A casa, pequenina, quase parece de bonecas. Toda construída em altura, ascende vertiginosamente em direcção ao céu. As vigas, pintadas de negro, contrastam com o branco das paredes. A ideia foi de Isaura, sua mulher e, a princípio, toda a família estranhou. Mas resultou bem e assim ficaram, pretas, as traves, assim como as portas e restantes madeiras.
O contador de histórias compraz-se a tecer com palavras ternurentas a teia da vida. O refúgio de Constância também é fruto de um dos episódios que rapidamente Baptista-Bastos transforma em crónicas de uma existência feita de acontecimentos fortuitos que acabam por tomar o seu lugar com uma lógica desconcertante: afinal, “isto anda tudo ligado”, diria Eduardo Guerra Carneiro.
O escritor e jornalista concorda e menciona a misteriosa conexão de todas as coisas sem contudo explicitar concretamente a que se refere. Que importa? Aqui, como no resto, urgente é contar a história. E o n.º 33 da Rua dos Ferreiros tem a sua.
Foi há 14 anos, Baptista-Bastos estava “atrapalhado de dinheiro”. No Festival de Cinema de Tróia, o amigo e realizador João César Monteiro (entretanto desaparecido]), “de quem toda a gente dizia mal mas que era um homem solidário e de uma grande humanidade” interpela então o também realizador Fernando Lopes: “Ouve lá, então o Baptista-Bastos está desempregado?!”. Foi assim que surgiu a oportunidade de participar num projecto para a televisão que consistia em escrever os textos de dois filmes, um sobre o Alentejo, outro sobre o Ribatejo. A ideia era de Vasco Pulido Valente e a realização estava a cargo de Rogério Seitil.
O autor de ‘Cão Velho entre Flores’ já passara por Constância, claro. Alexandre O’Neill também teve casa na Vila Poema, onde um Camões de bronze mira o Zêzere, sentado num banco de pedra . Além de Poema, a vila é de poetas. Adiante. O charme da localidade é evidente e seduziu o Poeta-Bastos. Uma vila com nome de mulher, e temos o escritor a perguntar à esquerda e à direita - pronto, talvez um pouco mais à esquerda do que à direita!... - se haveria por ali alguma casita a preços abordáveis. E havia. Havia-as mesmo surpreendentemente baratas, mas daquelas que regularmente recebem a visita das águas voluntariosas do Tejo. Foi um vereador da Cultura da Câmara local que lhe perguntou quanto estava disposto a gastar e fez uma prospecção. “Um homem muito simpático. Chamava-se Reinaldo Ferreira - palpite, tinha o nome do Repórter X!”
UMA CASA DE BONECAS
Foi assim que apareceu a casinha de bonecas. “Estava impecável. Tinha apenas um problema de humidade” que foi resolvido colocando paredes duplas de alto a baixo. E foi comprada “pelo preço de uma bicicleta com motor”. Não que Baptista-Bastos fizesse ideia das tabelas para tal meio de transporte. Mas foi possível tornar o sonho realidade.
A casa tornou-se o local onde, literalmente, põe a escrita em dia. “Sinto-me bem aqui”, confessa. “Parece que as ideias fluem melhor. A escrita sai mais clara”.
O inconveniente é que Isaura, a companheira de tantos anos, não o pode acompanhar tanto como o escritor gostaria. Tem problemas de mobilidade que lhe dificultam o subir e descer escadas, obrigatório naquele refúgio vertical. Daí que frequentemente Baptista-Bastos se desloque só à Vila Poema. Como não sabe cozinhar, “nem fazer a cama”, toma as refeições nos restaurantes da vila “onde se come muito bem por pouco dinheiro” e mantém fechada a cortina que separa o quarto da biblioteca. Se bem que falar de biblioteca seja um eufemismo, já que a casa está forrada a livros nos seus três andares.
O escritor está embrenhado na construção de uma obra que outros poderiam baptizar de ‘autobiografia’ mas que ele prefere definir como “um texto de memórias”. “Coisas que eu vivi, episódios”. No portátil pousado sobre a mesa da sala, o Jornalista-Bastos tem estado ocupado a escrever acerca de pessoas que marcaram a sua vida. Figuras inesquecíveis sobre as quais conta histórias. Que leremos um dia destes.
"A MÚSICA É UMA MULHER!"
Um dos objectivos da compra do refúgio era ter onde colocar parte dos milhares de livros que foi acumulando ao longo de uma vida de palavras feita. É também ali que escreve. A casa de Constância tornou-se o local onde se sente mais inspirado.
“Chego quarta-feira e só saio domingo. Ligo o computador, ponho umas músicas: Maria João Pires, Bach, Mozart, Bossa Nova, é conforme. Depende do espírito do momento, do que estou a escrever, se preciso de uma música com mais adjectivos...”.
Precisa de ouvir música para escrever e não se atrapalha com a letra, caso a banda-sonora seja cantada. Assim como da pintura e da literatura. Mas a música... “A música é uma mulher e o homem precisa de mulheres!”.
CONSTÂNCIA E OS DOIS RIOS
Num passeio pelas ruas de Constância, percebe-se o quanto gosta da vila e das pessoas. Mete-se com as crianças e conversa com os habitantes. Ali, a atmosfera é quente e húmida, quase um subclima tropical. Os gatos espreguiçam-se escada acima, escada abaixo, que nem só o interior do refúgio é composto de intermináveis degraus. Parecem gostar da Vila Poema tanto quanto ele.
Passando pela estátua de Camões , detém-se e disserta sobre as palavras que distinguem o poeta: “Vejam: suave, brando, doce”. Adjectivos que se aplicam ao Zêzere que corre, tranquilo, sem se importar com o que possam dele dizer. O nome de Constância não podia estar mais de feição: “Assim que saio de Lisboa, sinto-me apaziguado. Tornou-se uma cidade hostil.”.
Não é por acaso que a vila atraiu poetas e artistas. A luz é propícia ao devaneio criador. Constância, qual mulher fatal, conseguiu atrair para si dois rios. Tejo e Zêzere competem pelas suas atenções e conseguem por vezes tirá-la do sério: é então que as águas sobem e inundam a baixa e não só. Os comerciantes locais estão habituados e já conhecem os sinais. Quando os rios ameaçam destruir-lhes os haveres, ajudam-se uns aos outros para salvá-los da líquida destruição. As subidas mais históricas estão assinaladas nas habitações.
Mas o refúgio de Baptista-Bastos está lá no alto, bem a salvo da fúria dos elementos.
Profissão: Escritor
Idade: 73 anos
Local: Constância
Companheiros de refúgio: por vezes a mulher Isaura e sempre os livros
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