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Bunker instalado em habitação no sul da Califórnia

Venda de bunkers aumenta, mas especialistas avisam: “Não vão proteger as pessoas”

Covid-19, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a eclosão da guerra entre Israel e o Hamas impulsionaram a venda de abrigos e bunkers nos EUA.

Covid-19, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a eclosão da guerra entre Israel e o Hamas impulsionaram a venda de abrigos e bunkers nos EUA.

19 de dezembro de 2024 às 17:31

Quando Bernard Jones Jr. e a mulher, Doris, construíram a casa de sonho, na Califórnia, EUA, não se contiveram. Uma piscina em forma de gruta com uma queda de água para os dias quentes de verão, um cinema em casa para as noites de inverno, um pomar para colher a fruta no outono. E um vasto bunker subterrâneo para o caso de ocorrer uma catástrofe.

“O mundo não está a tornar-se um lugar mais seguro. Queríamos estar preparados”, explica Bernard.

Por baixo de uma escotilha metálica discreta, perto do campo de basquetebol privado, há uma escada escondida que conduz a quartos com camas para cerca de 25 pessoas, casas de banho e duas cozinhas, tudo alimentado por uma fonte de energia autossuficiente.

Com água, eletricidade, ar puro e alimentos sentiam-se preparados para qualquer catástrofe, mesmo uma explosão nuclear, na sua casa bucólica no sul da Califórnia, nos EUA.

“Se houvesse um ataque nuclear, preferia ir para a sala de estar ou para um bunker? Se tivesse um, também iria para lá”, salienta Bernard, que diz ter vendido esta casa, com relutância, há dois anos.

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Mais ameaças, mais bunkers vendidos

Os líderes mundiais na área da segurança alertam para o aumento das ameaças nucleares, uma vez que as despesas com armamento aumentaram para 91,4 mil milhões de dólares (mais de 87 mil milhões de euros) no ano passado. Ao mesmo tempo, a venda de bunkers privados está a aumentar a nível mundial, desde pequenas caixas de metal que apenas permitem rastejar lá dentro até extravagantes mansões subterrâneas.

Os críticos alertam para o facto de estes bunkers criarem uma falsa perceção de que é possível sobreviver a uma guerra nuclear. E destacam ainda que as pessoas que pensam sobreviver a uma explosão atómica não estão a concentrar-se nos perigos reais e atuais colocados pelas ameaças nucleares e na necessidade crítica de impedir a proliferação de armas de destruição maciça.

Já os especialistas governamentais norte-americanos para as catástrofes dizem que os bunkers não são necessários. Um documento de 100 páginas da Agência Federal de Gestão de Emergências (FEMA) dos Estados Unidos da América sobre a resposta a uma detonação nuclear centra-se na necessidade de a população entrar, idealmente, dentro de uma cave e permanecer no seu interior, longe das paredes exteriores, durante pelo menos um dia. Segundo a FEMA, estes espaços já existentes podem proporcionar proteção contra a precipitação radioativa.

Mas, cada vez mais, quem compra bunkers diz que estes oferecem uma sensação de segurança. Nos EUA, prevê-se que o mercado de abrigos anti-bomba e anti-queda cresça de 137 milhões de dólares (cerca de 130 milhões de euros) no ano passado para os 175 milhões de dólares (167 milhões de euros) em 2030 , de acordo com um relatório de pesquisa de mercado da BlueWeave Consulting. O relatório afirma que os principais fatores de crescimento incluem “a ameaça crescente de ataques nucleares ou terroristas ou de agitação social”.

O negócio dos bunkers

“As pessoas estão inquietas e querem um lugar seguro para colocar a família. E têm esta atitude de que é melhor ter [um bunker] e não precisar dele do que precisar dele e não o ter”, explica o diretor executivo da Atlas Survival Shelters, Ron Hubbard, por entre uma chuva de faíscas e o zumbido ruidoso da soldadura na sua fábrica de bunkers, que ele diz ser a maior do mundo, que fica localizada em Sulphur Springs, no Texas.

Hubbard diz que os confinamentos devido à Covid-19, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a eclosão da guerra entre Israel e o Hamas impulsionaram as vendas.

No dia 21 de novembro, nas horas que se seguiram à primeira utilização de um míssil balístico hipersónico experimental por parte da Rússia para atacar a Ucrânia, Hubbard diz que o telefone não parava de tocar.

Das pessoas que ligaram nesse dia, quatro acabaram por comprar bunkers e outras acabaram por encomendar portas e outras peças para abrigos que já estavam a construir.

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Hubbard diz que seus bunkers são construídos a pensar em todo o tipo de desastres. "Servem para tudo, desde um tornado a um furacão, passando por uma precipitação nuclear, uma pandemia e até uma erupção vulcânica”, explica, levantando os braços em direção a um enorme armazém onde estão a ser construídos mais de 50 bunkers diferentes.

Com uma espingarda carregada à distância de um braço e escudos de malha metálica para bloquear cocktails Molotov nas proximidades, Hubbard explica que começou este negócio depois de construir o seu próprio bunker, há cerca de 10 anos. Diz que quem lhe telefona pergunta pelos preços – que vão dos 20 mil dólares (19 mil euros) a vários milhões, sendo que a média custa 500 mil dólares (476 mil euros) - e pergunta pela instalação – que pode ser feita em qualquer sítio. E diz que vende pelo menos um bunker na maior parte dos dias.

Para Hubbard, as tensões globais podem levar a uma Terceira Guerra Mundial, situação que diz estar preparado para enfrentar.

“A boa notícia sobre a guerra nuclear”, diz, “é que se alguma vez existir, é muito fácil sobreviver se não se morrer na explosão inicial”.

E Hubbard não está errado, explicam os peritos em preparação para desastres do governo dos EUA.

“Queremos ir para o nosso edifício mais resistente”

“Esta exposição à precipitação radioativa é totalmente evitável, porque é algo que acontece depois da detonação”, explica Brooke Buddemeier, especialista em segurança de radiações no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, onde o governo dos EUA concebe armas nucleares. Buddemeier e os colegas têm a tarefa de avaliar o que pode acontecer depois de um ataque e qual a melhor forma de sobreviver. “Vai haver um evento de explosão nuclear bastante óbvio, uma grande nuvem. Por isso, o simples facto de entrarmos em algum local, longe do sítio onde essas partículas caem, pode manter-nos, a nós e à nossa família, em segurança”.

Buddemeier e outros membros do governo dos EUA estão a tentar educar os americanos – que há décadas se escondiam debaixo das secretárias durante os simulacros de ataque nuclear – sobre a forma como se deve reagir.

O simples facto de entrarmos em algum local, longe do sítio onde essas partículas caem, pode manter-nos, a nós e à nossa família, em segurança
Brooke Buddemeier

Especialista em segurança de radiações

Depois de uma explosão mortífera e ensurdecedora, de um clarão luminoso e de uma nuvem em forma de cogumelo, serão necessários cerca de 15 minutos para que a precipitação radioactiva chegue às pessoas que se encontram a uma milha (cerca de 1,6 km) ou mais de distância do ponto zero, explica Michael Dillon, cientista do Laboratório Nacional Lawrence Livermore.

“Vai ser, literalmente, areia a cair na nossa cabeça, e vamos querer sair dessa situação. Vamos querer ir para o nosso edifício mais robusto”, explica. Nos seus estudos, os investigadores estimam que as pessoas poderão ter de permanecer no interior durante um ou dois dias antes de serem retiradas.

Falso alerta de míssil no Havai

Os esforços do governo norte-americano para educar a população foram intensificados depois de um falso alerta de míssil no Havai, em 2018, ter causado o pânico generalizado.

O alerta, que foi enviado para telemóveis de todo o estado pouco antes das 8h10 da manhã, dizia: “Ameaça de míssil balístico em direção ao Havai. Procurem abrigo imediato. Isto não é um exercício”.

Durante os 40 minutos que se seguiram, houve engarrafamentos, trabalhadores a entrar e a sair de edifícios, famílias amontoadas em casas de banho, estudantes reunidos em ginásios, condutores a bloquear túneis, tudo numa tentativa de procurar abrigo, sem qualquer ideia clara do que significava realmente “procurar abrigo imediato”.

Atualmente, o governo federal norte-americano tem um guia para preparar os cidadãos para um ataque nuclear, que aconselha as pessoas a procurarem uma cave ou o centro de um grande edifício e a permanecerem aí, possivelmente durante alguns dias, até receberem informações sobre o local para onde devem ir posteriormente.

O documento, que indica que os 15 minutos entre a bomba rebentar e o início da precipitação radiotativa dão ‘tempo suficiente para evitar uma exposição significativa à radiação’, inclui ainda indicações sobre o que fazer com os animais, por exemplo: “Escove suavemente o pelo do seu animal de estimação para remover quaisquer partículas de precipitação radioactiva.”

Jeffrey Schlegelmilch, que dirige o Centro Nacional de Preparação para Desastres da Universidade de Columbia, que é apoiado pela Agência Federal de Gestão de Emergências (FEMA), diz que “os cenários de uma detonação nuclear não são tudo ou nada”.

Se apenas for detonado um pequeno número de armas, em vez de uma guerra total, explica Schlegelmilch, abrigar-se dentro de um grande edifício para evitar a precipitação pode salvar vidas.

Ponto final nas armas nucleares

Os defensores da não-proliferação de armas nucleares criticam os bunkers, os abrigos ou qualquer sugestão de que é possível sobreviver a uma guerra nuclear.

“Os bunkers não são, de facto, uma ferramenta para sobreviver a uma guerra nuclear, mas sim uma ferramenta que permite à população suportar psicologicamente a possibilidade de uma guerra nuclear”, defende Alicia Sanders-Zakre, da Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares.

Sanders-Zakre chama à radiação o “aspeto excecionalmente horrível das armas nucleares” e observa que mesmo sobreviver à precipitação radioactiva não evita crises de saúde duradouras e intergeracionais. “Em última análise, a única solução para proteger as populações da guerra nuclear é eliminar as armas nucleares”, destaca.

O investigador Sam Lair, do Centro James Martin de Estudos sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares, afirma que os líderes norte-americanos deixaram de falar de bunkers há décadas.

“Os custos políticos de fazer com que as pessoas voltem a pensar em abrigos não valem a pena para os líderes, porque isso obriga as pessoas a pensar no que fariam depois de uma guerra nuclear”, destaca. “É algo em que muito, muito poucas pessoas querem pensar. Isto faz com que as pessoas se sintam vulneráveis."

Lair diz ainda que a construção de bunkers parece inútil, mesmo que funcionem a curto prazo.

“Mesmo que possa ser mais fácil de sobreviver a um conflito nuclear do que a maioria das pessoas pensa, acredito que as consequências serão mais nefastas do que muitas pessoas pensam também”, afirma o investigador. “O abalo que isso provocaria no nosso modo de vida seria profundo”, resume.

“Os bunkers subterrâneos não vão proteger as pessoas”

Essa tem sido uma preocupação séria do congressista de Massachusetts James McGovern, há quase 50 anos.

“Se alguma vez chegarmos ao ponto em que haja uma guerra nuclear total, os bunkers subterrâneos não vão proteger as pessoas”, argumenta. “Em vez disso, devíamos estar a investir os nossos recursos e a nossa energia para travar os testes e a produção de armas nucleares, numa primeira fase”.

Depois, “devemos trabalhar para nos livrarmos de todas as armas nucleares”.

É realmente chocante que tenhamos líderes mundiais que falam de forma ligeira sobre a utilização de armas nucleares
James McGovern

Congressista

Ano após ano, James McGovern introduz legislação que promove a não-proliferação de armas nucleares, mas olhando pela janela de seu escritório no Capitólio, confessa sentir-se desapontado com a falta de debate sobre o que será uma despesa de um trilião de dólares para construir e modernizar o arsenal dos EUA.

“O que está em jogo, se uma arma nuclear for utilizada, é que milhões e milhões e milhões de pessoas morrerão. É realmente chocante que tenhamos líderes mundiais que falam de forma ligeira sobre a utilização de armas nucleares. Quero dizer, seria catastrófico, não apenas para aqueles que estão envolvidos num conflito com armas nucleares, mas para o mundo inteiro”, sustenta.

McGovern insurgiu-se, ainda, contra os esforços da Agência Federal de Gestão de Emergências (FEMA) para preparar a população para um ataque nuclear, aconselhando as pessoas a abrigarem-se.

“Isto dá uma sensação de segurança”

“Que coisa tão estúpida dizer que só precisamos de saber onde nos esconder e onde evitar os maiores impactos da radiação nuclear. É realmente arrepiante quando se ouve as pessoas tentarem racionalizar a guerra nuclear dessa forma”, atira.

A guerra nuclear estava longe da mente de um casal que foi à procura de casa no sul da Califórnia, há alguns anos. Queriam uma casa para se estabelecerem e criar família e precisavam de espaço extra na garagem. Viram um anúncio online de uma casa com pelo menos oito lugares de estacionamento. No campo de basquetebol, havia um alçapão de metal. Por baixo, um bunker.

Esta era a antiga casa de Bernard Jones Jr. e Doris, colocada à venda por razões familiares.

O marido, que falou sob anonimato devido a preocupações com a privacidade da família, comprou a casa dos Jones, com o bunker e tudo. Não estão particularmente preocupados com uma guerra nuclear e nunca passaram uma noite no bunker, mas armazenam alimentos e material médico no local.

“Dissemos a alguns dos nossos amigos que, se alguma coisa correr mal, que venham para aqui o mais depressa possível”, revelou. “Isto dá uma sensação de segurança.”

Texto Associated Press | Fotografias Associated Press | Edição Catarina Cruz

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