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Conversa da treta têm todos os portugueses

Sem tretas de oratória, porque não foi isso que os juntou há 15 anos, António Feio entrevistou José Pedro Gomes, a convite da Domingo. Humor; recordações; humor; traições matrimoniais; paixões; e histórias de humor. Assim se pautou a conversa. Mas Zé Pedro – como o trata o amigo – não evitou críticas. E bem sérias. O percurso dos dois actores, lança-se em conversas nunca antes tidas, que só se distanciam na ligação maoísta que o entrevistado assume, de quando esteve emigrado em França. Anos depois, já como dupla inseparável, visitaram o País com “Conversas da Treta”.

09 de setembro de 2007 às 00:00

António Feio – Por que é que dizem que tens mau feitio?

José Pedro Gomes – Acho que é porque falo quando a maior parte das pessoas se calam. E percebi que me faz bem ao estômago, em vez de guardar, descarregar. Recomendo vivamente a todas as pessoas que têm úlceras, mandar cá para fora o que lhes passa pela cabeça. Acho que, por isso não acontecer, é que as coisas estão como estão no País.

- Propões um País mal-disposto?

- Não!

- Uma das minhas primeiras encenações para adultos foi na Casa da Comédia – na altura, o La Féria ia ser operado à vista. E tu foste ver esse espectáculo. Até aí, nós só nos encontrávamos no bar da Comuna, ou noutro lado qualquer. A seguir a esse espectáculo, fomos comer um bife ao Snob. Eu estava muito curioso para saber a tua opinião sobre a peça. E tu mataste o espectáculo: “eu não gostei nada” – disseste-me. Daí nasceu a nossa amizade. Agradou-me a tua frontalidade. Depois, fiz outro espectáculo, com o Virgílio Castelo, nas Amoreiras, no centenário da morte do Van Gogh. Ao fim de cinco minutos, adormeceste na primeira fila. Portanto, nos meus espectáculos adormecias ou não gostavas. A partir daí, as coisas só podiam melhorar.

- Começámos a trabalhar em televisão, no Clubíssimo. Só mais tarde iniciámos a saga da ‘Conversa da Treta’, que era uma ideia minha para arranjar um espectáculo de fácil adesão para o público. Durante a digressão pelo País confirmámos que a crise do teatro não era tão negra como se dizia. Verificámos é que, muitas vezes, não havia interesse por parte das pessoas que fazem teatro em chegar ao público.

- Foi também no início que conhecemos o Paulo Dias e a ‘Conversa da Treta’ tornou-se no primeiro espectáculo da UAU – que até aí só produzia grandes espectáculos internacionais.

- Isto é importante, na medida em que a produção dos nossos espectáculos deixa de ser artesanal para passar a ser feita por uma empresa especializada.

- Do teatro, a ‘Conversa da Treta’ passou a programa de televisão. Primeiro foi gravado pela SIC, depois interessaram-se pelo formato. Fizeram uma série de 26 episódios. Depois a SIC acabou por tratar-nos mal como trata, normalmente, tudo o que é produto nacional. Passámos para a rádio e terminámos no cinema. A propósito, identificaste-te com o quê na ‘Conversa da Treta’?

- Conversa da treta têm todos os portugueses. Nós só nos especializámos. O ‘tuga’ não consegue estar calado e, mesmo quando não sabe do que está a falar, tem grandes opiniões. E opiniões históricas. Convictas.

- Acho que já lhe está no ADN.

- Exacto. Além do mais, este espectáculo deu-me a possibilidade de improvisar. Depois esse título é genial. Tu achas que não és genial a inventar, mas o título que deste é genial. És de uma genialidade a inventar.

- Eu adorava inventar para te entalar. O meu grande objectivo no mundo era entalar-te, especialmente nos dias de espectáculo, das 21h30 às 00h00. Muitas vezes entrava no palco doido com qualquer coisa para te entalar. Tal como a adesão de público que tivemos com a ‘Treta’, este novo que vamos fazer dos ‘Monty Python’ também me parece que pode gerar o mesmo. Esse é o denominador comum daquilo que queremos fazer.

- E neste momento, os ensaios têm sido muito giros. Por um lado estamos a pegar em coisas de monstros sagrados, por outro, queremos fazê-lo com essa responsabilidade. Vamos estreá-lo no Auditório dos Oceanos, dia 18, no Casino de Lisboa. Mas voltamos à ‘Treta’ para estrear novo filme para o ano.

- [Uma pergunta para entalar] E amantes, tens?

- Amantes já não tenho... tive uma e dei-me mal. Mas era mesmo facada no matrimónio! E não volto a fazer isso.

- A coisa foi recente? Foi há 15 dias?

- Já foi há muitos anos. A minha mulher é minha amante ao mesmo tempo.

- Tens dois filhos?

- Tenho uma do primeiro casamento.

- A primeira que traíste, portanto.

- A única que traí. Tenho essa filha, com 33 anos, e um filho, deste último casamento, com 12.

- Voltando a “Os Melhores Sketches dos Monty Python”; já decoraste o texto?

- Não.

- Como é que começaste a fazer teatro?

- Foi por causa de um actual colega nosso, Luís Lucas, que um dia me convidou para fazer teatro num grupo. Um deles estava na faculdade e nós no liceu D. João de Castro. Aliás, a razão ainda anterior foi por um professor que tínhamos no liceu. Nessa turma também estava o Álvaro Faria.

- Mas por textos...

- A propósito de Gil Vicente, que o deu de uma maneira tão apaixonante. Eu, o Lucas e o Álvaro fomos para a Biblioteca Nacional ler tudo sobre ele.

- Esse professor merecia uma medalha, porque deve ter sido o único que conseguiu entusiasmar alguém para o Gil Vicente.

- Exactamente. Ele, justamente, mostrava-nos nos textos de Gil Vicente a modernidade que também havia, nas coisas que ele fazia, em relação à época e ainda hoje. Depois, o Lucas entrou num grupo de malta da Faculdade de Letras. Fizemos o “Auto da Barca do Motor Fora de Borda”, do Sttau Monteiro. Fizemos dois espectáculos com esse texto, num teatro – ou talvez numa igreja –, ali para Campo de Ourique. Estávamos em 69/70. Isto numa altura que a Igreja era progressista – e dava apoio a coisas que não tinham a ver com a Igreja. Até porque no texto da peça se criticava a própria Igreja. Eu espalhei-me logo porque depois do espectáculo havia um debate com o público e falei de coisas que a PIDE não ia gostar.

- Portanto, foste preso.

- Nunca fui preso. Depois fui para França para fugir à guerra. Juntei-me a portugueses que fui lá conhecendo. E foi através de um irmão do meu cunhado que me liguei a um grupo clandestino – primeiro, sem saber muito bem– que era uma organização política.

- Tão clandestino que não sabias.

- Só soube depois, quando me disseram...

- Depois do 25 de Abril. Quando já tinhas andado a distribuir panfletos cheios de foices e de martelos. E era o quê?

- Era o CLMP – Comité Marxista-Leninista Português.

- Podia ser o Comité da Má-Língua Portuguesa.

- Não. Éramos maoístas. Éramos concorrentes do MRPP [Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado], que eu sabia se havia lá em França. E uma das actividades, para prender a atenção dos trabalhadores portugueses, das várias associações da organização iam desde fazer bifanas e sardinhadas, até ao teatro. Então comecei por fazer teatro. E passado quatro anos – já no fim – dirigi eu o grupo de teatro. Tudo isto como amadores. Quando voltei, depois do 25 de Abril, não fazia tensões de ser actor profissional. Primeiro foi uma coisa amadora, depois política.

- E a tua ideia era fazer o quê? Fazer o menos possível!

- Não, porque nessa altura já tinha mulher e uma filha; estava cheio de energia porque tinha vinte e tal anos.

- Casei. E a minha filha Marta nasceu lá.

- Começaste a fazer o quê cá?

- Ah, tinha saído de Portugal com o 6.º ano do liceu. Como tinha já chumbado dois anos, esgotava-se ali a oportunidade de me darem autorização para sair. Senão, tinha de ir à tropa. E nessa altura, em 1960, onde é que tu andavas?

- Fui para Moçambique em 68 ou 69, quando fiz 14 anos. Já tinha feito cá teatro, no Experimental de Cascais. Como era praticamente o único miúdo que havia aí em teatro, fiz cinema, rádio, televisão. Tudo o que havia. Lá, praticamente não fiz nada, a não ser quando duas companhias de cá lá fizeram digressões. Uma foi a companhia da Laura Alves – com o Ruy de Carvalho, Tomás Macedo, Canto e Castro. Outra era do Henrique Santana. Acabei por voltar depois do 25 de Abril. Mas diz-me, que profissões tiveste por cá?

- Coisas indiferenciadas. Passei muito tempo desempregado – não era fácil arranjar emprego. Trabalhei numa loja, em Lisboa, a vender coisas regionais alentejanas. Trabalhei na Dyrup, a fazer tintas, com um velhote que seria o equivalente àqueles computadores.

- Que misturavam as tintas para fazer o branco-natureza.

- Sim, mas um tipo já com sessenta e tal ou setenta anos. E o meu trabalho era ir buscar as tintas que esse tipo precisava.

- Fazias de hardware e ele de software.

- Exactamente. Era giro porque, imagina uma tina gigante com uma coisa a misturar. E ele pedia-me meio litro de azul. Depois o tipo ia afinando. Pegava num bocado da tinta e ia pintando...

- Em ti, nas costas.

- Num bocadinho de papel e punha a secar. Aquilo era uma tina enorme, que depois se despejava para as latas.

- Sei que em Paris vendias jornais.

- Sim. Fazia limpezas. Emigrante!

- Pois, eras portuga: trabalhavas bem, recebias mal e cumprias horários. E não criavas problemas, ou já criavas?

- Já criava. Uma vez fui chamado à polícia... o equivalente à PIDE de lá. Perguntaram-me o que era isso de associações – os emigrantes, não podiam ter actividade política.

- E depois das tintas?

- Passei o ano todo de 1975 a fazer o que aparecia. Em 76, estava a fazer traduções e o Álvaro Faria apareceu-me em casa, às três da manhã, para me convidar para o teatro Proposta. E em 80, o que estavas tu a fazer?

- Devia estar no teatro ADOC, que acho que acabou logo a seguir.

- Eu praticamente não contactei com a malta mais antiga do teatro.

- Trabalhei com quase todos. Não sou do tempo do Vasco Santana. Trabalhei com o António Silva; estreei-me com a Mirita Casimiro, que era a mulher do Vasco Santana. O Raul de Carvalho. Trabalhei no último espectáculo que a Amélia Rey Colaço fez – uma mulher extraordinária, já muito surda, mas com um sentido de humor...

- Aliás, tens uma história extraordinária, quando foste convidado por ela para esse espectáculo.

- Atendi o telefone e oiço do outro lado: “tá, António Feio?” Sim, sim. “Daqui é Amélia Rey Colaço.” E eu, logo, do outro lado, julguei que era brincadeira, disse: olhe e daqui é o Robles Monteiro. Que era o marido dela, que já tinha morrido. Ela já estava um bocado surda e não ouviu, mas eu comecei a entrar em pânico. Então a dona Amélia era uma daquelas pessoas que um gajo se punha logo em pé, mesmo ao telefone. Depois deste período, tu e eu começámos a fazer coisas juntos. Que é o pior que nos podia ter acontecido...

- Nós também queríamos chegar ao público. É verdade! Começámos a trabalhar no fim dos anos 80. Já lá vai muito tempo...

Um podia ser o duplo do outro – só que, claro, com todas as diferenças fisionómicas óbvias. O humor de um é a sombra das tiradas do outro, e vice-versa. José Pedro Gomes ri mais, é certo. Mas as risadas de António Feio são para dentro. Talvez até em igual número. São uma dupla que conversa, quer seja treta ou não. E foi neste ambiente descontraído que António Feio chegou ao restaurante Sabor a Brasil, no Parque das Nações, Lisboa: pronto a disparar perguntas ao colega. E algumas delas à queima-roupa.

Chegou poucos minutos atrasado, Zé Pedro – como o trata o amigo/entrevistador – é o ‘rapaz’ vivaço ideal para não deixar perguntas órfãs de resposta, com ou sem humor, ou na ‘reinação’.

Pouco álcool. Uma cerveja para Zé Pedro; coca-cola para António Feio. Um bife bem passado para o primeiro; picanha para o segundo, que deixou a maior parte dos acompanhamentos na travessa – é magro; e fuma bastante, parece que tem as ideias muito agitadas pelo pensamento.

Na estreia fora dos palcos, numa entrevista de Feio para Zé (a convite da Domingo), revelaram a paixão comum: representar e deixar a plateia em dilúvio de riso.

JOSÉ PEDRO GOMES

Nasceu em Lisboa a 28 de Dezembro de 1951. Para fugir à tropa, emigrou para França, onde chegou a ser actor de teatro amador. Regressou depois do 25 de Abril e, em 1976, inicia uma actividade profissional como actor. Tem dois filhos, com 33 e 12 anos, de mães diferentes.

ANTÓNIO FEIO

Nasceu a 6 de Dezembro de 1954, em Lourenço Marques, Moçambique. Viveu lá até aos 7 anos – veio viver para Carcavelos – e regressou aos 14. Fez teatro desde muito novo. Tem quatro filhos e é divorciado.

"CONVERSA DA TRETA"

É uma ideia de José Pedro Gomes, com título de António Feio, que juntou a dupla no teatro, televisão, rádio e cinema. Para o ano estreia novo filme.

"MELHORES SKETCHES DOS MONTY PYTHON"

Corrosivo? É o estilo. O humor e a ironia dos “Monty Python”. Será o próximo espectáculo, a estrear, dia 18, às 22h00, no Auditório dos Oceanos do Casino de Lisboa (no Parque das Nações): “Melhores Sketches dos Monty Python”. Nuno Markl traduziu, e adaptou à realidade portuguesa, os textos da série britânica que fez sucesso entre 1969 e 1974 - com os actores Eric Idle, Graham Chapman, John Cleese, Michael Palin, Terry Jones e Terry Gilliam. E para levar à cena os ‘sketches’ deste filão de risos, estarão os actores António Feio, José Pedro Gomes, Bruno Nogueira, Jorge Mourato e Miguel Guilherme. Ao público apresentam-se com temas mundanos, sociais, políticos, que vão da medicina, Igreja, vida militar ao sexo.

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