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Victor Bandarra

Victor Bandarra

Jornalista

Uma insustentável liberdade

30 de abril de 2017 às 00:30

Duas gotinhas na boquita aberta do bebé. Os renitentes tinham direito a torrãozinho de açúcar. Na aldeia angolana junto ao Congo iniciava-se uma campanha de vacinação contra a poliomielite, altamente contagiosa, que muitos portugueses conhecem como paralisia infantil. Foi nos anos 80. Milhões de crianças africanas morriam ou ficavam marcadas para sempre. As duas gotinhas salvaram milhões de vidas - menos nalgumas aldeias onde o feiticeiro, por medo e sede de poder, fez frente ao ‘feitiço’ do enfermeiro de bata branca.

Jeremias, pai de 12 filhos, fintou a obrigatoriedade de levar os filhos à tomada das gotas. "Coisas de branco..." As mezinhas do curandeiro sempre lhe haviam curado as maleitas da pele e do estômago! Mas não evitaram que a malária lhe tivesse levado vários dos rebentos. "Vontade dos deuses e do destino..." O recente anúncio de uma vacina contra a malária (sem eficiência a 100 %, como nenhuma vacina tem) apenas remedeia a maior vergonha da medicina e da farmacêutica dos países ricos, que nunca apostaram a sério no combate à doença dos pobres (negros, asiáticos ou sul-americanos), e que continua a matar mais do que o sarampo e todos os tipos de cancro juntos. Quanto à poliomielite, Jeremias resistiu às gotas, ainda que a doença lhe tivesse deixado um filho a coxear. Ainda acontece em África, onde uma em cada 5 crianças não têm acesso às vacinas que salvam. Ou seja, milhões de seres humanos ainda não conseguiram exercer o direito à vacinação.

Face aos recentes casos de sarampo em Portugal e na Europa, eis a questão: têm os cidadãos o direito a recusar a vacinação, sua e/ou dos seus filhos? Recentemente, uma mãe norte-americana seguidora da ‘cultura vegan’ foi obrigada por um tribunal a vacinar os filhos contra a difteria, poliomielite, sarampo, papeira e rubéola. Argumentou que as vacinas não são ‘vegan’ (conceito/filosofia contra a ingerência de tudo o que contém ou cresce em células animais) e que os seus filhos têm "fortes sistemas imunitários". O juiz não foi na conversa. Pode argumentar-se com factos: o sarampo, altamente contagioso, matou 146 mil pessoas em 2013. É legítimo aceitar como sintoma de liberdade a decisão de não vacinar os filhos?

Victor Hugo dizia que "a liberdade começa onde acaba a ignorância!" A esquecida Declaração dos Direitos do Homem diz que "a liberdade consiste em fazer tudo o que não prejudica os outros!" Em certas regiões da América do Sul, acredita-se que um forte cheiro a galinha afasta a mosquita que transmite a malária. É pouco provável! Altamente provável é que a mãe ‘vegan’ americana não acredite em feiticeiros africanos, e que Jeremias ria à gargalhada se lhe disserem que a carne de galinha faz mal às pessoas.  

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