Maria Papoila nasceu há 100 anos.
A última cena da vida de Mirita Casimiro não tem público, diálogos ou encenador. A empregada entra no quarto da atriz e não lhe encontra sinal de vida. Ainda é levada na ambulância dos Bombeiros de Cascais, que segue a toda a velocidade pela Marginal, tentando chegar a tempo ao Hospital de São José, em Lisboa. O aparelho de reanimação estava a postos, mas o óbito confirma-se quando passavam pelo Aquário Vasco da Gama, em Algés. Dois dias depois, a 27 de março de 1970, Dia Mundial do Teatro, o cortejo fúnebre teve guarda de honra à entrada em Viseu, onde foi sepultada uma das maiores estrelas de sempre dos palcos nacionais. Tinha apenas 55 anos.
Tão trágica quanto a morte prematura, devido à ingestão de uma dose excessiva de comprimidos, presentes nos últimos anos de vida, foi a razão do seu afastamento do Teatro Experimental de Cascais (TEC), onde relançara a carreira, após oito anos no Brasil. Ia a caminho do Porto, em 1968, à boleia do tradutor da peça ‘D. Quixote’, pois uma gravação de teatro radiofónico impedi-la-ia de apanhar o comboio com o resto do elenco. Chovia muito e o veículo despistou-se em Vila Nova de Gaia, embatendo numa árvore, do lado em que estava sentada Maria Zulmira Casimiro de Almeida, nascida há 100 anos, no dia 10 de outubro de 1914.
Mirita teve de ser desencarcerada e ficou com lesões gravíssimas. Tinha o maxilar desfeito e não houve dúvidas de que terminara a vida artística daquela que fora rainha da revista e da opereta, estrela de ‘Maria Papoila’, um dos raros filmes portugueses com protagonista feminina, e que surpreendera todos ao escolher ‘A Casa de Bernarda Alba’, de García Llorca, no regresso aos palcos.
"Ela morreu no caminho para o Porto", diz Carlos Avilez, que a convidou para se juntar ao recém-criado TEC, esclarecendo à ‘Domingo’ o que poderia parecer um erro factual. "Acho que as pessoas nascem quando se estreiam e morrem ao saírem de cena. Uma pessoa do teatro não pode estar fora do palco, pois é um peixe fora de água. A Mirita era uma mulher de palco e não poder representar era-lhe complicado", diz o encenador, que guarda a imagem da atriz, deitada numa maca, nas urgências do Hospital de Santo António, no Porto, a insistir que queria ir fazer o papel de Teresa Pança na peça ‘D. Quixote’. Teria noção do que acontecera? "Tinha, mas queria espetáculo. Isso é uma lição para nós todos", responde Avilez.
PRIMEIRA NOS CARTAZES
Assim foi em 1965, quando o encenador soube que Mirita Casimiro estava na plateia, ao lado do amigo Artur Semedo. Iam ver ‘Vida de Esopo’, primeira peça daquele grupo de "miúdos principiantes, sem dinheiro". Caído o pano, Avilez, que em criança ainda a tinha visto a representar, quis saber por que não voltava aos palcos. Faltavam convites, disse ela, recebendo logo um.
Começou uma rotina diária, recordada à ‘Domingo’ por João Vasco, cofundador do TEC e que contracenou com ela em várias peças: "Bebia um café com leite ou comia uma torrada, subia as ruazinhas, e às duas e meia em ponto estava no teatro para ensaiar." Acostumada a duas sessões noturnas no teatro de revista, primava pelo profissionalismo. Os colegas admiravam os seus caderninhos, que juntavam deixas às notas que ia tirando. "Sabia o papel mais cedo do que nós todos", diz o ator, já reformado.
Para quem se lembrava do início de carreira da viseense – embora tenha nascido em Espinho, onde a família passava temporadas –, vê-la como a matriarca Bernarda Alba terá sido uma surpresa. E a própria ultrapassou receios. "Fui lá atrás, e vi que ela tremia de uma maneira... Mas quando entrou, o teatro inteiro levantou-se, em ovação, e ficou logo comovidíssima", lembra Carlos Avilez.
Também em 1966 estrearia ‘Mar’, de Miguel Torga, e ‘A Maluquinha de Arroios’, de André Brun, comédia de costumes que ficou um ano em cena. "Quando olhou para o cartaz disse que havia engano, porque o nome dela era em cima", diz o encenador, de 77 anos, que conhecia bem a história, contada no meio teatral, do espetáculo em que Mirita se recusou a sair do camarim, para a segunda sessão da noite, enquanto o nome do ator com quem contracenava surgisse primeiro. Brilhou na extravagante personagem do título à peça. "Ela deu-me uma lição extraordinária: a comédia faz-se a sério", diz João Vasco.
Nunca foi deslumbrante, embora tenha sido pioneira nas cirurgias plásticas, pois voltou do Brasil com o nariz "reduzido a metade", como ela dizia. Também não era alta, nem nada que se parecesse, mas o colega de palco realça que, no musical ‘O Comissário de Polícia’, penúltimo trabalho da carreira, "havia uma cena de baile de máscaras, com mulheres lindíssimas, mas chegava aquela figura e a gente já não via mais ninguém".
BOICOTE PÓS-DIVÓRCIO
Quem conheceu a atriz concorda que ela tinha um "je ne sais quoi", mas talvez preferisse ter um "não sei o quê". Pelo menos se levasse a sério ‘Lisboa, Não Sejas Francesa’, que cantava na opereta ‘A Invasão’. Foi em 1945, um ano antes do divórcio que abalou a carreira. Além da vida de casal, que à falta de filhos tinha cães e o hábito de arrastar móveis da sala, numa casa lisboeta, para ensaiar, Vasco Santana e Mirita Casimiro formavam uma dupla de sucesso, em lua de mel com as lotações esgotadas desde o matrimónio, a 14 de agosto de 1941.
Eunice Muñoz tinha 17 anos quando trabalhou com os dois, na peça ‘Chuva de Filhos’, em 1945, e tem boas memórias. "Ela foi sempre uma pessoa muito cativante, mesmo na preparação do teatro. O Vasco Santana era muito inteligente e culto, extremamente bem-educado. Era afável e encantador e gostava de viver de noite. Tive a oportunidade de estar em grandes grupos que se juntavam para o ouvir. Tinha um humor brilhante e tomava conta de qualquer conversa", recorda a atriz, grata "pela grande sorte de estar com grandes atores no crescimento artístico".
Aquando do divórcio, falou-se de traições mútuas, embora também possa ter havido invejas quanto ao sucesso de cada um. Mirita foi o elo mais fraco, pois Vasco Santana terá boicotado a ex-mulher, à qual restou sentar-se num banco de jardim na avenida da Liberdade, virada para a entrada do Parque Mayer.
Décadas mais tarde, os colegas do TEC perceberam que ela "gostaria de esquecer o passado". Até quem tinha confiança com "uma pessoa fechada", tratada com deferência – o contrarregra batia à porta do camarim, antes de cada sessão, inquirindo: "Senhora dona Mirita, podemos começar?" –, evitava mencionar Vasco Santana.
Quando encontrou um empresário disposto a desafiar o ex-marido, Mirita fez algumas revistas, sem o mesmo sucesso. Restou-lhe ir trabalhar para o Brasil, em 1956, com a filha e o segundo marido, João Jacinto, que era jornalista. "Esteve muito mal e muito bem", diz João Vasco, que está a preparar uma exposição comemorativa do centenário, no Espaço Memória do TEC, a partir de 15 de novembro. Longe de Portugal, a atriz encenou peças infantis, fez récitas de poesia e mostrou o teatro do seu país. Vasco Santana morreu em 1958, mas Mirita ficou mais seis anos no Brasil.
DE BOAS FAMÍLIAS
Habituada a interpretar populares e camponesas, nasceu numa família rica de Viseu. Era neta do cavaleiro tauromáquico Manuel Casimiro de Almeida, um ardente monárquico que em 1906 chegou a tourear para o rei Afonso XIII de Espanha. Também o seu pai se dedicou à festa brava, tal como dois dos irmãos. Educada num colégio de freiras, tinha uma voz que tornou inevitáveis convites de empresários.
Aquando da estreia, em 1935, na revista ‘Viva a Folia!’, no Teatro Maria Vitória, em Lisboa, impressionou a veterana Maria Matos ao ponto de esta lhe escrever uma carta. O incentivo deu-lhe força, confirmada pelo sucesso da opereta ‘João Ninguém’, em 1936. Retomaria a personagem ao longo da carreira, mas não lhe faltaram sucessos no teatro popular, assumindo-se como uma grande vedeta de Portugal. Muito depois, no livro ‘Quando os Vascos eram Santanas’, Beatriz Costa traçou-lhe o retrato numa frase lapidar: "Mirita foi a maior de todas nós, embora a menos feliz."
Também Amélia Rey Colaço escreveria, já depois da morte de Mirita, que "bastaria recordar uma única cena na peça ‘D. Quixote’, por ela interpretada, sem esquecer tudo o que estava para trás, para a consagrar como uma atriz de valor excecional".
Para quem nunca a pôde ver ao vivo, resta o filme ‘Maria Papoila’, realizado em 1937 por Leitão de Barros, no qual conquistou os portugueses enquanto camponesa beirã. "Sem saudades na lembrança eu disse adeus, à terrinha e mais ao lar", cantava no comboio para Lisboa, rematando com o verso "tinha que ir para o pé do mar". E assim foi.
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