São enfermeiros em Portugal, profissão que escolheram há mais ou menos anos. As vidas e as histórias de que se tecem os seus dias
De manhã, entre Setembro de 2010 e Março de 2011, Filipa P. era caixa no supermercado do bairro onde cresceu. De tarde, vestia a bata branca e amparava doentes, curava feridas e dava injecções num posto de socorros. Uma espécie de vida dupla, dividida entre a realização económica e a realização profissional.
De manhã tinha contrato, férias e regalias, certezas e poucos medos, além de um salário superior ao ordenado mínimo. De tarde, garantia pouco mais de 200 euros por mês a recibos verdes, mas desempenhava a profissão que sempre soube que ia ter, mesmo na altura em que as outras meninas da escola sonhavam ser bailarinas.
“Não me lembro de querer ser outra coisa, apesar de nunca ter estado internada, de pouco contacto ter tido com enfermeiros ao longo da vida e de não ter nenhum na família. Sempre soube que queria ser útil aos outros.”
Fomos à procura destas e de outras motivações. Ouvimos quem escolheu a profissão que desde o início do mês tem estado nas bocas do País por causa das contratações a preço de saldo.
Nem um ano depois de iniciar a profissão no posto de socorros, Filipa, 24 anos, arranjou emprego no centro de saúde de Azeitão (Setúbal) e abandonou o supermercado. “Era uma mistura de emoções: de manhã passava produtos na caixa que se me enganasse anulava; à tarde tinha responsabilidade com a saúde das pessoas.” Ganhava seis euros à hora, o que somava 800 euros por mês.
Outra oportunidade surgiu entretanto: cuidar de um senhor de 86 anos. “Entrava nesse domicílio às 07h e saia às 13h e depois trabalhava no centro de saúde das 14h às 20h.” Conseguia 1300 euros por mês nos dois empregos. “Só ia a casa dormir, não tinha tempo, andava estafada.”
No último ano manteve-se apenas no centro de saúde. Foi uma das enfermeiras a quem propuseram ganhar 3,96 euros à hora. “Se fizer retenção na fonte levo para casa 200 a 300 euros, não dá para nada.” Filipa ainda mora com os pais, mas sonha um dia conseguir juntar--se ao namorado.
“Somos a base do Sistema Nacional de Saúde, mas precisamos que nos tratem com dignidade.” É pelas pessoas que continua. “Denunciei, participei em concentrações. Mas não consegui virar costas ao meu trabalho. Estou à espera para ver o que acontece.” O Governo comprometeu-se a acabar com a contratação de enfermeiros a baixo custo para o SNS, em resposta à contestação dos profissionais, assumiu publicamente o bastonário da Ordem dos Enfermeiros.
De professor a enfermeiro
O caminho faz-se caminhando, mostra a vida de Pedro Fonseca, 47 anos de vida e apenas quatro na enfermagem. Há dez anos, depois do curso de Teologia que o levou a experiências missionárias e de anos como professor numa secundária, resolveu “reorientar a vida” e procurar-lhe um sentido. A memória dos enfermeiros, que nos hospitais de campanha da Angola natal cuidavam das populações, ajudou na escolha com tanto de tardia como de consciente.
O primeiro trabalho na área, já depois dos quarenta e homem feito, foi numa ala de cuidados paliativos na Lourinhã, onde “há sempre gente a partir e a função do enfermeiro é fazer com que a pessoa passe da vida para a morte com a maior serenidade possível. Quando sabia que estava perto o fim da vida de um doente não conseguia ir para casa. Ficava à cabeceira para me despedir. Não conseguia afastar-me e voltar no dia seguinte para ver a cama vazia”. Pedro, divorciado, é natural do Porto, onde moram os dois filhos, de 11 e 14 anos, mas só no centro do País conseguiu lugar. Depois da Lourinhã seguiu-se o centro de saúde de Odivelas, 35 horas por semana a sete euros à hora que ao final do mês davam 900 € até aqui. “Muito menos” do aquilo que ganhava como professor, mas a escolha chama-se amor à camisola. Agora, a incerteza. “Se os quatro euros forem para a frente, eu sou uma dessas pessoas.”
Bruno Fonseca também conhece bem a realidade dos cuidados paliativos. É enfermeiro na Equipa da ULS de Matosinhos. “Além do acompanhamento em consulta e internamento, temos um enfermeiro a tempo inteiro em cada centro de saúde a dar assistência domiciliária.”
Tem 34 anos e um percurso típico de quando ainda havia falta de enfermeiros. Tirou o curso na Escola de Enfermagem do São João, no Porto, e começou a trabalhar logo. “Fiz parte das fornadas que conseguiam ir para o que queriam. Tem sido seguro, até agora.”
Bruno, casado e sem filhos, trabalhou em Amarante, onde nasceu, durante pouco tempo porque preferia viver no Porto. O seu ordenado ronda hoje os 1000 euros. “Apesar de estar, neste momento, a desempenhar uma função mais específica, ganho menos do que no hospital porque fazia os turnos nocturnos e fins-de-semana.” Está estável profissionalmente, mas o trabalho nos cuidados paliativos não é fácil. “Trabalho com doentes terminais, debilitados fisicamente e dependentes.” Uma doente, “de 89 anos, disse-me que a minha visita era muito importante e perguntou se pagando eu podia ir lá no fim-de-semana, porque se sentia mais segura”. É na iminência da morte que se vê a grandeza dos doentes, diz. “Nessas alturas somos todos parecidos. Há famílias de doentes que já morreram e que ainda me ligam todos os natais a desejar as boas-festas. A gratidão é enorme. Os Cuidados Paliativos não é passar a mãozinha e dar morfina.”
Estava de serviço no Festival Sudoeste de 2003 quando foi confrontada pela organização com a informação de que Jay Kay, vocalista dos Jamiroquai, estava indisposto e com dores abdominais. A situação colocava em risco o espectáculo. Faltavam apenas 15 minutos para o artista subir ao palco da Herdade da Casa Branca, em Zambujeira do Mar, Odemira.
“Foi tudo muito rápido. Trocámos algumas impressões para avaliar a situação e depois foi medicado. Acabou por dar o espectáculo”, lembra Paula Remédios, enfermeira na Urgência do Hospital de Beja, mas que naquela altura prestava serviço para a Cruz Vermelha.
A vida de Paula, que também foi bombeira, obedece aos horários dos turnos e a determinadas regras exigidas pela profissão. Depois de vestir a farda e de colocar a identificação, assiste à passagem de turno e ao briefing sobre a Urgência.
“Já salvámos muitas vidas, mas também já vimos conhecidos falecerem”, frisa a enfermeira, que recorda o dia em que recebeu um telefonema da própria mãe a informar de que estava encarcerada devido a um acidente de viação com o marido, perto de Beja. “Estava de serviço e recebi-a na Urgência. Foi assistida e felizmente recuperou. O meu pai não necessitou de assistência”, lembra a enfermeira com 21 anos de profissão e um ordenado de 1370 euros.
Viver em “stress constante” e no “fio da navalha” são as características do dia-a-dia de Albino Alberto, 42 anos, enfermeiro no serviço de Urgência Geral do hospital de Viseu há 13 anos. Casado com uma colega de profissão, a gestão familiar é a “grande preocupação” do casal. Catarina Belo é enfermeira no mesmo hospital, mas no serviço de Urgência de Obstetrícia. O casal tenta conciliar os turnos e encaixar os horários para gerir a vida familiar, mas não é fácil. O mais recorrente é um deles parar o automóvel à entrada do hospital com as crianças, para dar lugar ao outro. Em casa, a enfermagem fica de lado. “Decidimos nunca falar de trabalho, até porque o tempo que passamos juntos é tão pouco que temos de aproveitar”, diz Catarina Belo.
Vítor Varela, 53 anos, também ele casado com uma enfermeira, foi o primeiro enfermeiro com a especialidade de Saúde Materna no quadro da Maternidade Alfredo da Costa. Foi convidado para abrir no Garcia de Orta o serviço de Obstetrícia. Tem um mestrado na área de comportamento organizacional, foi um dos fundadores da Associação Portuguesa de Enfermeiros Obstetras e ainda foi membro da Confederação Internacional de Parteiros. “Uma pessoa como eu chega às 08h ao hospital e à 01h da manhã ainda pode estar a trabalhar.” Até às 17h no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, e depois na clínica Onda Saúde, onde é sócio-gerente. Trabalhar no privado a par do público, foi, no início, “uma opção por necessidade económica”. Foi consultor, assessor, professor no ensino universitário. Como enfermeiro-chefe no último escalão ganha hoje dois mil euros. “A clínica [que nasceu em 2006] ainda não dá dinheiro, foi um grande investimento.” Ainda arranja uma a duas horas por dia para trabalhar noutra actividade: é presidente do Colégio da especialidade. “Precisava de mais horas no relógio. É difícil conciliar a profissão com a família [tem quatro filhos, dois de um primeiro casamento]”. Já ajudou a nascer pelo menos mil bebés. “Sei os nomes de todos e peço aos pais para me enviarem uma fotografia”. Ainda hoje, décadas depois do primeiro dia, se emociona com o milagre que é a vida quando lhe nasce nas mãos.
No hospital de Setúbal nasce-se dentro de água
Gil Loureiro nasceu de parto normal, na água, no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, o único do País a fazer tal prática. Em muito graças a Vítor Varela, o enfermeiro-chefe que durante anos se bateu para que essa forma de fazer nascer fosse reconhecida em Portugal. “Vêm casais de norte a sul do País por causa dos partos na água. Fazemos 2/3 partos destes por mês”, conta o enfermeiro que aos 17 anos, num primeiro estágio do Curso Geral de Enfermagem, percebeu que a sua vida ia passar por ajudar outras vidas a nascer. “As emoções aqui são muito fortes.”
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