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‘Impeachment’ à portuguesa

Processo de destituição do presidente da república seria muito diferente daquele que afastou Dilma

04 de setembro de 2016 às 10:52

Nem com o Acordo Ortográfico a vigorar passou a haver em Portugal   aquele   ‘impeachment’ que nesta quarta-feira levou à destituição da presidente   brasileira    Dilma Rousseff, 24 anos após Collor de Mello renunciar ao cargo horas   antes   de   lhe   suceder precisamente o mesmo. Mas isso não significa que o Presidente da República não possa também   ser   afastado   deste lado do Atlântico.  

O artigo 130º da Constituição da República Portuguesa estipula   que   a   condenação do   Chefe de Estado por crimes praticados no exercício de funções "implica a destituição do cargo e a impossibilidade de reeleição". Só que não   seriam   representantes eleitos do povo português a avaliar a culpa e sim os juízes conselheiros   do   Supremo Tribunal   de   Justiça   (STJ), num processo com uma sucessão de passos e incomparável às sessões na Câmara dos Deputados e no Senado do Brasil, que tiveram direito a transmissões televisivas de Brasília para todo o Mundo.

Em Portugal, a destituição teria início por proposta de um quinto dos deputados da Assembleia   da   República, sendo necessária uma maioria qualificada de dois terços – a mesma que permite a revisão constitucional – para o processo ser julgado no STJ. Só   após   a   condenação   do Chefe de Estado por crime de responsabilidade, cometido no exercício das funções, ter transitado em julgado, caberia ao juiz-presidente do STJ enviar a certidão da decisão condenatória para o Tribunal   Constitucional. Este reuniria em sessão plenária no dia seguinte e, verificada a autenticidade da certidão, declararia o Presidente da República destituído.

Nunca equacionado

Nunca tal coisa aconteceu em Portugal, e os quatro ex-presidentes eleitos desde a entrada em vigor da Constituição de 1976 (Ramalho   Eanes, Mário   Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva) levaram até ao fim   os   seus   dois   mandatos. Até   porque   a   existência   de crimes   de   responsabilidade se torna improvável quando o Presidente da   República não detém   o   poder   executivo. "Há   situações   hipotéticas, mas é muito mais difícil sucederem   em   semipresidencialismos como o nosso", reconhece o constitucionalista Carlos Blanco de Morais, sem excluir   condutas   abusivas, como "usar sistematicamente o veto de bolso [recusa de promulgar   leis,   de   forma   a que   o   processo   legislativo volte ao início]", o que sucedeu com Eanes, mas deixou de ser possível depois da revisão constitucional de 1982.

"Essa   hipótese   nunca   foi equacionada. Nem em momentos de confrontação com o Presidente", recorda o constitucionalista   Pedro   Bacelar de Vasconcelos, deputado do PS, sublinhando que o processo de destituição "exigiria um acordo transversal às várias forças políticas".

Algo que também é necessário para o ‘impeachment’ de   presidentes   brasileiros, pois   dois    terços   dos   eleitos para a Câmara de Deputados devem aprovar um relatório favorável à continuidade do processo   para   que   este   seja avaliado pelo Senado. Com o (no caso de Dilma, ‘a’) Chefe de Estado suspenso, o vice- -presidente assume o cargo interinamente – assim foi com Michel   Temer, como antes   sucedera   a   Itamar Franco,   ‘vice’   de   Collor   de Mello –, ficando a destituição   dependente   de   nova maioria qualificada de dois terços dos senadores.

Julgamento político

Horas depois de deixar de ser presidente   do   Brasil,   com   a ironia de Collor de Mello ser um dos 61 senadores que ditaram o seu afastamento, Dilma Rousseff passou ao ataque. "Os senadores que votaram pelo ‘impeachment’ escolheram rasgar a Constituição. Condenaram uma inocente e consumaram um golpe parlamentar", disse, voltando a defender que foi alvo de um processo político que nada tem a ver com as ‘pedaladas fiscais’ [atraso de pagamentos ao Banco do   Brasil e bancos   privados,   criando   a ilusão de que a despesa pública   era   menor]   e   o   recurso   a crédito sem autorização do Congresso que levaram à sua condenação   por   crime   de responsabilidade.

"Se a instância que tivesse de julgar e decidir a destituição de Dilma Rousseff fosse judicial, seguramente não o faria com a ligeireza com que todo este processo aparentemente decorreu", diz Bacelar   Vasconcelos,   que   sublinha o contraste com o que sucederia em Portugal: "Entregar-se-ia ao poder judicial a averiguação e confirmação   de   uma   conduta   de índole criminoso, o que faz sentido no quadro do nosso sistema político".

Também Blanco de Morais afirma que o ‘impeachment’, tal como existe no Brasil e nos EUA,   é   típico   dos   sistemas presidencialistas, nos quais o Chefe de Estado não depende dos parlamentares, levantando-se a questão de como lidar com crimes no exercício das suas funções. "Criou-se um mecanismo de responsabilização em que se procede a um julgamento político, feito por um órgão político, parlamentar, representativo, também   com   legitimidade   democrática, embora presidido pelo presidente do   Supremo   Tribunal", diz o professor catedrático, admitindo que "é um processo jurisdicional híbrido e equívoco".

No caso de Dilma Rousseff, ao contrário do que sucedeu com   Collor   de   Mello,   não houve inabilitação de direitos políticos, pelo que a sucessora de Lula da Silva pode voltar a apresentar-se como candidata presidencial do Partido dos   Trabalhadores   (PT)   em 2018 mesmo que o Supremo Tribunal   Federal não dê procedimento   ao   seu   recurso para que a votação seja repetida no Senado, voltando Michel Temer a ser apenas presidente interino.

A separação entre a destituição e a inabilitação de direitos   políticos   é    vista   por Bacelar   de   Vasconcelos como   algo   que   "não   é   uma solução bizarra". Segundo o presidente   da   Comissão   de Assuntos   Constitucionais, Direitos,   Liberdades   e   Garantias da Assembleia da República,   "os   crimes   de   que Dilma é acusada não atingem a gravidade que poderia determinar essa inibição".

Por   seu   lado,   Blanco   de Morais,   embora   considere que "o debate foi particularmente rico em termos jurídicos", realçando a "excelente argumentação   dos   dois   lados",   discorda   da   forma como o processo foi conduzido. "Na minha opinião de constitucionalista, a norma constitucional   liga   diretamente a destituição à inabilitação do exercício de cargos públicos. É algo que é automático   e   que   depende   da própria Constituição", diz.

Especialmente graves

Quanto aos crimes comuns, que nada tenham a ver com as suas funções, incluindo crimes contra a vida, o Chefe de Estado português está mais protegido do que o homólogo brasileiro. Enquanto o titular do Palácio do Planalto pode ver o mandato suspenso por 180 dias para se defender da denúncia do   procurador-geral da República ou da queixa-crime de um ofendido, a Constituição   da   República Portuguesa estipula que "por crimes estranhos ao exercício das suas funções o Presidente da República responde depois de findo o mandato perante os tribunais comuns".

"É   uma   grande   falha   da nossa   Constituição",   afirma Blanco de Morais, defendendo que o julgamento do Chefe de Estado poderia ocorrer durante   o   exercício   de   funções caso estivesse acusado de "crimes de homicídio, de traição   à pátria ou outros especialmente graves". Mesmo concordando que esperar até ao fim do mandato é aceitável em "bagatelas penais, crimes de injúria ou que tenham a ver com   o   uso   da   liberdade   de expressão", o catedrático diz que "faria sentido haver uma disposição constitucional diferente   para   crimes   graves, que teriam de ser tipificados".

Reconhecendo que "o Presidente da República não fica impune,   mas   enquanto   for Presidente não pode ser julgado   e    condenado",   Bacelar de Vasconcelos acredita que um   Chefe de Estado acusado de um crime de sangue "deixaria de ter condições políticas   para   manter   o   mandato até ao fim". Algo que impediria a eventualidade de um julgamento ser impossível, no limite, durante cinco anos.

"Tornava-se insuportável, institucionalmente e junto da opinião   pública,   a   permanência do   Presidente da República em funções. Nem sequer teria condições objetivas para o exercício do cargo. São situações extremas e que espero que não ocorram. Mas pode sempre ocorrer um grave crime financeiro, passional, ou outro dessa natureza", conclui Blanco de Morais.

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