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BRASIL ELEGE LULA: SÍMBOLO DE UMA VIDA MELHOR

Os olhos muito vivos quase nem deixam reparar na barba à revolucionário castrista. Os pêlos brancos dominantes dão-lhe mesmo um tom suave. Eis Lula da Silva, um socialista a quem já chamaram “a grande esperança do capitalismo brasileiro”.

27 de dezembro de 2002 às 16:32

De operário a presidente

Nunca a emoção e a esperança empurraram tanto uma escolha eleitoral. O triunfo, a 27 de Outubro, nas presidenciais do Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva que levou este torneiro mecânico de profissão, com carreira política desenvolvida nos sindicatos, ao topo do aparelho de Estado de um país com 170 milhões de habitantes, representa a vitória da vontade e do coração sobre o medo da mudança. De repente, o reivindicativo e duro dirigente sindical e político tornou-se no “Lulinha Paz e Amor” e arrastou um imenso mar de votantes às urnas. A festa da vitória confirmou a nova imagem. Nada de vinganças, nem de punhos no ar. Mas muita ternura e lágrimas até mais não.

Quem já cumprimentou o novo presidente do maior país de língua portuguesa considera-o uma pessoa afável e divertida. Os olhos muito vivos quase nem deixam reparar na barba à revolucionário castrista. Os pêlos brancos dominantes dão-lhe mesmo um tom suave. Depois, os mais de 90 quilos de peso para 1 metro e 70 de altura compõem uma figura bonacheirona que facilita o contacto e envolve os interlocutores num largo abraço a que ajuda também uma voz quente e rouca.

Cem por cento emoção

Durante anos, os seus adversários políticos maltrataram-no como o ‘sapo barbudo’, mas o marketing impôs, desde muito cedo na campanha eleitoral 2002, a simpatia pelo “Lulinha Paz e Amor”. O que só foi possível porque o teimoso candidato que correu pela quarta vez em doze anos à presidência do Brasil é mesmo um homem doce que se alimenta de abraços do povo. Como pessoa, Lula é cem por cento de emoção. O homem que nunca chorou nas três vezes em que perdeu eleições presidenciais, não conseguiu conter as lágrimas quando ganhou. Na entrega protocolar do diploma de presidente-eleito, no dia 14 de Dezembro, em Brasília, ele agradeceu com um choro rebelde.

Afinal, era mesmo verdade o que respondeu, durante a campanha, quando lhe perguntaram pelo trabalho do assessor de imagem Duda Mendonça. Definindo-lhe um perfil mais sentimental, este especialista de marketing só revelou o verdadeiro Luiz Inácio: um rapaz humilde e optimista, com sete irmãos, que aos 12 anos começou a trabalhar como engraxador em São Paulo e, depois de ser moço de fretes de uma tinturaria, aprendeu a profissão operária de torneiro mecânico.

Antes do marketing lhe ter metido, este ano, a família na campanha para as Presidenciais, Luiz Inácio que só se tornou ‘Lula’ em 1982, quando concorreu, com resultados frustrantes, a umas eleições para governador do estado de São Paulo, tinha dois domínios reservados: a família e a fé. A primeira vale-lhe uma história fantástica de quem foge da miséria do sertão nordestino do Pernambuco e resiste a todas as dificuldades da vida pobre numa grande metrópole urbana como São Paulo, sem nunca perder a esperança numa vida melhor para todos, construída na luta pelos direitos de quem trabalha.

Da sua intimidade religiosa falam amigos como o frade dominicano Frei Betto, ligado com Leonardo Boff à chamada ‘Teologia da Libertação’, que revelou ser o novo presidente do Brasil um devoto do despojado São Francisco de Assis, amigo da oração e que se benze sempre antes das refeições em família.

Cinderela ou Cândido

Contada às crianças, a vida de Lula compara-se à história da Cinderela. Só que nem precisou de ter fada madrinha, nem encontrar um príncipe encantado para, em menos de meio século, passar de um quarto minúsculo e escuro dos fundos de um bar, em Vila Carioca, na periferia de São Paulo, para um palácio (o Alvorada, de Brasília), construído pelo famoso arquitecto Oscar Niemeyer, com 7300 metros quadrados de área coberta e um pé direito que chega aos 9 metros de altura, onde tem piscina olímpica aquecida, sala de música com piano de cauda, cinema com 30 lugares, biblioteca de 150 m2, ginásio, adega com mais de duas mil garrafas e o mais que nem os contos de encantar trazem devidamente pormenorizado.

Mais aproximado desta realidade é, porém, o herói Cândido, criado por Voltaire. À maneira do pupilo do dr. Pangloss, Lula passou por tudo e não ficou marcado por nada. Levou os seus ideais à vitória com base em derrotas. Soube sempre ter esperança e dedicou toda a vida ao serviço dos outros. Quando o irmão mais velho o levou para o sindicalismo operário em 1966, observou que não tinha grande coisa a fazer porque “no sindicato só tem ladrão e comunista”. Nunca esteve na clandestinidade e achou uma palhaçada o primeiro encontro que teve com um funcionário do Partido Comunista Brasileiro. Mas pensou sempre que os pobres e famintos, os desprotegidos e carenciados têm direito, como todos os homens e mulheres, a uma vida melhor. Tal qual o Cândido, de Voltaire, apanhado por todas as desgraças naturais e sociais.

Política com coração e razão

Na vida política, Lula junta coração e razão. É o símbolo da vontade e da tranquilidade. A prisão e tortura que o seu irmão José sofreu, em 1975, às mãos dos militares da ditadura, só porque desconfiavam que Luiz Inácio tinha aproveitado a viagem a um congresso internacional no Japão para levar uma carta ao histórico líder comunista Luiz Carlos Prestes, despertou-lhe uma enorme revolta, mas nunca pensou em vinganças mesquinhas.

O que levou Lula à Presidência do Brasil é uma enorme vontade de justiça e vida melhor para todos. Dias antes da eleição, dirigiu-se a um grupo de 150 dos maiores empresários do Brasil afirmando-lhes “Preciso de vocês para Governar”. Depois da vitória tem feito tudo a pensar que é preciso concretizar a esperança, transformá-la num objectivo concreto. A verdade é que Lula é o símbolo do que todo o brasileiro, e afinal todo o Mundo, mais deseja: ter uma vida melhor do que tem, como de facto o próprio Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu ter. A esperança é enorme e o risco também. Se o sentimento não abrir um caminho de cooperação e desenvolvimento, a desilusão será tremenda. E para construir uma vida melhor não chega um operário, mesmo que ele seja presidente. É preciso ir além do ‘Pacto Nacional’ e todo o Brasil lançar-se à obra. Com trabalho, inteligência e sem nunca desistir. Lula, por si, já deu o coração.

Marisa, a dona de casa

A ideia de que por detrás de um grande homem há sempre uma grande mulher é absolutamente confirmada na vida de Lula. A próxima primeira dama do Brasil, Marisa Letícia Lula da Silva, de 52 anos, era viúva, tal como Luiz Inácio, quando os dois se encontraram no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Lula casou pela primeira vez em 1966, com Maria de Lurdes, uma colega de fábrica, na Indústrias Vilares,mas ela faleceu durante o parto do primeiro filho que também não sobreviveu. Lula foi depois pai de uma rapariga, Lurian, actualmente a trabalhar como jornalista, e reconstituiu a vida familiar em 1974, ao lado de Marisa, então viúva e mãe de um filho, Marcos, hoje estudante de psicologia. A união gerou depois mais três filhos, Fábio, licenciado em biologia, Sandro, estudante de marketing, e Luiz Cláudio, o mais novo com 17 anos, aparentemente tão pouco interessado em política como todo o resto da prole.

Marisa e Lula têm, porém, a política nas veias. Ela esteve sempre ao lado dele, costurou a primeira bandeira do Partido dos Trabalhadores (PT), criado em 1980, e participou em todas as discussões partidárias. Marisa soube ainda ser mãe e dona de casa. Uma das grandes danações de Lula é por causa de as actividades políticas não lhe deixarem tempo para ajudar a mulher nas tarefas domésticas e não ter estado ao seu lado em cada uma das três vezes em que ela foi mãe.

José Dirceu, o chefe da casa

Ao nomear José Dirceu, licenciado em Direito e presidente do PT desde 1995, para chefe da Casa Civil da Presidência, Lula mantém ao seu lado um companheiro político com quem atravessou todas as dificuldades e êxitos desde a fundação do Partido dos Trabalhadores. Mais, entrega-lhe, como sempre fez, todas as tarefas de coordenação. Ao contrário de Lula, José Dirceu nunca foi pobre, nem nunca foi trabalhador manual. Enquanto o novo presidente do Brasil ia para a fábrica, o seu émulo era um estudante universitário, rebelde ateador de paixões não apenas políticas, marxista-leninista e anti-PCB como se prezavam os revolucionários dos anos 60.

Foi líder estudantil na Pontefícia Universidade Católica de São Paulo, onde cursou Direito, foi preso em 1968 pela ditadura militar e enviado para Cuba com mais 14, em troca de um embaixador americano raptado em 1969, pela guerrilha urbana do Rio de Janeiro. Fez uma operação plástica, regressou clandestino ao Brasil, e viveu oito anos com nome falso numa pequena cidade do Paraná (Cruzeiro do Oeste), fazendo-se passar por empresário paulista fanático do Corinthians. Casou com uma comerciante que só muito tempo depois soube que ele era ex-preso político.

Dos 28 militantes brasileiros que passaram pelos campos de treino da guerrilha em Cuba, 17 foram mortos pela repressão da ditadura militar. José Dirceu escapou como empresário ‘Carlos Gouveia de Melo’ até ser declarada a amnistia política em 1979. Depois de recuperar a sua verdadeira identidade voltou para São Paulo e para a política. Fez tudo com Lula. Hoje é o símbolo da moderação dentro do PT. Mas não perdeu a utopia de um mundo melhor.

Futuro: o risco da desilusão

O novo presidente do Brasil toma posse no primeiro dia de 2003. Dois meses depois de ser eleito com quase 53 milhões de votos, Luiz Inácio Lula da Silva já tem estruturado um governo e lançadas as orientações da sua política, mas nem toda a boa vontade tem impedido o surgir de algumas más notícias. O problema é que não basta ter a alegada compreensão do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush. É também necessário que a economia brasileira arranque, desenvolva-se e cresça, para haver mais riqueza para distribuir por mais pessoas, acudindo aos carenciados e desprotegidos, o que não se tem visto, talvez até por se estar no hemisfério sul em tempo de férias de Verão.

O optimismo ainda não baixou os seus estandartes e Lula e os seus companheiros do Partido dos Trabalhadores estão apostados em avançar, sem rupturas, para reduzir os riscos de falhanço. Simbolicamente, o comando do Banco Central foi entregue a um político de reconhecidas capacidades técnicas, Henrique Meireles, com experiência nos meios financeiros internacionais e, curiosamente, pertencente ao partido de José Serra, adversário de Lula na segunda volta das presidenciais. A moderação não tem, no entanto, conseguido resolver tudo. O câmbio entre a moeda brasileira, o real, e a referência dólar mantém-se muito desfavorável para quem não ganha com especulações, e reduz a capacidade das mais vastas camadas da população poderem melhorar a sua vida. Um indicativo pode ser o salário mínimo fixado para 2003 em 220 reais , o que daria em Portugal menos de 63 euros.

O número só pode ser arrepiante para quem em Portugal considera, naturalmente, muito baixo os 356,6 euros que o Governo fixou também para o próximo ano. E as dificuldades para os trabalhadores ainda se tornam maiores com dois outros indicativos económicos: a inflação tem acelerado, no Brasil, durante os últimos meses, subindo de 4,8% no início do ano para 10,83% no recente mês de Novembro, enquanto a taxa base de juros também foi aumentada três vezes nos últimos três meses e já está nos 25%. Dá para imaginar as dificuldades de quem vive do trabalho quando lhe proporcionam emprego.

Um último mau sinal: no meio da discussão do salário mínimo, os deputados brasileiros aprovaram para si próprios um aumento de vencimento de 52%, passando de 8500 reais para 12.720 reais, correspondentes a 57 salários mínimos. Uma situação realmente de Terceiro Mundo como já não se vê em Portugal e muito menos em termos de médias europeias. O novo presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai ter mesmo um trabalho ciclópico, para tornar o Brasil num país mais rico e mais justo.

- Em 27 de Outubro, de acordo com a mãe, ou no dia 6 do mesmo mês, conforme os registos, Luiz Inácio da Silva nasce em Vargem Grande, actual Caetés, no estado do Pernambuco, no nordeste do Brasil.

- Aos 18 anos torna-se torneiro mecânico após um curso de formação profissional num organismo público. Começa a trabalhar na metalúrgica Aliança, onde sofreu um acidente de trabalho que lhe custou a perda do dedo mínimo da mão esquerda.

- Eleito primeiro secretário do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Didema (São Paulo). Três anos depois passa à presidência e lidera as greves operárias que espalham por todo o Brasil anseios de liberdade, e conduzem ao fim da ditadura militar.

- No dia 10 de Fevereiro, é apresentado no Colégio Sion, em São Paulo, o manifesto da fundação do Partido do Trabalhadores, sob a liderança de Luiz Inácio da Silva.

- Numa da suas raras vitórias nas urnas, Lula é eleito para deputado federal na Assembleia Nacional Constituinte, sendo o candidato mais votado de todo o Brasil.

- Após 25 anos de ditadura militar, os brasileiros escolhem um presidente em eleições directas. Lula candidata-se, junta 31 milhões de votos mas perde com Collor de Melo.

- É o ano da conquista do Brasil pelo PT: Lula

corre o país de ponta a ponta, numa viagem com

o objectivo de conhecer as pessoas e descobrir os seus problemas. Mas o êxito do Plano Real, de Cardoso, tapa-lhe o triunfo nas Presidenciais.

- O Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, torna Lula num líder político com dimensão planetária. A iniciativa realizada em Janeiro, em pleno Verão do hemisfério Sul, tem um êxito sem precedentes, na denúncia da miséria social provocada pela ‘globalização”.

- Em 27 de Outubro, no dia dos seus 57 anos, Lula é eleito Presidente do Brasil, com 52 791 662 votos, distanciando largamente o adversário José Serra que só teve 33 369 496.

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