Dois agentes formam o gabinete de Psicologia. Em três anos, apoiaram 213 familiares de vítimas mortais em acidentes no mar e praias e 40 polícias
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Quando em janeiro uma lancha da Polícia Marítima atingiu inadvertidamente um bote, à noite, provocando a morte de um pescador na ria de Faro, o agente Luís Vaz de Carvalho estava em Lisboa e arrancou de imediato para o Algarve.
"Foi uma situação complexa e duradoura. Fiquei lá até ao dia seguinte ao funeral. Apesar de polícias, estamos ali como técnicos. É difícil, mas tentamos sempre conseguir o melhor", conta Luís Vaz de Carvalho, de 44 anos, feitos a semana passada. O trabalho do psicólogo começa no carro, a caminho da ocorrência. "Já vamos a recolher informações, ao telefone com os colegas da Polícia Marítima (PM) no local. Número de vítimas, localização, quem lá está, parentesco, se são menores. À chegada, identificamo-nos às pessoas e explicamos que estamos ali para prestar os ‘primeiros socorros’ a quem perdeu um familiar, colega ou amigo", conta o agente - que se divide entre o trabalho policial na capitania de Cascais e o de psicólogo no gabinete na PM de Lisboa, e no terreno "onde for necessário".
O apoio aos civis é feito após solicitação do capitão do porto. "Quando há mortes o gabinete é sempre acionado através do comando geral da PM", explica. Objetivo principal e inicial: "a estabilização emocional". "Há muitas pessoas que entram em choque e queremos informá-las do que está a acontecer. Temos de trazer essa pessoa de volta à realidade. Não abandonamos a pessoa até ela se sentir confortável ou segura. Criamos um ambiente de proteção e de assistência", explica. Exemplo disso ocorreu em outubro, quando uma irlandesa perdeu o marido afogado na praia do Guincho, Cascais. Estava sozinha, sem qualquer suporte social de amigos ou família, e Luís Vaz de Carvalho acompanhou-a cinco dias. "Só a deixei no aeroporto, à porta do avião, quando ela regressou à Irlanda", recorda.
Nesse caso o corpo da vítima foi recuperado no dia do afogamento. Mas é, infelizmente, bastante comum que os desaparecimentos na água se prolonguem por dias ou semanas, principalmente no inverno devido ao estado alterado do mar. "As famílias sentem necessidade de acompanhar de perto as buscas. Têm esperança de que possa aparecer o familiar. E o psicólogo tem de lá estar nesses dias, desde que a família queira. É essencial", explica Vaz de Carvalho. A abordagem com as pessoas intervencionadas é sempre honesta. Se a PM sabe que o corpo poderá demorar uma semana a aparecer, é disso que a família é informada. Assim como do andamento das buscas. "Apresentamos a realidade da situação. Nós, psicólogos da PM, sabemos da vida e comportamento do mar através da nossa experiência de polícia - apesar de ali sermos psicólogos e não agentes -, e isso ajuda a apresentar as situações às famílias com maior verdade e conhecimento. Ajudamo-las a ficarem mais seguras, mesmo sem conseguirmos aquilo que elas mais querem, que é a vida", conta.
A revolta - seja pelo acidente em si ou por os familiares poderem considerar que o socorro e meios de busca são insuficientes - é um dos comportamentos que Vaz de Carvalho antecipa como possível à sua chegada. "Nunca aconteceu as pessoas estarem de tal forma revoltadas que tenham recusado o apoio. Mas sabemos que é possível. Temos de saber ler os sinais. Podem dizer que não querem ajuda. Mas querem. Por vezes temos de nos afastar um pouco e voltar quando o ambiente for mais favorável", explica o coordenador do Gabinete de Psicologia da PM, que divide com o colega agente e psicólogo Alfredo Albuquerque.
Casos sucedem-se
Nos últimos meses, Vaz de Carvalho esteve, por exemplo, a dar apoio à mulher de um mergulhador que em novembro morreu no Magoito (Sintra) enquanto pescava. Ou em dezembro na ajuda à família de um pescador que morreu na Comporta (Setúbal), realizando "a estabilização emocional primária" à mãe da vítima, aos filhos e à mulher. Logo no início de janeiro, uma mulher afogou-se na praia do Sul, na Ericeira. A estabilização emocional foi feita a familiares diretos. Como existiam crianças, os cuidados foram específicos. E poucos dias depois um pescador caiu das rochas nas furnas do Guincho. A família esteve dias no local. E Vaz de Carvalho esteve sempre junto deles, a explicar-lhes os passos das buscas. Em fevereiro, o apoio foi à família e colegas de um piloto da barra que morreu ao descer de um navio. No último mês apoiou o marido de uma mulher arrastada por uma onda na Ericeira. E a dezena de turistas austríacos que viram três amigos morrer no Meco. Os casos sucedem-se em todo o País. Já foram apoiadas 213 pessoas civis em 23 ocorrências.
Crianças marcam mais
"Marcam-nos todas as situações. Estamos a lidar com pessoas que perderam os entes queridos. Não dá para sair de uma ocorrência dessas e desligar o botão. Sou humano, tenho sentimentos e emoções. Contudo, tenho de saber lidar com estes momentos emocionais e voltar de imediato a estar pronto para ajudar o próximo", descreve o psicólogo. "Mas a perda de crianças perante os seus pais e as crianças que perdem os seus pais marcam muito. Porque um pai nunca está preparado para perder um filho e uma criança pode não entender a perda dos pais. E isso envolve que o processo seja mais demorado de modo que se consiga fazer a recuperação das suas funcionalidades. "Tentamos sempre estabilizar, minimizando a dor e sofrimento", diz o psicólogo, pai de um menino de 9 anos. A queda de uma avioneta, em agosto do ano passado, na praia de S. João, na Costa da Caparica, matou Sofia António, de 8 anos (em frente aos pais), e José Lima, de 56 (que estava com netos). Ambos no areal a gozar um dia de verão quando a morte chegou do céu, pela brutalidade de uma aeronave em avaria e de um piloto que decidiu aterrar numa praia cheia de gente. "Nesse dia atuámos, até junto de alguns profissionais que ficaram abalados com o cenário", descreve. Já aconteceu, no caso de crianças, os médicos que declaram o óbito sentirem não terem condições psicológicas para notificar as famílias. "Ajudámos esses profissionais e, como também somos autoridade, fazemos nós a comunicação", diz.
Cinco dias em Pedrógão Grande
Em junho do ano passado o Gabinete de Psicologia da PM foi chamado a uma missão inesperada. A morte de 66 pessoas no incêndio de Pedrógão Grande obrigou a uma mobilização sem precedentes. "Foi uma situação distinta derivado à sua grandiosidade. Num curto espaço de tempo perderam-se muitas vidas. Estivemos lá cinco dias, durante toda a primeira fase, ininterruptamente, para apoiar a população fragilizada do local e as pessoas que perderam familiares e os bens. Depois integrámos uma equipa multidisciplinar e fomos às aldeias das pessoas que perderam o pai ou a mãe, ou um filho, ou um irmão, e em alguns casos vários da mesma família. Foi bastante complexo e marcante devido ao impacto emocional", explica Vaz de Carvalho. Pedrógão Grande foi, até agora, o único apoio prestado fora da área de jurisdição da PM.
Dezasseis acompanhados
Mas a função principal do gabinete de psicologia, criado em meados de 2015 por decisão do almirante António Silva Ribeiro (então diretor-geral da Autoridade Marítima e atual Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas),é apoiar o pessoal da PM e da Autoridade Marítima Nacional (AMN). "Temos demonstrado a nossa relevância. Damos resposta a todos os profissionais que nos pedem ajuda. E isso tem sido conseguido em tempo. Ninguém ficou sem o apoio devido", assegura. Atualmente são acompanhados, seguindo uma "psicoterapia de apoio", 16 profissionais: oito da PM, cinco militarizados e três civis da AMN. Em dois anos e meio foram apoiados 40 agentes, graduados e militares da PM. O gabinete tem espaço físico no Comando Local da Polícia Marítima de Lisboa (onde estão um terço de todos os operacionais da PM) e conta com dois núcleos, um em Faro (que Vaz de Carvalho acumula com Lisboa) e outro em Leça da Palmeira. "O apoio aos polícias é por solicitação do mesmo. Normalmente entra em contacto com o gabinete e faz-se a marcação da consulta. Mas também pode ser por iniciativa da chefia. Há problemas diversos. São mais significativos os pessoais: divórcios, custódias de filhos, problemas financeiros... O que não quer dizer que não existam problemas profissionais, que também há. Os pessoais refletem-se no trabalho e os do trabalho em casa. Se o profissional não está bem, tem de receber apoio", assegura.
O gabinete tem uma linha telefónica ativa 24 horas/dia e todos os polícias a conhecem. "Um psicólogo clínico da PM está sempre disponível. Normalmente ao telefone conseguimos estabilizar a pessoa, dependendo da crise, e encaminhamos para uma sessão de consulta. Por vezes nem é necessária a consulta, o aconselhamento alivia. Em outros casos temos de ir de imediato ao encontro do profissional. Já tivemos um caso de um colega completamente descompensado", conta. Vaz de Carvalho assume que este ano há "um ligeiro acréscimo de solicitações", mas conta com psicólogos exteriores que colaboram em valências próprias e assegura ter o "total apoio" do comando geral da PM. "Trabalhamos realisticamente, com os meios que são possíveis à instituição. Temos ambição de crescer, mas este gabinete de psicologia está empenhado em desenvolver o melhor trabalho ao serviço dos polícias e dos civis."
Preparação de missões
O gabinete de psicologia da PM faz ainda a preparação dos polícias que vão em equipa para missões no estrangeiro, de vigilância de fronteiras marítimas no âmbito do Frontex. Na Grécia já resgataram milhares de migrantes que fugiam da guerra em aflição. Viram a morte de bebés no mar. "Começamos a trabalhar logo quando o profissional é nomeado. Há que desenvolver uma preparação mental. A missão implica exigências físicas e psicológicas, expondo os polícias a situações de perigosidade que poderão originar stress constante e elevado. Têm de saber adotar as estratégias mais adequadas para não perderem controlo da situação", explica Vaz de Carvalho. Aplica-se a expressão militar: "Se queres paz, prepara-te para a guerra!". Já no local da missão há uma nova preocupação: a distância da família e do ambiente normal, que é acompanhada com "avaliações preventivas". No regresso a Portugal há uma avaliação psicológica. "E seis meses depois é feita nova avaliação para se verificar se o profissional ficou com alguma sequela da sua experiência num contexto atípico, para que, caso seja necessário, se possa atuar de imediato", assegura o psicólogo.
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