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Uma caldeirada a 12 mãos

Seis gastrónomos foram às compras e cozinharam um dos pratos mais apreciados à mesa dos portugueses.

21 de julho de 2013 às 15:00

Pelas oito horas da manhã, o mercado de Alvalade, em Lisboa, já fervilha de cheiros e muita cor. As bancadas repletas de legumes, frutas, peixe e produtos regionais chamam a atenção da clientela fiel e de outra, mais espontânea, que nos último tempos começa a afluir a estes espaços de bairro. Quem ali entra pela primeira vez destaca "a qualidade e variedade" dos produtos expostos, os outros, que ali fazem compras diárias há mais de 30 anos, garantem conhecer o percurso "quase de olhos fechados".

À porta do mercado marcam encontro seis especialistas da gastronomia portuguesa, que ali procuram os ingredientes certos para confecionar uma das especialidades mais apreciadas na mesa lusitana: a caldeirada de peixe. Desta vez, vai ser cozinhada a 12 mãos.

Segredos não há para quem tem prática neste prato. "O ingrediente especial é mesmo o peixe", explica o chef Cordeiro, que a par de António Alexandre, António Boia, Bertílio Gomes, Orlando Esteves e do consultor gastronómico Virgílio Nogueiro Gomes constituem o júri da iniciativa ‘A Mesa dos Portugueses'. Lançado pelo Correio da Manhã, este concurso nacional convida os leitores do CM a participarem com as receitas da família e assim ajudar a compilar o rico receituário regional e estimular a confeção de pratos com produtos de origem portuguesa.

O SEGREDO DO SABOR

Para levar à mesa uma boa caldeirada "todos os peixes funcionam, mas o tamboril é imprescindível", nota Orlando Esteves, chef natural de Coimbra, que se orgulha de assinar o famoso prato de arroz de tamboril e de ter ensinado os japoneses a apreciar a gastronomia portuguesa.

Tubarão lusitano, o nome científico agora dado ao cação, tamboril, robalo, raia, cantaril, lulas, amêijoas e camarão saltam da bancada de Teresa Cruz, 40 anos de vida e outros tantos de mercado de Alvalade, para o saco destes novos clientes. Os gastrónomos tocam, cheiram e pesam com as mãos. Outra postura têm os compradores ‘menos profissionais', que ali fazem fila e aceitam sempre as indicações da peixeira, herdeira da bancada, e muita da clientela fiel do tempo dos pais.

"Isto é tudo fresquinho, ainda cheira a mar, e apesar das pessoas terem hoje menos poder de compra, continuam a comprar peixe fresco, pois sabem que assim garantem a qualidade em tudo o que comem", frisa, sem mãos a medir entre a azáfama natural do mercado.

Enquanto ajuda a selecionar os ingredientes, o chef António Boia, capitão da Equipa Olímpica Júnior da Culinária, que fez escola e carreira em França, desvenda alguns dos segredos da fascinante culinária portuguesa. "Temos peixe fantástico, em toda a costa atlântica, e uma agricultura provinciana, artesanal, que dá um toque de sabor aos produtos. Cabe-nos a nós transformá-los", diz, enquanto elogia a diversidade de modos de confeção praticada na cozinha dos portugueses, "desde a cozedura hermética, à cataplana, ao pote de ferro".

À cesta de compras exigida para a confeção do prato típico das zonas marítimas, António Alexandre, chef executivo dos hotéis Marriot, e em 2011 distinguido o melhor do ano em toda a cadeia, faz questão de juntar "um bom azeite", batata e cebola. Orlando Esteves destaca "o tomate, a pimenta e o piripíri". E José Cordeiro, consultor gastronómico do Altis Belém Hotel & Spa, já premiado com a famosa estrela Michelin, frisa que "com mais ou menos diferenças, mais rica ou mais pobre, a caldeirada é quase sempre feita da mesma maneira. Antigamente, as espinhas iam à mesa. Hoje, são usadas para o caldo, porque dão muito sabor. A nossa cozinha está mais criativa, a apresentação do prato é importante. Mas a fome é igual para todos", diz entre gargalhadas o especialista que herdou costumes de Angola, onde nasceu, e de Trás-os-Montes, onde cresceu.

RECEITA DE FAMÍLIA

Enquanto discutem o preço da cereja, que varia entre os cinco e os 2,50 euros o quilo, um grupo de frequentadores assíduos do mercado de Alvalade discute a crise na coligação, as más notas dos mais novos e o ‘problema' de como os ocupar nos tempos livres. Entre as bancadas, encontram-se pais jovens com os filhos pequenos e avós pacientes que ali se distraem com os netos .

Foi numas férias de verão, em casa de familiares, que Bertílio Gomes, chef de cozinha do Chapitô, cujo currículo inclui vários espaços de referência na capital e a tarefa de programador gastronómico do programa Allgarve, aprendeu a cozinhar. Particularmente inspirado pela cozinha do Sul do País, e pelas ervas aromáticas, nota que "os portugueses são apurados no paladar por natureza" e que cada vez mais "procuram a tradição".

E no que hoje chega à mesa dos portugueses, são as avós - frequentadoras assíduas dos mercados de bairro - que assumem o papel "de uma verdadeira instituição, na culinária e no sentido cívico", frisa Virgílio Gomes.

Na edição anterior do concurso ‘A Mesa dos Portugueses', o gastrónomo natural de Bragança encontrou verdadeiras relíquias nas receitas "guardadas há gerações na mesma família. Há receitas muito autênticas, que parecem simples, mas são muito genuínas também". Dono de uma biblioteca com mais de cinco mil volumes sobre este tema, o investigador de história da alimentação assinala que a cozinha portuguesa se destaca por "apresentar uma enorme variedade, de região, para região, cujos microclimas criam produtos autóctones muito variados". E para o autor de ‘Transmontanices - Causas de Comer' só existem "dois tipos de comida, boa ou má".

COZINHA CHEIA

Cozinhar a doze mãos parece tarefa arriscada mas acaba por não ter segredos para os seis especialistas. Numa cozinha profissional do Parque das Nações, unem truques e sabedorias para confecionar a caldeirada ao gosto de todos. "Entendemo-nos bem e estamos habituados a cozinhas com muita gente", salienta José Cordeiro.

Aventais colocados, utensílios a postos, há que coordenar as diferentes tarefas: uns preparam os ingredientes, outros fazem o refogado e outros ficam de olho no tempero, explica o chef que assume não ser grande apreciador de comida muito condimentada por preferir o paladar natural de cada produto.

Bertílio Gomes encontra inspiração na cozinha regional e por isso sente-se em casa a cozinhar um prato tipicamente português. Sem demoras, toma a seu cargo o amanho do peixe. "Gosto de pratos tradicionalistas e, por isso, entendo que na caldeirada não há nada para inovar", diz, enquanto seleciona o peixe que, na panela, deve manter espinha e pele. "Este fígado de tamboril vai dar um ótimo sabor", garante o chefe de 37 anos que neste prato gosta também de incluir mexilhão.

António Alexandre, apaixonado pela culinária desde a adolescência, nasceu nas Caldas da Rainha e iniciou a sua carreira na Nazaré. Foi aí, mesmo junto ao mar, que aprendeu um truque usado desde há muito por quem cozinha caldeiradas em grande quantidade: "colocar bivalves no fundo do tacho, para não pegar".

E adianta: "A cozinha é uma partilha e a minha colaboração no júri de ‘A Mesa dos Portugueses' é também para ajudar a partilhar alguns dos segredos da nossa gastronomia, os produtos, as receitas antigas e familiares, que encerram sempre muita sabedoria".

Num tacho, grande de preferência, juntam azeite, alho, cebola cortada às rodelas, e amêijoas "para não pegar no fundo". Como numa orquestra bem ensaiada, os chefs vão colocando, numa primeira camada, os pimentos "verdes e vermelhos para dar cor", tomate, colorau e pimenta. Seguem-se as batatas e o peixe, salsa, coentros, vinho branco, louro. Assim se faz uma caldeirada a doze mãos.

"Sempre foi um prato espontâneo", explica Virgílio Gomes, enquanto a cozinha se enche de aromas que avivam o paladar. "As caldeiradas começaram por ser uma comida de bordo, confecionada pelos pescadores com o peixe que sobrava", adianta.

Passados os 30 minutos, mais ou menos necessários , a caldeirada "ainda deve repousar um pouco, cerca de 25 minutos, para libertar a pressão da fervura", frisa Orlando Esteves.

Depois, num piquenique improvisado ao ar livre, debaixo de umas árvores frondosas, no Parque das Nações, em Lisboa, aprecia-se o resultado final.

"Isto vem provar que este é, de facto, um prato que apela ao convívio. A verdade é que ninguém faz uma caldeirada sozinho", garante o chef Cordeiro.

COZINHA-SE MUITO BEM NA CASA DOS PORTUGUESES

No ano anterior, o concurso ‘A Mesa dos Portugueses' recebeu mais de 600 receitas. O júri não teve a vida facilitada, visto que se comprovou que os portugueses cozinham com muita criatividade nas suas casas.

João Guterres

O grande vencedor da primeira edição concorreu com um anho no forno de Valença.

Carla Carvalho

A concorrente recuperou uma velha sopa de carolos da avó, feita com milho moído.

Ana Coimbra

A terceira classificada cozinha o seu polvo com azeite e a temperaturas muito baixas.

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