sonho. Fê--la mais tarde na Universidade Católica de Lisboa. E foi em Lisboa que conheceu a mulher com quem casou. “Casar com alguém que não era judia não estava nos meus planos”. Já em jovem, o desígnio não o largava: queria educar os filhos no mesmo meio familiar, comunitário e religioso que o seu. Após uma longa caminhada, Sofia converteu-se. O casamento realizou-se na sinagoga Shaaré Tikva, em Lisboa. Nasceram o Jaime e a Ana. Ganharam o nome dos avós paternos, em nome da memória e da tradição.

CONHECER A NORA

“Casar com uma pessoa que não pertencia à comunidade não era normal” e foi motivo suficiente para que a mãe de Abdool Vakil viesse de África para conhecer a futura nora. Casaram pelo civil. Naquele evo, nem uma das trinta e quatro mesquitas que hoje existem em Portugal estava construída. No Islamismo, para se realizar um casamento a conversão não é uma obrigatoriedade, contudo a vontade da noiva não deixava dúvidas: “A minha mulher queria ser muçulmana”. Confirmaram os votos numa mesquita na cidade das luzes há 46 anos.

O dirigente da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL) nasceu em Moçambique, em 1939, no seio de uma família muçulmana sunita. Aos 17 anos veio para Lisboa estudar no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. O Prof. Cavaco Silva foi seu colega de carteira. Ficaram amigos. A estadia em Portugal não se reduziu aos estudos. Abdool Vakil seria, em 1968, um dos fundadores da CIL. Nesse ano, o economista, de aliança no anelar, regressa a Moçambique. Esperavam-no os negócios familiares. No entanto, seria a banca que lhe reservava um lugar de destaque. Não acredita na astrologia, “Deus é que sabe”, mas pondera as coincidências dos astros. Há muitos anos, enquanto vivia em Londres, achou piada à voz de um computador que o desafiou a inserir os seus dados de nascimento. Resultado: o geminiano Abdool Vakil seria banqueiro. Bingo!

REZAR

“Fácil”. Rezar cinco vezes ao dia. A secretária já sabe o significado quando lhe diz ‘dê-me cinco minutos’. O presidente do Banco Efisa e administrador do BPN vai para o seu gabinete, onde existe um recanto dedicado à oração. Um tapete faz de solo sagrado. Descalça-se. Curva-se em direcção a Meca e ora a Deus. Quando a agenda aperta, o Alcorão não obriga a stresse. “Deus é grande, misericordioso e compreende”. Se não conseguir completar as cinco orações no escritório, fá-las quando chegar a casa. “Deus é mais compreensivo do que os homens”. Nos meses que se seguiram ao ataque às Torres Gémeas, compreensão era o que faltava. A convite de muitas escolas e instituições, o rosto da CIL correu o País para elucidar aqueles que apostam que Islão rima com terrorismo. “Infelizmente, há fanáticos em todas as religiões”. Até há doidos no laicismo. As criaturas que assassinam com o apelido de Deus, para Vakil, não são e nem nunca foram muçulmanos. “Se fossem não matavam em nome de Deus misericordioso”.

O homem que fundou o Fórum Abraâmico crê no bom senso e no equilíbrio. “Se as pessoas podem chegar a sua voz e os seus sentimentos com palavras, qual é a razão de usar a violência?”

Os preceitos de face religiosa, que lhe proíbe ingerir certos alimentos, carne de porco e sangue, são cumpridos. “Nós, os religiosos, não discutimos as ordens de Deus”, apesar de desconfiar que subsistem motivos dietéticos: “Eu não conheço nenhum médico que recomende como dieta a carne de porco”.

Os trinta dias do Ramadão em nada alteram a sua rotina profissional. Da aurora até ao pôr-do-Sol nada é ingerido. As reuniões seguem. Trabalhar também é um acto de praticar os preceitos. “Deus disse para fazermos a vida normal e demonstrar sacrifício”, desde que a saúde não fique em risco. A custódia da existência humana dada por Deus acarreta obrigações: cuidar do corpo e da alma. Como tal, o suicídio é condenado. “Deus dá e Deus tira.”

Quem viajar durante esse período, diz o livro sagrado, iliba-se de jejuar. Reporá mais tarde. Apesar de esta prerrogativa estar prevista, Vakil prefere “fazer tudo de seguida. O Satanás anda aí...”.

O Diabo que viesse e escolhesse, naquele almoço onde o menu era lombo de porco e arroz de cabidela. Os almoços institucionais são, com antecedência, tratados pelas secretárias. Porém, nesse dia ficou de estômago vazio. O dono da festa corou mas Vakil descontraiu-lhe: “Nunca se deve criar embaraços ao anfitrião”. Brinde fá-los com água engarrafada, ‘del cano’ ou com sumo. A certeza nunca arreda pé: “Não vou brindar com algo em que eu não acredito.”

"EU CONFIO QUE DEUS NOSSO SENHOR TEM UM SENTIDO DE HUMOR MUITO GRANDE", João Braga (fadista)

A DESCOBERTA DO FADISTA

O fadista João Braga encontrou aos 15 anos, na “Mensagem” de Fernando Pessoa, a frase que lhe guiou os passos ao longo da vida: “Devemos ser tudo de todas as maneiras”.

Por isso, viajou, leu o Alcorão, a Torá e o Novo Testamento. Concluiu: “A única figura que não dispunha de razões para mentir era Jesus Cristo”.

"INFELIZMENTE, HÁ FANÁTICOS EM TODAS AS RELIGIÕES", Abdool Vakil (Presidente do Banco Efisa e administrador do BPN)

OS COLEGAS VAKIL E CAVACO SILVA

O presidente do Banco Efisa, e também dirigente da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), nasceu em Moçambique em 1939. Aos 17 anos veio estudar para Lisboa, no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, onde teve como colega de carteira o actual Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. A partilha dos bancos universitários cimentou a amizade entre ambos.

"NÓS, JUDEUS, SOMOS O POVO ELEITO", Samuel Tuaty (Vice-presidente da consultoria Capgemini)

UM CONSULTOR EM LONDRES

Há dez anos, em plena Páscoa, teve de fazer uma viagem a Londres. Samuel Tuaty preparou um farnel para levar. Mas os mantimentos do vice-presidente da Capgemini depressa esgotaram e à hora a que as reuniões terminaram os restaurantes kosher tinham no letreiro, na porta, ‘closed’. A fome foi remediada num buffet com uvas e courgetes.

COMO VÊ FÁTIMA NOVENTA ANOS SOBRE OS ACONTECIMENTOS QUE A TORNARAM LOCAL DE PEREGRINIÇÃO?

- Fizemos a mesma pergunta ao católico João Braga, ao judeu Samuel Tuaty e ao muçulmano Abdool Vakil. Eis as respostas:

JOÃO BRAGA

Vejo Fátima de duas maneiras: uma, a que é sinal de esperança, de destino de peregrinos, de oração e de recolhimento; a outra, que é o sítio para onde fugiram os vendilhões que Jesus Cristo expulsou do templo – basta olhar para a mastodôntica basílica que se vai agora inaugurar, que só serviu para roubar espaço aos peregrinos no santuário e encher os bolsos de quem lucrou com a duplicação dos custos previstos no orçamento inicial.

SAMUEL TUATY

Cada vez mais Fátima é um local de culto e de peregrinação do mundo católico e, obviamente, tem todo o meu respeito. Neste aspecto, tem sido bem cuidado e promovido pela Igreja Católica, merecendo cada vez maior destaque como destino internacional de peregrinação. Já não concordo com a mediatização que se faz à volta das datas de peregrinação, com entrevistas, directos televisivos, etc... Aqui parece-me que a Igreja Católica poderia ter um papel mais activo, no sentido de manter maior reserva quanto à privacidade destes momentos. Concordo com a divulgação das cerimónias religiosas mas não com as imagens individuais de peregrinos no cumprimento das suas promessas.

ABDOOL VAKIL

Nós, os muçulmanos, muito respeitamos Fátima, que é um lugar sagrado dos nossos irmãos católicos. A Virgem Maria, mãe de um profeta do Islão, tem todo o nosso respeito.

- 9,38 milhões de católicos em Portugal, isto é, 89,8 por cento da população do País (que é de 10,5 milhões), segundo dados publicados pelo Vaticano no ano passado referentes à expressão da fé católica no Mundo.

- 40 mil muçulmanos vivem no País, a maioria repartida pela capital portuguesa e sobretudo por Odivelas (onde existe também uma das seis mesquitas construídas no território nacional).

- 1000 judeus compõem a maior comunidade em Portugal, a de Lisboa. Há ainda comunidades no Porto, Faro e Belmonte, mas com muito menor expressão. Existe apenas uma sinagoga.

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