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Pessoa era um liberal na economia

O poeta não é só um fingidor – também é um homem de negócios (mal sucedidos, é certo), capaz de pensar sobre economia e gestão de empresas. Fernando Pessoa defendeu, em 1920, ideias que os ministros das Finanças repetem nos seus discursos. A julgar pela compilação de textos dada à estampa pelo jornalista Filipe Fernandes, temos novo heterónimo. Eis o economista Pessoa.

23 de dezembro de 2007 às 00:00

- Como surgiu a ideia de publicar ‘Organizem-se! A Gestão segundo Fernando Pessoa’?

- Li o livro de António Mega Ferreira (‘Um Retrato de Fernando Pessoa, o Empreendedor’) em que faz referência a textos de gestão e economia de Pessoa. Foi a partir daí que comecei a pesquisar e acabei por concluir que havia trabalhos parcelares, mas nenhum que tentasse juntar todos os textos – os que já tinham sido publicados e os que ainda estavam no espólio, apesar de serem já conhecidos pelos pessoanos.

- Há textos inéditos?

- Exactamente. Fazem parte do espólio, vários pessoanos os tinham lido, o próprio Mega Ferreira o tinha lido e chega a referi-los pela quota em que estão no arquivo de Fernando Pessoa, mas alguns não tinham sido editados. O público em geral não tinha acesso a eles, a não ser na Biblioteca Nacional.

- Há um heterónimo economista?

- Já se conhecem setenta e tal e se juntarmos mais um... Um professor brasileiro, antigo presidente do Banco Central do Brasil, diz que Pessoa, para gerir tudo o que foi, tinha mesmo de ter um lado economista. Mas... a sério, a questão é que ele sentia curiosidade pelos assuntos relacionados com a economia, a gestão, as empresas...

- Pessoa foi muita coisa... menos socialista.

- Era liberal na economia e nos costumes. Na política seria um conservador. Era contudo um atento leitor das teorias libertárias. Há na sua biblioteca um ou dois livros sobre a experiência da criação do Partido Trabalhista britânico. Não seria um socialista, mas era um homem do seu tempo. Estava atento a tudo e mudava de opinião facilmente.

- Escreveu que a administração do Estado era “o pior de todos os sistemas imagináveis”...

- É a concepção liberal de economia. Embora não defendesse a abolição total do Estado, Fernando Pessoa era adversário de qualquer sistema que o pusesse em primeiro lugar. Defendia que o Estado devia sair da economia.

- Que tipo de Estado conheceu ele?

- Um Estado fraco mas havia já, como ainda hoje, a tentativa de interferência na economia. Fernando Pessoa assistiu a uma espécie de nacionalização dos transportes marítimos. Foi o caos. Tirando a Caixa Geral, na altura as empresas estatais tinham todas algumas dificuldades.

- Qual era o lugar de Pessoa no mundo dos negócios?

- Ele fez um curso de correspondência comercial. Hoje seria um director de exportações ou de marketing. Era um quadro médio, ocupava um lugar relativamente importante nos negócios. Muitos passavam por ele, pois era quem escrevia as cartas, fazia os termos... isso aprendeu na África do Sul. Ele viveu quase sempre no meio dos comerciantes da Baixa de Lisboa.

- Em Pessoa não se confirma a ideia de que os escritores, como Kafka, têm empregos alimentares que normalmente odeiam...

- Ele gostava do que fazia e fazia bem. Não me parece que fosse um escravo do trabalho. O problema de Kafka era sentir que o trabalho lhe tirava tempo à literatura. Kafka chegou a escrever o relatório e contas da empresa.

- Se Pessoa tem ganho a bolsa para Oxford, poderia ter-se tornado economista?

- Penso que a literatura seria sempre o mais importante da vida dele.

- Ainda assim, muitos dos textos compilados em ‘Organizem-se!’ não parecem de um poeta.

- Têm alguma ironia. Lêem-se muito bem. Mesmo os mais pesados. Ali vê-se bem como é que ele articula o seu próprio pensamento. Mas são textos muito bem fundamentados, onde mostra ter conhecimentos do que se passava no seu tempo, tanto na gestão como na economia.

- Temos a ideia de que os homens de negócios são pragmáticos e os poetas desorganizados. Este poeta também era pragmático?

- Onde se nota alguma falta de pragmatismo é nos negócios... Mas nestes textos vê-se que se divertia. Dava-lhe um prazer escrever fosse sobre o que fosse. Deleitou-se a fazer planos de empresas e de negócios. Tinha prazer em escrever – estes textos como quaisquer outros, sobre Astrologia, por exemplo. O estilo é que muda.

- Por que é que os negócios não lhe correram bem?

- Ele não era propriamente um gestor... Falhou em termos de alguma organização que não conseguiu dar aos seus negócios. Não por falta de ideias. Terá sido também por escassez de apoios. Na altura recorria-se ao dinheiro dos amigos e de usurários. Mas o mais importante para ele era a literatura. Não tinha disponibilidade para um negócio, que era absorvente.

- O que se passou com a editora?

- A editora Olissipo teve algum sucesso mas houve problemas por causa de um livro de Raul Leal (‘Sodoma Divinizada’). O livro foi apreendido e foi um descalabro. Deixou de se vender e ele teve de pagar aos fornecedores. Para quem tinha pouco dinheiro isto era um desastre.

- O que vale é que na literatura foi um génio...

- Ele pode ter falhado nos negócios, mas tentou muitas vezes. Tendemos a elogiar só o sucesso quando os erros e os falhanços são tão importantes como o sucesso. Se não tivesse falhado não tinha escrito tanto, nem estes textos.

- Refere-se num deles à falta de energia e ambição dos funcionários públicos, um discurso bastante moderno...

- É uma crítica relacionada com a ineficiência dos Estados. O que ele diz é que o Estado não sabe motivar os seus trabalhadores, não sabe organizá-los. Este é um tema que vem de longe. Noutro texto refere-se à criação de marcas próprias. Hoje cada ministro da Economia que chega ao Governo anuncia apoios para as marcas próprias. Fernando Pessoa era um homem do seu tempo, seguia com atenção o que se passava lá fora – Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha e França. Estava bem informado. Também escreveu sobre Henry Ford. (Aplicou o modelo de produção em massa com base na divisão do trabalho).

- Que apreciava, não é verdade?

- É preciso ver que Fernando Pessoa escreveu a maior parte dos textos económicos a partir de 1919, a seguir ao Sidonismo. Pensou estar diante de um surto de industrialização. Naquela altura surgiram em Portugal as primeiras fábricas de cimento. Pessoa foi um dos primeiros defensores de uma industrialização rápida do País. Não havia muita gente a fazê-lo mesmo porque a agricultura tinha um grande peso – até ideológico. Toda a concepção económica de Pessoa tem por base a industrialização, as exportações, os mercados abertos e a liberalização do comércio.

- Ou seja, a globalização?

- Ele assistiu ao fracasso da chamada primeira globalização, que a I Guerra Mundial veio pôr em causa. Os mercados fecharam-se. O que ele diz é que a globalização podia ser uma oportunidade para Portugal.

- Como é possível que textos escritos entre 1919 e 1927 sejam tão actuais?

- Estamos hoje a recuperar o tempo perdido. Durante 48 anos não houve concorrência, as empresas não precisavam de ser eficientes ou bem organizadas. Mesmo que alguém tivesse dinheiro para investir não tinha autorização para criar uma empresa. Os mercados eram protegidos. Só a partir dos anos 60 começámos a preocupar-nos mais seriamente com a gestão.

- O que o mais surpreendeu neste Pessoa dado à Economia?

- Os textos relacionados com a organização das empresas, assunto que trata com minúcia. Descreve como é que devia funcionar cada departamento.

- São recomendações que um gestor poderia seguir hoje?

- O estudo cuidado dos mercados, a apresentação quanto possível atraente dos produtos e produção quanto possível perfeita dos artigos são conselhos que qualquer um segue. Mas ele vai mais longe – à organização das vendas, à apresentação estética dos produtos.

- A quem se destinavam estes textos?

- Seriam para publicar na revista de comércio e contabilidade – o director era o cunhado dele. Mas, como ao fim de seis números, a revista acabou, alguns nunca foram publicados. Outros devem ter sido escritos na fase de organização das próprias empresas e seriam planos de negócios para um dia. Ele imaginou empresas, negócios, intermediação de negócios, venda de minas... Em determinada fase verificou-se um verdadeiro fervilhar de negócios.

- Não é estranho um poeta considerar que alguns homens nasceram para mandar, outros para obedecer e outros para nada?

- Ele não diz isso em termos sociais. Numa organização há de facto uns que têm uma capacidade de liderança que outros não têm e há quem não tenha capacidade para liderar nem para fazer nada de especial.

- Mas há uma ideia de fatalidade, de determinismo social...

- Não, não... alguém que não tem capacidade para ser líder pode ser um excelente funcionário. O que seria das empresas se todos tivessem a mesma capacidade de liderança? Há aqui uma dose de provocação mas também uma análise que faz sentido. É a realidade. Uns têm capacidade de liderança, outros têm capacidade de execução e há quem não tenha uma coisa nem outra. Há aqui um profundo realismo.

- Deve entender-se como provocação a parte em que diz que a abolição da escravatura não foi necessariamente um bem?

- É uma espécie de raciocínio ‘ad contrarium’. É a provocação quase extrema. Parte de uma posição de extremo para demonstrar o contrário. Não que ele defendesse a escravatura. Também há um texto – estive indeciso entre publicá-lo ou não e acabei por publicá-lo – em que diz que nunca nenhum homem se tornou milionário pelo trabalho árduo e inteligente.

- Por que é que o terá dito?

- Entre as guerras ele viu quem tivesse enriquecido com a especulação. Dirige-se mais a eles do que àqueles com quem trabalhava e que tinham enriquecido com os seus negócios. É o prazer de pôr as coisas no seu limite. De certa maneira, o que ele queria dizer em relação à escravatura é que o Mundo com escravos era mais claro. Uns faziam e outros mandavam. Daí a defender a escravatura... Claro que não. Também, a determinada altura, fez o elogio de Salazar e a seguir, quando percebeu que havia censura, fez o contrário.

- Há relação entre os textos económicos e ‘O Banqueiro Anarquista’?

- ... e também com o ‘Livro do Desassossego’, em que (o heterónimo Bernardo Soares) fala do patrão, o ‘Vasco’, da forma como o ‘Vasco’ enriquece. Deixa-se contaminar pela economia. Lá descreve-se o dia-a-dia de uma empresa. É nas empresas que as pessoas passam a maior parte do tempo, mas raramente isso aparece nos romances.

- ‘Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra...’, escreve Álvaro de Campos. Foi contaminado pela publicidade?

- Pessoa, que tinha trabalhado para a Chevrolet, pôs Álvaro de Campos ao volante de um. É o que se chama “product placement”. Mas ele não recebeu dinheiro... que se saiba.

Filipe Fernandes é licenciado em Comunicação Social pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem uma pós-graduação em Comunicação, Cultura e Tecnologias pelo ISCTE. Iniciou-se no jornalismo em 1985 no jornal ‘Semanário’. Em 1989, integrou a equipa fundadora da revista de negócios ‘Exame’ e, três anos depois, fez parte do grupo que criou a revista ‘Fortuna’, depois ‘Fortunas & Negócio’. Foi editor do ‘Diário Económico’ e do diário ‘Jornal de Negócios’. É, desde Outubro de 2003, director-adjunto da revista ‘Exame’. É autor dos livros ‘Fortunas & Negócios-Empresários do Século XX’, editado pela Oficina do Livro, ‘Ricas Citações... de Fazedores de Dinheiro Portugueses’, e, em co-autoria com Hermínio Santos, ‘Excomungados de Abril’. Fez a coordenação de ‘Memórias de Economista’, coordenou e seleccionou os textos de ‘Estratégia Empresarial’ e foi co-autor, com Adriano Duarte Rodrigues, José Bragança de Miranda e João Pissarra Esteves, de ‘Mudança de Valores e Inovação Tecnológica’. Filipe Fernandes é casado e pai de duas crianças.

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