Se a ideia é construir uma fortaleza imune aos humores do mundo, Donald Trump pode reivindicar uma vitória histórica no controlo de fronteiras: o fluxo migratório a partir da fronteira sul praticamente desapareceu.
Donald Trump pode ter muitos defeitos, mas ninguém pode afirmar que foi ao engano: este início de segundo mandato limitou-se a aplicar, com uma rapidez fulminante, as promessas semeadas durante a campanha. Queriam nacionalismo económico, personalização do poder, retribuição contra inimigos e um desprezo olímpico pelas regras multilaterais?
O Donald, homem de palavra, cumpriu. Na economia, a valsa das tarifas já duplicou o impacto de toda a primeira presidência em instabilidade e inflação. As empresas, que precisam de planear a vida com antecedência, assistem à valsa como quem observa um furacão pela janela. Investir, neste ambiente, só para kamikazes. O aumento dos custos em toda a cadeia produtiva já é suficientemente mau, pensarão elas. Os consumidores concordarão quando olham para a factura do supermercado.
Por outro lado, se a ideia é construir uma fortaleza imune aos humores do mundo, Trump pode reivindicar uma vitória histórica no controlo de fronteiras: o fluxo migratório a partir da fronteira sul praticamente desapareceu. A mensagem oficial de que nem vale a pena tentar foi levada a sério – e devidamente complementada por deportações de imigrantes ilegais. O impacto mediático das operações policiais agradou ao planeta MAGA.
De resto, serei o último a lamentar o enterro do wokismo pela promoção de maior diversidade ideológica nas universidades americanas. A coisa, de facto, não se recomendava, mas a administração Trump foi mais longe, chantageando as instituições com a suspensão de financiamento federal por meras diferenças políticas. O cancelamento de milhares de bolsas, os cortes indiscriminados à investigação médica e a “fuga de cérebros” para outras latitudes são um dano auto-infligido que a China, naturalmente, agradece. Sobre tudo isto paira um sistema de Justiça que parece ao serviço da “famiglia”. O Departamento de Justiça e o FBI, antes protegidos por um pudor pós-Nixon e pós-Watergate, vivem agora sob tutela directa do Donald. Inimigos políticos investigados com zelo exemplar, aliados absolvidos com um piscar de olho, procuradores afastados e “listas negras” de funcionários suspeitos de heresias antitrumpistas – nada escapa a este novo macarthismo. A retribuição deixou de ser argumento de filmes: é agora programa de governo.
Dúvidas
Com os males da América podemos nós bem, diria um cínico; se for também um antiamericano militante, haverá júbilo na sua voz. O problema é que as disfunções da República não se ficam por lá. Durante décadas, os Estados Unidos foram a coluna vertebral da ordem liberal: comércio livre, alianças previsíveis, um mínimo de regras para evitar o retorno ao estado de natureza de que nos falava Thomas Hobbes, onde a vida é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”.
O desmantelamento dessa ordem, visível no desprezo com que Trump trata os seus aliados, terá consequências imediatas para a Europa – e não só.
Prova disso é a guerra na Ucrânia, que Donald Trump prometera resolver em 24 horas. Não se percebe porque não o fez se a receita é tão simples: entregar à Rússia o que ela exige – o Donbass, a Crimeia, um exército ucraniano anémico, afastado da NATO, e a reabilitação económica, política e diplomática de Moscovo. É o velho espírito de Munique, em 1938, quando Neville Chamberlain entregou os Sudetas a Hitler na esperança de obter a paz para a Checoslováquia e para a Europa.
O Presidente americano também quer a paz pelo sacrifício de uma parte da Ucrânia. Mas, ao contrário de Chamberlain, um homem honrado, Trump quer mais do que a paz; quer uma porta de entrada para bons negócios no gás, nos minérios e na reconstrução da Ucrânia.
Apesar de tudo, houve também alguma luz na política externa da Casa Branca. A pressão bem-sucedida para que os parceiros da NATO subissem os gastos de defesa para 5% do PIB é a prova de que, às vezes, um pouco de brutalidade pode ser necessário para despertar lideranças sonolentas.
Também sobre Gaza saiu da cabeça alaranjada, por uma vez, um rasgo de bom senso. O plano que combina o desarmamento do Hamas, a gestão internacional do território e a reconstrução da Faixa sob tutela tecnocrática é, até ver, o único caminho que não descarta de vez o combalido paradigma dos “dois estados”. Caminho estreito, quase impossível, mas realista também.
Se juntarmos a isto a libertação dos reféns israelitas e o bombardeamento das instalações nucleares do Irão, que terá atrasado o programa nuclear dos aiatolas em anos, é justo reconhecer que um relógio parado também acerta duas vezes ao dia.
E em 2026?
Timothy Garton Ash, em artigo para o ‘The Guardian’, avisava solenemente que as eleições intercalares para o Congresso serão a última oportunidade para os americanos salvarem a democracia do abuso presidencial, da violência e do medo instalado nas empresas, nas universidades e nos órgãos de comunicação social. Entendo os cuidados de Garton Ash, mas as eleições decidem-se menos em nome da Constituição e mais, muito mais, em nome do frigorífico. A economia, esticada até ao limite entre tarifas erráticas, inflação e queda de investimento, começa a dar sinais de doença crónica. “Tornar a América grande outra vez” não passa por torná-la mais pobre e menos relevante, enquanto o resto do mundo, desiludido com os caprichos do imperador, trata da sua vida por outros meios.
É aqui que entra a oposição. Será que os democratas vão repetir as velhas piedades antitrumpistas que não deram resultado em 2024? O eleitor que paga mais pelo carro, pela mercearia e pela hipoteca tem pouca paciência para grandes discussões filosóficas. Prefere quem lhe resolva, simplesmente, a vida.
Há sinais de aprendizagem: as vitórias democratas de Abigail Spanberger, na Virgínia, e de Mikie Sherrill, em Nova Jérsia, costuraram-se com um pragmatismo económico que soube deixar de lado o velho estendal “identitário” que só convence quem já está convencido.
Se os democratas estudarem a lição, talvez descubram que a melhor defesa da democracia ainda passa por explicar o custo do trumpismo ao bolso do cidadão comum. A célebre frase de James Carville – “É a economia, estúpido!” – pode ser menos poética do que os sonetos de Kamala Harris sobre “a alma da América”, mas, quando a carteira geme, talvez seja a hora de optar pela prosa.
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