Os 750 quilómetros de distância entre Lunda e a Cafunfo são enganadores. Na realidade o percurso que se faria em menos de 12 horas obriga a gastar quase dois dias na viagem.
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São precisas muitas horas de estrada desde Luanda até chegar a Cafunfo, a vila mineira onde no passado sábado as ruas ficaram manchadas de sangue, num alegado "ato de rebelião" que colocou o lugar remoto de Angola sob o olhar dos defensores dos direitos humanos.
Os 750 quilómetros de distância entre Lunda e a Cafunfo são enganadores. Na realidade o percurso que se faria em menos de 12 horas obriga a gastar quase dois dias na viagem devido ao mau estado da estrada, onde, entre ravinas e crateras, a falta de iluminação desaconselha viagens noturnas.
De uma vila inserida numa das principais regiões de diamantes de Angola esperava-se mais. Mas aqui, a via principal é um caminho enlameado e esburacado onde quase não existem carros. Não há água, nem luz, o único restaurante situa-se na única hospedaria e o comércio, sobretudo informal, é feito de artigos baratos e úteis às 90 mil pessoas que aqui residem, pouco habituadas a luxos.
Mesmo ao lado, a Sociedade Mineira do Cuango, que tem como acionistas a estatal diamantífera Endiama e as empresas Lumanhe e ITMMining, já produziu acima de dois milhões de quilates de diamantes, desde o início da produção em 2005. Muitos moradores arriscam as vidas no garimpo ilegal em busca das gemas preciosas, mas a grande maioria não conseguirá jamais libertar-se da pobreza.
No sábado passado, a vila tornou-se notícia pelas mortes que ocorreram durante confrontos com a polícia. Os bispos católicos e ONG falam de um massacre, com um número estimado de pelo menos dez mortos, mas a polícia contabilizou apenas sete e acusou elementos do movimento Protetorado da Lunda Tchokwe de terem incitado um ataque a uma esquadra.
Para os moradores do Cafunfo ouvidos pela Lusa, na origem das mortes, esteve uma tentativa de manifestação através da qual a população queria chamar a atenção para as suas condições de vida.
"Estamos a passar mal", queixa-se Rossana da Silva, que procura familiares que estão desaparecidos desde o fim de semana. "São muitos os nossos familiares que morreram aqui. Até agora tem outros corpos que não estão a ver, dói o coração ou não?", desabafa.
Com 26 anos, desempregada, Rossana alega que não fez parte da marcha que, diz, servia para denunciar a miséria da vila, instalada num dos locais mais ricos de Angola: "Nós trabalhamos do nosso suor, a estrada não está em condições, não temos água, não temos ninguém que nos apoie, não temos ninguém que nos sustente".
O "governo daqui não apoia nem um pouco. Se apoiasse, esta estrada não deveria estar assim e o Cafunfo deveria estar organizado", indigna-se, apontando o caminho em mau estado e cheio de lixo e as casas pobres e mal cuidadas em redor.
Castro 'Carlito', 22 anos, também lamenta as mortes. "Foi algo muito triste, perdemos pessoas, pais, mães, por motivo de reclamar os seus direitos, foram atacados", diz o jovem, recordando que "todo Cafunfo estava agitado".
Segundo relatou à Lusa, a polícia não estava a deixar a população sair para as ruas: "ficámos todos em casa fechados, basta tentar sair e prendem, abusam e põem na cela".
'Carlito' critica a disparidade de riqueza e mostra-se indignado com a falta de compensações para os moradores por parte das empresas diamantíferas, que extraem a riqueza do solo onde nasceu: "não sabemos para onde vai, não fica cá nada, quem sabe é o próprio Estado, é o Governo".
O que sabe é que as estradas são más, não há emprego, as escolas estão mal construídas e os hospitais não têm medicamentos, enumera.
Muitos jovens dedicam-se a "cavar diamantes", o garimpo artesanal, mas "são corridos pelos seguranças da área mineira" e muitos acabam mortos.
"É o próprio Estado que pode acalmar essa população, só queremos estrada, água e luz e empregos, é o que queremos", pede.
Gomes da Conceição, de 20 anos, está acompanhado de outros estudantes, todos críticos da ação da polícia.
"O povo daqui das Lundas tem sofrido muitos problemas de bem-estar, por falta da água, da luz. A população tem de ter condições mínimas para subsistir e agora revoltou-se", justifica.
O estudante diz que os líderes do movimento "só querem a liberdade do povo", porque a população "vive duma forma horrível", em comparação com a riqueza no subsolo.
"Como é que daqui saem recursos naturais, como os diamantes, e o governo não faz nada, está tudo uma sujeira. Aqui no município do Cuango não temos nada, a população está a sofrer", lamenta, desiludido com o abandono a que foi deixado pelo poder político de uma Luanda longínqua, que ostenta os diamantes das Lundas como um dos símbolos da riqueza de Angola.
Terra chora os seus mortos, ainda com corpos por enterrar
Testemunhas ouvidas pela Lusa contam mais de 20 mortos durante os incidentes ocorridos sábado na vila mineira da Lunda Norte, 750 quilómetos a leste de Luanda, enquanto as autoridades contabilizam apenas sete e alegam ter reagido a uma tentativa de invasão de uma esquadra, um "ato de rebelião" protagonizado por elementos armados do Movimento Protetorado Português da Lunda Tchokwe.
Cafunfo já não está em estado de sítio como os moradores relataram no passado fim de semana, mas polícias e elementos das Forças Armadas Angolanas continuam visíveis em redor da vila mineira, acessível por uma penosa estrada onde é difícil fazer os 44 quilómetros desde Cuango, o município mais próximo, em menos de duas horas.
Mas a vila está de luto e, entre os habitantes, sente-se a indignação e a revolta dos que estão ainda em busca de familiares e não percebem o porquê da violência das forças angolanas.
André Candala, 62 anos, catequista e coordenador da comunidade São José Operário, no bairro Bala Bala, disse à Lusa que morreram, pelo menos, 25 pessoas.
"O povo de Cafunfo está de luto. É uma tristeza, mesmo durante toda a guerra, do início da guerra de 61 até à guerra civil, nunca aconteceu a morte como hoje aconteceu a muitos", salientou,
Segundo os seus registos, há 25 mortos, apesar de só sete corpos terem sido entregues às famílias. Outros, ainda por identificar, foram encontrados na ravina "onde se passou fogo", enquanto outros corpos foram lançados ao rio.
André Candala diz que o governo mente e que, se a intenção dos manifestantes fosse invadir uma esquadra, teriam invadido o posto fiscal, na entrada da vila mineira.
"Mas deixaram [os manifestantes] avançar e foram emboscados e mortos com metralhadoras", relata.
Os testemunhos recolhidos pela Lusa no local coincidem: houve muitas mortes e morreram inocentes. Um deles foi Zango Elias, seminarista, sobrinho de Alfredo Alexandre Moisés, coordenador das comunidades da Paróquia de São José.
"A bala que lhe atingiu não foi pela frente, se fosse uma pessoa que vinha nessa marcha a bala deveria ter atingido à frente, mas atingiu atrás e saiu na barriga", contou, mostrando a foto do jovem cujo único crime foi estar na rua: "Um inocente que estava a sair de casa".
Nesta terra, rica em diamantes e pobres, o movimento Protetorado da Lunda Tchokwe é o alvo do governo no que toca a responsabilidades, mas algumas organizações não governamentais, oposição angolana e bispos católicos já consideram o incidente de sábado um "massacre".
O ministro do Interior, Eugénio Laborinho, diz que foi o movimento que incitou a revolta contra o Estado, por interesses no garimpo e acusa forças estrangeiras na República Democrática de Congo de estarem na origem dos incidentes.
Mas quem mora em Cafunfo sente-se abandonado pelo governo e justifica o protesto com as condições de vida precárias da população
André Candala diz que a pressão das autoridades começou ainda antes de sábado, dia 30 de janeiro, data em que o movimento pretendia realizar uma manifestação previamente comunicada. Entre os dias 27 e 29, "entraram nas casas, a fazerem buscas dos jovens", muitos dos quais ainda desaparecidos.
Além da procura por pessoas potencialmente ligadas ao movimento, houve avisos da polícia à população para que se mantivessem em casa e o próprio administrador do município foi até uma igreja para alertar os moradores de Cafunfo.
"O administrador veio avisar que 'o governo vai fazer tudo o que vocês querem, vai fazer a estrada, vai vos dar a água', mas ninguém pode participar nesta marcha porque haverá risco", disse Alfredo Moisés.
A mensagem espalhou-se e muitas famílias preferiram manter-se em casa com as crianças. Entre sábado e domingo, os moradores ficaram entrincheirados, sem poderem sair nem para comprar comida, contaram alguns habitantes.
"Nós cumprimos, ficámos nas nossas casas", sublinha Alfredo Alexandre Moisés que tem estado a compilar listas de mortos, prisioneiros e desaparecidos, cruzando informações das famílias com os cadáveres que vão aparecendo.
As pessoas estão com medo, prossegue André Candala, também coordenador paroquial da Comissão de Justiça e Paz pelos Direitos Humanos
"Aqui ainda há caça ao homem, estão a tirar muita gente das casas, mas o povo agora tem medo de nos informar", lamenta o responsável.
"Se vão perguntar, a polícia logo diz que 'és do protetorado e por isso estás a procura dos outros', então não vão", corrobora Alfredo Moisés.
André Candala mostrou-nos as ravinas cobertas de lixo onde muitos terão caído já mortos e outros fugido, feridos ou não, escondendo-se nas matas.
Os corpos só começaram a ser encontrados quando as pessoas começaram a circular. "Os militares bloquearam essa parte toda, não queriam que a população passasse para ver os cadáveres", continua André Candala, explicando por que só a partir de segunda-feira e terça-feira começaram a ser retirados corpos.
Alguns cadáveres foram encontrados a "passar no rio" por mulheres que voltavam das lavras. "Temos provas concretas do que se está a passar . O governo diz que são uns rebeldes que queriam invadir a unidade policial, mas é pura mentira", critica o catequista.
André Candala pede ao governo que reconheça as mortes e diz que se havia, de facto, uma intenção de invadir, os infratores deviam ter sido presos: "eles é que fazem a lei, ninguém tem direito a tirar a vida, mesmo cometendo o erro, devem meter na cadeia e ser julgado".
Defende também que as famílias devem ser indemnizadas e que ninguém estava "a fazer manifestação por fazer", criticando os que "fazem o povo sentir medo e continuar a viver na miséria".
"Disseram que estão a organizar um grupo das forças armadas para entrar nas casas, buscando catana, enxada, machado que são instrumentos dos camponeses. Isso é a vida do povo ou é para matar o povo?" - questionou, indignado.
Alfredo Moisés, diz que aos 72 anos, já não tem medo: "Temos de falar para o governo ouvir esse povo, por que é que morreram?"
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