Por norma, só se veem as obras de arte nos museus e galerias mas elas nascem nos ateliês
O ateliê do artista plástico José Barrias, em Milão, foi, muitos anos antes, um laboratório de peles, propriedade do sogro e que lhe foi cedido quando a filha nasceu. No ateliê da pintora Ana Vidigal, em Alfama, Lisboa, funcionou um Centro Escolar Republicano.
Nádia Duvall cria agora em casa depois de ter trabalhado num prédio de quatro andares, no Saldanha, e num outro espaço, no Alto dos Moinhos, ambos em Lisboa e ambos cedidos pelo Banif, que lhe atribuiu um prémio Revelação em 2008. Foi obrigada a abandonar o último, que a própria batizara de ‘caverna’, depois do banco em causa ter sido vendido.
É de arte mas também de vida que fala o livro ‘Visita Privada’ (Ed. Guerra & Paz e Amieira Livros), que nos mostra aqueles de quem habitualmente só conhecemos a obra já exposta em museus e galerias. Entre o primeiro ateliê fotografado, o de Pedro Calapez, e o derradeiro, de Ana Jotta, passou mais de um ano.
Dalila Pinto de Almeida e Manuel Falcão aproveitaram o fascínio comum pela arte contemporânea para desafiar um conjunto de artistas a mostrar-lhes a intimidade do seu trabalho e o processo criativo de uma obra desde que nasce até que dela se despedem... quando o conseguem fazer. Em duzentas e algumas páginas também há espaço para revelações extra-arte, como por exemplo a do artista Paulo Brighenti, que conta aos autores que chegou a pertencer a uma banda, os Elastic Men, e era tão bom de bola que na altura da escola jogava melhor do que desenhava.
José Barrias mora em Milão, está casado com Cecilia, filha de um húngaro e de uma vienense, a sua filha nasceu em Milão e os dois netos em Paris.
Rui Sanches queria ser psiquiatra, mas abandonou o curso de Medicina a meio para ser artista. Já Rui Chafes fez saber que mergulha no mar do Guincho o ano inteiro e que essa é provavelmente a única situação em que se descontrai.
O escultor faz as suas obras numa oficina contígua à casa de férias que era dos pais e sente-a de tal forma como o seu espaço sagrado que no exterior mandou plantar umas dezenas de cedros para que nenhum hipotético ‘voyeur’ o possa incomodar durante o processo de criação.
"Os artistas que convidámos dispuseram-se sempre muito a abrir-nos as portas. Por norma, a Dalila [que trabalha em consultoria na área da gestão de talento] conversava com eles primeiro e eu só os ia fotografar depois de ler o texto ou o esboço do texto.
"Dizia-lhes sempre ‘eu vou tentar estar aqui como se não estivesse’. Nalguns casos falávamos, se eles queriam falar, se não eu interferia o menos possível, ficava só a vê-los trabalhar. Foi sempre um trabalho que demorou várias horas, que algumas vezes foi feito em mais do que uma ocasião, mas foi sempre recompensador do ponto de vista humano", conta Manuel Falcão, coautor de ‘Visita Privada’, que em cada ateliê e em cada artista descobriu pormenores particulares que eternizou neste livro.
"Há artistas que gostam de trabalhar com animais de estimação por perto, como Pedro Cabrita Reis (que tem um gato... e um charuto, já agora, sempre por companhia), outros para quem é importante ter a música presente, seja na forma de instrumentos [Pedro Proença tem na sua casa-ateliê um piano que às vezes é tocado pela filha] ou discos, há sempre qualquer coisa de muito pessoal nestes espaços", partilha ainda Manuel Falcão, que desde 2005 é diretor-geral da agência de meios Nova Expressão e em 2013 fundou a Amieira Livros, dedicada a projetos fotográficos.
Espaços de trabalho
"Ao longo do tempo fomos desenvolvendo esta ideia: será que as pessoas que gostam de conhecer o trabalho que está nas galerias e nos museus não gostarão de saber quais são os bastidores disto tudo? No fundo, mostramos as oficinas dos artistas, o espaço onde eles trabalham, pensam e criam. Estes ateliês são todos muito diferentes entre si: alguns artistas têm grandes espaços dedicados a esta atividade e outros fazem coexistir o seu próprio espaço de casa com o local onde trabalham", continua Falcão.
"Em alguns casos há casas que estão ligeiramente separadas da zona de trabalho, noutros há casas que estão no meio da zona de trabalho. Para todos, o que se sente é que, mesmo para os que têm o espaço de trabalho fora de casa, os ateliês são espaços muito vividos. A ideia nunca foi fazer retratos dos artistas mas sim fotografar os espaços de trabalho e a forma como convivem com eles."
Pedro Proença trouxe o ateliê para sua casa num último andar de um prédio sem elevador em Alcântara, com vista até ao Cristo Rei, enquanto Teresa Gonçalves Lobo partilhou durante dez anos um ateliê na Graça, em Lisboa, com o artista (e amigo) Raul Peres, mas a sua necessidade de desenhar sozinha fê-la procurar outro ninho, que encontrou no Chiado.
E se o atual ateliê de Julião Sarmento é desde 2000 um centro empresarial onde ele é o único artista, o seu segundo espaço de trabalho, partilhado com o também artista Fernando Calhau (1948-2002), funcionou numas águas-furtadas de onde as suas primeiras obras desapareceram. Isto porque quando terminou o Serviço Militar Obrigatório, sem dinheiro e sem emprego, deixou de ir ao ateliê por não conseguir pagar a renda e ter receio de encontrar o senhorio, que morava no andar de baixo.
Passou doze anos sem lá ir e quando a sua vida mudou não só quis ir buscar as obras que por lá tinham ficado, achava ele, à sua espera, como aproveitar para pagar todas as rendas em atraso. Em vez das obras encontrou uma idosa a morar nas águas-furtadas e que lhe garantiu nunca ter visto nenhum trabalho por ali.
Não foi, no entanto, a primeira vez que o artista perdeu tudo e se viu obrigado a recomeçar. Em 1981, um incêndio na Galeria Nacional de Arte Moderna – quando era funcionário da Secretaria de Estado da Cultura foi destacado para esse espaço, que permanecia vazio a maior parte do tempo – fez com que todo o seu trabalho ardesse.
As únicas obras que não foram consumidas pelo fogo foram as que ainda tinha na casa da ex-mulher, na rua Nova do Almada... mas que viriam a desaparecer sete anos depois, em 1988, no grande incêndio do Chiado.
A ligação às obras é sempre grande. Nádia Duvall conta no livro ‘Visita Privada’ que de algumas não consegue libertar-se, mesmo quando elas lhe saem da porta de casa, enquanto de outras nem se atreve
a tentar dizer-lhes adeus.
Cristina Ataíde considera-se desapegada das obras que vende, mas certo dia vendeu uma que, por ter estado algum tempo em sua casa antes de mudar de mãos, lhe fez falta.
A partir daí decidiu que todos os trabalhos que leva para casa não estarão à venda - se obra e criador chegam a esse grau de intimidade é porque não se podem separar; e sempre que faz novas séries de desenhos guarda um para os dois filhos.
Pedro Calapez também tem dificuldade em vender algumas obras - ou até emprestá-las para exposições, quando a elas se apega a esse ponto. "Ainda posso precisar daquela obra, está lá qualquer coisa que me vai fazer falta", explicou a Dalila Pinto de Almeida, que o entrevistou para este livro.
Disse ainda à coautora desta ‘Visita Privada’ que, apesar de se desfazer das obras quando percebe que deixa de precisar delas, faz questão de guardar trabalhos que lhe permitam perceber todas as suas fases, enquanto Pedro Cabrita Reis confessa uma relação ambivalente com as suas obras: consegue deixar ir as que vende mas, se por algum acaso as volta a ver, há uma sensação de reencontro em que uma das suas preocupações é ver se está tudo bem com elas.
Também não se acanha junto de colecionadores particulares que tenham paredes cheias de tudo e mais alguma coisa se vir um quadro seu lado a lado com um vizinho menos... bem parecido: já chegou a sugerir que o proprietário pendurasse a sua obra noutro sítio da casa.
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