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Há máxima voltagem no cabaret

Começou como bar de espiões onde só faltava Humphrey Bogart. Depois foi local da alta sociedade alfacinha e acabou em casa de alterne. Em Janeiro, Manuel João Vieira, líder dos Ena Pá 2000, e o padrasto ressuscitaram a ‘boîte’ mais importante do país. Bem vindos à nova vida do velhinho Maxime.

25 de junho de 2006 às 00:00

Os ponteiros do relógio ditam novo dia acabadinho de chegar quando um pequeno grupo de amigos se encaminha para uma mesa a beijar o palco, com o objectivo de assistirem de perto ao concerto dos Corações de Atum, para não fugir à regra a abusar da pontualidade tipicamente portuguesa: mais de um hora de atraso, no mínimo. Os efeitos da bola de espelhos pintam o tecto e as paredes com brilho cintilante, Edith Piaf solta a voz no leitor de cd, emprestando à sala toda a magia do cabaret francês.

A diva canta sem mácula ‘La Vie en Rose’ enquanto os três jovens dão vivas ao fim-de-semana que começa e discutem embevecidos a originalidade da casa, o estilo ‘kitsch’ das cadeiras de madeira maciça, revistidas de veludo vermelho sangue, a condizerem com o ambiente onde as modernices há muito deixaram de fazer sentido. “Parece que estamos no espaço”, diz um deles enquanto o sr. João, sempre atento e meticuloso, se acerca da mesa. “Isto é completamente fora. Mesmo muito bom”, completa o outro, indiferente à presença do empregado, a desesperar por ouvir o pedido e mais do que habituado àquela reacção por parte de quem é caloiro no número 58 da Praça da Alegria.

No coração de Lisboa, a dois passos da Avenida da Liberdade, o Maxime goza de geografia tão privilegiada quanto certeira: de um lado o Fontória, local de diversão nocturna para adultos onde os ‘shows’ de ‘striptease’ são o prato forte da ementa; do outro o Hot Clube de Portugal, sede do jazz de aquém e além mar, música excelente a estimular os sentidos. E a tendência é o velho cabaret se tornar ainda mais o centro de todas as atenções, graças à já ditada mudança do B.Leza para o Teatro ABC e os sinais de vida vindos do Parque Mayer.

José Fernando aterra ali pouco depois dos miúdos. Sessenta e sete primaveras de traquejo e matreirice para dar e vender, anda nas lides da noite há mais de três décadas, o tempo daquele fato comprado em 1976 numa alfaiataria da Rua Augusta, calças à boca de sino e corte janota, fino, embora ultrapassado, sem jamais cheirar a mofo. Brilhantina no cabelo grisalho bem puxado para trás, o ‘senhor Fernando, como é conhecido, perde a conta aos poisos por onde se perdeu em conversetas até às tantas e namoricos de circunstância, do Cova da Onça, na Avenida da Liberdade, ao Nocturno 76, na Duque d’Ávila. “Alguma vez ouviu falar na Gata, no Príncipe Negro, no Arcádia, no 2B, no Scotch?”, questiona para demonstrar estudo aprofundado de dezenas de ‘boîtes’, visitadas em gincana naquela altura em que ainda andava com a trupe atrás, meia dúzia de marialvas dispostos diariamente à paródia. “Isso é que eram tempos. Muitos nos divertimos nós”, afirma nostálgico, a imaginar-se lá longe, jovem, a rebentar de testosterona e elegância, numa roda viva para percorrer todas as capelinhas.

Fernando já merecia um prémio de resistência. Enquanto a rapaziada da sua adolescência preferiu assentar, incapaz de acompanhar a pedalada e a mudança, ele virou costas ao apelo do sofá, do casamento, dos filhos, das telenovelas brasileiras. “O quê? Com filhinhos já tinha morrido, ainda me calhava algum drogado ou maricas e estava lixado”, adivinha ao pôr o ar mais sério do mundo.

Boémio dos sete costados, sai com o acerto de uma balança de precisão, sempre às quartas e sábados. Quando entorna um copito a mais até dá corda aos sapatos e arrisca um passo de dança. Diz quem vê, dá espectáculo. “Não ando a dançar para os outros, mas gosto, dá-me prazer. É uma espécie de vingança em relação à vida triste. Quando chego aqui já venho de um jantar bem servido e regado, mas sou capaz de aguentar até às seis ou sete da matina”, diz momentos antes de sacar de um isqueiro que lhe ofereceram por altura do 53.º aniversário do Fontório, com a tampa entretanto escangalhada.

'VER AS MULAS'

Antes de rumar ao Maxime, é na concorrência que passa para “ver as mulas” com quem acaba por gastar alguns cobres num ou outro ‘cocktail’, no máximo, que o ordenado nunca esticou para pagar champanhe a ninguém. Sono sempre em dia, diverte-se mas não sai por vício, jurando-se “incapaz de gastar 70 mil contos com as mulas”, como alguns doutores que conhece que não conseguem ter outra diversão e adoram pintar o diabo a quatro.

Depois de andar na labuta anos a fio na loja ‘Paris em Lisboa’, de onde saiu reformado, sustento suficiente para as deambulações de solteirão inveterado, o sexagenário está longe de se imaginar parado. Tem uma saúde de ferro, não há nada que o deite ao tapete: “Comecei a trabalhar com 14 anos, entrei para a caixa de previdência em 1954 e não tive uma baixa. O médico nunca me fez uma consulta, nem um comprimido me deu. Acho que não há um gajo como eu”, dispara orgulhoso ao mesmo tempo que ergue o copo de ‘whisky’ com gelo. “Fui sempre homem da noite mas nunca fui bêbado. Bebo sempre para fazer despesa, para me refrescar.”

Do sexo a rodos no Maxime afirma não se lembrar. Há mais de 20 anos entrava ali depois de ver uma revista no Parque Mayer só para beber uma cerveja, enquanto acalmava o estômago com o bifanas ou pregos no pão. Só se tornou ‘habitue’ há seis ou sete anos, quando o engenheiro Victor tomou conta do bar. E não dúvida: se voltasse atrás fazia a mesma vida, que a cova já não lhe tirará o prazer que recebeu nas longas noites de Lisboa.

O tal engenheiro, como o senhor Fernando e vários frequentadores da velha guarda tratavam o antigo gerente do Maxime, não mudou de ramo mas trocou a Praça da Alegria por outras paragens da capital. O negócio parado e a fama duvidosa ditavam a morte quase certa do mais famoso e histórico cabaret do país, o único capaz de – à sua maneira bem lusitana – intrometer-se naquele nicho de lugarejos recônditos das principais capitais europeias, que merecem a visita do turista mais atento. Aqueles lugarejos onde se escreveram muitas histórias da sociedade, onde se guardaram segredos inconfessáveis, onde se conspirou contra tudo e todos, onde muito se cortejou as coristas à procura de meia dúzia de trocos.

COMEÇOU EM 1939

Se aquelas paredes falassem, milhares de histórias contariam. O Maxime nasceu em 1939, era então usado em inúmeros jogos de espiões, aliados e nazis, que ali se encontravam de soslaio para reuniões secretas no início da II Guerra Mundial. Escondido quanto baste, lembrava o Rick’s Cafe do famoso ‘Casablanca’, onde Humphrey Bogart se deliciava embalado pelos solos de piano e exigia mais música.

‘Play it again, Sam’ é frase de que não há memória nas paragens alfacinhas onde o galã de Hollywood teria posado bem para a fotografia. Estivesse ele em Portugal – o filme, curiosamente, acaba com a referência ao país – e assistiria embevecido, recostado numa daquelas cadeiras de veludo, aos grandes espectáculos internacionais que passaram pelo palco do Maxime, cabaret com ‘t’, que o acordo ortográfico é recente e a tradição tem de ser cumprida. Ora essa.

O período áureo de relevância artística durou pouco. A partir das décadas de 40 e 50 aconteceu a descida ao abismo, a decadência no mergulho sem botija ao mundo da prostituição. Cortinas corridas no salão, praticava-se o sexo sem receios, com papel higiénico pendurado nas paredes, preparado para qualquer emergência ou aflição.

Nos anos 70 e 80 o ambiente do Maxime amainou a veia ‘hardcore’, com as alternadeiras a convidarem os clientes para alguns ‘drinks’ pagos a peso de ouro, que relações carnais só fora de portas. Donos teve muitos, em especial nas últimas décadas, como a ‘Madame Havane’, francesa casada com português que encontrou naquela famosa esquina, o paraíso para o seu ‘ménage.’ ‘Très chic’? Nem pensar. “Eu não era mobília da casa mas cheguei a entrar no bar por essa altura, às vezes quando o Bairro (Alto) já não estava funcionar e ainda apetecia beber um copo. Havia gente porreira que aparecia por achar o espaço curioso, naquele estilo piroso que não deixa ninguém indiferente. E até se tornou moda”, lembra Duarte Barrilaro Ruas, actualmente porteiro da casa.

No bolso do casaco, o rapaz alto e bem disposto que disfarça sem mácula os 38 anos do BI guarda cartões de ‘clubs’ das redondezas dedicados ao antigo negócio do Maxime, por causa de clientes antigos menos atentos à mudança, volta e meia batidos à porta na ânsia de conquistarem mulheres a troco de uns euros. Sorriso amarelo nos lábios, Duarte vê-se então obrigado a soltar, “Desculpe lá, isto tem nova gerência, já não há aqui alterne nem prostituição.”

Por norma não há zaragata, nem cenas de faca e alguidar. Os nove anos de currículo passados à porta do Frágil e do Lux, aos quais junta os 22 de actor, também ajudam a amenizar eventuais conflitos. Mas nunca na vida lhe tinha acontecido dar de caras com figurões de meia idade, bêbados, a perguntarem por meninas. “É um trabalho ingrato porque há quem não saiba ao que vem e apanha-se gente dos 18 aos 70 anos, uma faixa etária enorme, onde os mais velhos ainda recordam o antigamente. Nunca tinha apanhado números deste género.”

Apanhou-os de livre e espontânea vontade. Com o diploma de Técnico de Higiene e Segurança no Trabalho debaixo do braço, estava a iniciar-se na profissão quando o bichinho da noite e a amizade a Manuel João Vieira falaram mais alto. Incapaz de recusar o convite, ao qual até achou piada, desunha-se agora para fazer também de relações públicas, mestre de cerimónias e contador de anedotas nas horas mais mortiças do Maxime. Sempre dá uma graça à sua actividade teatral, preferindo apelidar-se de ‘frontman’, verdadeiro homem dos sete ofícios. “Não há um director técnico, todos interpretamos mais do que um papel, mas também não me queixo. Os tempos são outros, a programação é muito engraçada e o ambiente diferente do antigamente”, apressa-se a sublinhar.

'REVOLUÇÃO'

A revolução, sem direito a abertura de telejornais, começou a 13 de Janeiro deste ano, quando Bo Bäckström e o enteado, Manuel João Vieira, inauguraram uma gerência que se quer eclética, instruída e divertida. Vieira, aliás, Lelo Minsk, Lelo Marmelo, Elvis Ramalho, Orgasmo Carlos, Manuel Vieira e candidato Vieira, anda numa azáfama desde esse dia, com ideias em barda e vontade de tornar um bar de má fama num ponto de cultura e entretenimento. “Existe um desejo de devolver aos lisboetas uma propriedade que sempre foi deles, e que neste momento está organizada de uma maneira ligeiramente diferente da anterior, que era mais alternativa”, solta com aquele tom compenetrado que quase o tornou adversário de Cavaco Silva, Manuel Alegre e Mário Soares – quem não se lembra da proposta de felatios gratuitos para toda a gente, que atire a primeira pedra...

Espécie de faz tudo e especialista na arte do desenrascanço, diz-se consultor jurídico, de programação e imagem, “uma pequena roda dentada nesta enorme máquina que é o Maxime”.

Será um sítio pouco recomendável para um presidente da República? “Pelo contrário, acho ideal para presidentes, seja lá do que forem: da junta, da República, etc. Porque o Maxime oferece e proporciona um certo requinte e luxo ligeiramente decadente e maroto, que retempera as forças de um combatente pela liberdade e pela democracia em qualquer lado do mundo.” Cavaco Silva ainda não passou por ali, uma falha “enorme, até porque neste momento de crise é que são necessários estes locais. Ele devia cá estar.”

'TEMOS UM BOCADINHO DE TUDO, DO ROCK AO JAZZ'

Bo Bäckström, 59 anos, conhece de gingeira o Maxime. Há três décadas era então um jovem sueco ligado ao turismo, acompanhou um grupo de conterrâneos a este rectângulo à beira mar plantado. Missão: divulgar o país, arrastar gente do Norte da Europa para um clima temperado pela brisa do Mediterrâneo. Durante anos afastado de Portugal, apagou o local da memória. Foi o enteado, Manuel João Vieira, quem lhe lembrou de existência de tal espaço, a propósito de um concerto dos Irmãos Catita. “Há um ano e meio regressei com a minha mulher de uma vida de saltimbanco - fui chefe de delegação da Cruz Vermelha Internacional - e comecei à procura de um bar, um café ou uma galeria na província, ali para os lados da Costa Alentejana.” Tinha como objectivo levar uma vida calma mas o destino empurrou-o para Lisboa quando encontrou um pedaço de jornal onde se procurava novo concessionário para o número 58 da Praça da Alegria. “Não sabemos qual vai ser o resultado da aventura. Temos uma programação diversificada, multicultural, que tanto pode estar no rock e na electrónica como no fado ou no jazz.” A casa de alterne deu lugar à sala de outros prazeres.

'A PROGRAMAÇÃO É ESQUIZOFRÉNICA...'

Entre um gole num brandy (?) – vem logo à cabeça o slogan “o que é que se bebe aqui?” – e mais uma passa no cigarro, Manuel João Vieira dá voltas aos papéis para compor a lista de canções com que naquela sexta-feira iria presentear a audiência ao comando dos Corações de Atum. Faz pela vida depois de duas vezes candidato a candidato à presidência da República, saltitando entre a pintura, a música e, nos últimos meses, a organização do programa de festas do Maxime.

“Não sei qual é a relação do tubarão com o vinho, por isso sinto-me mais como peixe na água nesta casa”, brinca o artista, experiente nestas andanças devido aos muitos fins-de-semana passados a animar o Cinearte, quando os Irmãs Catita por lá injectavam loucura nas noites da capital. Era folia até às tantas, um regabofe que acabava invariavelmente com os músicos em avançado estado de alcoolémia, logo seguidos pelo público, que também não queria ficar atrás, aprontando-se para fazer estragos em qualquer teste do balão que lhe aparecesse.

No Maxime a música é outra. A tónica da programação “eclética e esquizofrénica” assenta no espectáculo, em especial no cinema e nas escolha das bandas, de garagem ou profissionais, velhinhas ou em início de carreira, que por ali vão mostrando a sua arte. O ‘striptease’ e o ‘show internacional’ ficam para outras núpcias Mesmo sem ele, não há problema de a fórmula se esgotar num núcleo de artistas habituais, por tratar-se de “um modelo inesgotável, a arte de fazer combinações, em que se tem de confiar na sorte, no acaso e no salve-se quem puder.”

Longe da casa de alterne do último reinado, a ideia é transformar o cabaret num espaço alternativo, com vibrações sonoras que vão de Jorge Palma a José Cid ou Dead Combo, enquanto às quartas-feiras há sessões de cinema, sempre com filmes de culto, nunca vistos nas salas ou já muito antigos e fora do circuito. A mudança só é radical ao nível dos conteúdos, que o bolo continua igual e recomenda-se: o estilo ‘kitsch’/piroso mantém-se, com excepção feita à remodelação das casas de banho e renovação de camarins e parte eléctrica. O ‘show’ de cabaret do Maxime também está ser equacionado, distante dos congéneres alemão e francês, onde o luxo abunda e a tradição é forte. O revivalismo passa por convidar artistas que passaram por essa fase de ‘bas fond’, parte do cardápio para atrair velhos e novos clientes. “Este é um espaço de reunião, onde há uma boa acústica e o palco penetra quase de uma forma sexual na audiência, num tipo de sintonia e envolvimento extremamente salutar”, eterniza Vieira.

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