Cabo do ascensor histórico cedeu, travões não funcionaram e cabina desceu desamparada, em vinte segundos, 180 metros da calçada, atingindo um prédio a 49 km/h.
Muitos mexeram no elevador e saberiam que a tragédia poderia acontecer. Mas ninguém atuou. E isso custou a vida a 16 pessoas. O ascensor que há 140 anos conquistou o desnível de 260 metros da calçada da Glória, em Lisboa, afinal não conseguia parar no caso de avaria catastrófica do cabo que, através de contrapeso, o agarrava à vida e fazia mover. Os sistemas redundantes não fizeram a cabina travar em segurança. Os que o usam como passageiros e os turistas, que o levaram ao mundo - em postais; publicações de redes sociais; e agora, tristemente, em notícias da tragédia -, jamais imaginaram possível que, partido o cabo, nada conseguisse agarrar aos carris as duas cabinas que todos os dias subiam e desciam dos Restauradores para o Bairro Alto - galgando em pouco mais de um minuto um desnível de 45 metros com inclinação média de 18%.
A 3 de setembro de 2025, às 18h03m13s, esse impensável ocorreu. Feitos dois metros do percurso, o cabo desprendeu-se da cabina 1, que iniciava a descida, e essa carruagem veio calçada abaixo. No interior estava o guarda-freio e 26 passageiros, entre eles um menino. O guarda-freio, ao sentir a aceleração pelo rompimento do cabo, menos de um segundo depois desta acontecer, colocou no máximo o travão pneumático (que seria redundante ao de emergência automático). Nada reduziu a velocidade e, 3 segundos depois, tentou novo travão: deu 12 voltas ao volante do freio manual às rodas.
O elevador continuou a descer, acelerando até aos 49 km/h (a sua velocidade máxima de funcionamento era de 11,5 km/h). Vinte segundos e cerca de 180 metros após o início da quase queda livre, na última curva à direita, descarrila, tomba para a esquerda e embate em dois postes, num edifício e depois em outro. A estrutura em madeira da cabina 1 desmanchou-se como um castelo de cartas, encarcerando os passageiros. Resultado: 16 mortos, 12 feridos graves e nove feridos ligeiros. Uma tragédia que Lisboa não experienciava desde que, em 1963, o telhado da estação do Cais do Sodré desabou matando 49 pessoas.
As 16 vítimas
A dimensão da tragédia do dia 3 de setembro de 2025 levou horas a ser revelada. O acidente do elevador da Glória matou André Marques, o guarda-freio, encontrado ainda agarrado ao volante do travão; Pedro Trindade, Alda Matias, Ana Paula Lopes e Sandra Coelho (portugueses e funcionários da Santa Casa da Misericórdia, que saíram do trabalho e entraram no elevador para apanhar o Metro nos Restauradores); Blandine Daux e André Bergeron (canadianos); Kayleigh Smith e William Nelson (britânicos); Heather Hall (norte-americana); Aziz Benharref (marroquino); Andrew Young (britânico); um casal da Coreia do Sul; uma mulher suíça; e um ucraniano em Lisboa refugiado da guerra. As vítimas mortais tinham entre os 36 e os 82 anos.
A única criança a bordo, um petiz de 3 anos filho de um casal de turistas da Alemanha, foi retirado quase ileso dos destroços, pelos braços de um agente da PSP que ali perto fazia uma rusga contra carteiristas. Felizmente, os pais do menino sobreviveram apesar de feridos graves.
O elevador tinha, no dia do acidente, realizado 53 viagens. A cabina acidentada (com capacidade máxima para 42) teve uma ocupação média de 22 passageiros.
Tudo o que se sabe
“Como foi possível?”. A questão é imediata. Por que é que o elevador histórico, que transportava em média 2500 passageiros por dia em pouco mais de 160 viagens, desceu desgovernado a calçada da Glória? As respostas, já sumariamente dadas no início deste texto, devem ser procuradas desde, de acordo com especialistas, o pecado original cometido na altura da eletrificação do elevador, em 1915. Há 110 anos, os travões passaram também a atuar de forma elétrica - quando o cabo parte, corta a eletricidade às cabinas e isso deveria fazê-las parar (o sistema atuou mas a paragem não sucedeu); e as redundâncias manuais revelaram-se insuficientes; devendo os inquéritos - além do criminal, do Ministério Público, há o técnico do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) - ajudar a responsabilizar alguém por, num centénio, essa fragilidade nunca ter sido corrigida, apesar de dever ter sido evidente para quem trabalhava com o elevador e tinha o poder de decidir, técnica e politicamente, sobre o mesmo.
O relatório preliminar do GPIAAF aponta desde logo a rutura do cabo que liga as duas cabinas e, por contrapeso, as faz mover e deveria impedir a queda desamparada. Uma rutura que ocorreu ao longo do tempo e que não foi detetada pela empresa privada a quem a manutenção está entregue, nem pelos fiscais da Carris, a empresa municipal a que pertence e que explora o elevador da Glória. O cabo estaria com 337 dias de utilização (para um máximo definido de 600) mas não estava conforme com a especificação em vigor na Carris para aquele elevador; sendo ainda usado com um destorcedor, o que o fabricante não certifica. Investigações jornalísticas apuraram que a opção por este cabo, em 2022, permitiu uma redução de 43% nos custos. O GPIAFF acrescenta que as desconformidades não foram detetadas pela Carris durante o concurso, na aceitação dos cabos ou na sua instalação. E que o cabo era inclusive contrário à especificação fornecida pela área de engenharia da empresa municipal.
Quanto à manutenção, a cargo de uma empresa contratada, o GPIAFF recolheu evidências de que há tarefas registadas como feitas e que não foram efetivamente executadas - inclusive no dia do acidente. E há tarefas críticas executadas de forma não padronizada e com parâmetros díspares.
O GPIAFF revela ainda que na base da não atuação dos sistemas de freio poderá estar um aumento “não negligenciável” do peso das cabinas desde que o centenário sistema de eletrificação foi implementado. A própria Carris não saberá quanto pesam as cabinas, tendo documentos que lhes atribuem 14, 18 ou 19 toneladas. Também nunca foram feitos testes aos freios de emergência para uma situação de falha no cabo. Há mesmo testemunhos de funcionários da Carris a afirmar haver a perceção de que a segurança dependia inteiramente do cabo e o sistema de freio não era eficaz.
O elevador da Glória não era fiscalizado por entidades externas.
Responsabilidades
O presidente da Carris, Pedro Bogas, demitiu-se só a 22 de outubro, mês e meio após a tragédia, que apenas entrou ‘ao de leve’ na campanha para as eleições autárquicas que ocorreram no dia 12 de outubro. Carlos Moedas, o presidente em exercício e que foi reeleito, recusou responsabilidades políticas pelo acidente, que colocou Portugal em luto nacional. Moedas mandou parar os elevadores históricos de Lisboa para serem alvo de vistorias.
“Multivítimas”
A tragédia do elevador da Glória fica como um dos momentos da História da cidade de Lisboa, em que todos se recordarão onde estavam quando souberam. Eu, a trabalhar na redação, recebi a mensagem de uma fonte dois minutos após o acidente. Ao verificar a informação com os Sapadores, recebi a confirmação que dificilmente esquecerei: “vamos a caminho; temos só a informação que é uma ocorrência multivítimas”. E foi com essa expressão, “multivítimas”, que seguiu a primeira notícia no site do CM e na CMTV.
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