Com um longo crucifixo ao peito – entre a razão e o coração –, corpo esguio, pouco curvado à dor, e sempre o mesmo olhar, dom Francisco da Mata Mourisca viu os portugueses retornar, fugidos do terrorismo em Angola: 1976 e 77 deixaram-no sozinho.
Melhor, deixaram o bispo da província do Uíje, no Norte, à mercê de si próprio e dos fiéis (a Deus) angolanos. “Eu senti-me tão à vontade – e sinto –, no meio daquela gente, como na minha aldeia.” Um lugarejo perto de Pombal, onde nasceu há 78 anos. “E digo mais: aquelas pessoas não são racistas. Quando visito lá as aldeias, costumo dizer que sou a única mancha branca que lá está. E a guerra das crianças para me beijarem a mão! Tudo à minha volta para me beijar a mão!”
Há precisamente 40 anos, foi nomeado bispo daquela região angolana por Paulo VI – “que merece ser chamado o Papa do Terceiro Mundo”, enfatiza o português, reafirmando que o Santo Padre proclamava que “desenvolvimento é o novo nome de paz”. Mata Mourisca deixa agora a sucessão na diocese para o bispo coadjutor, dom Emílio Sumbelelo, natural de Benguela.
Ainda em convalescença das mazelas de um acidente de viação em Luanda, o bispo Mata Mourisca passou as últimas duas semanas instalado na fraternidade da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, em Lisboa. Sempre teve um quarto reservado, cortado pelo meio por um escritório. Não tem aqui computador, antes uma velha máquina de escrever. No topo da estante de livros, um retrato seu de há quase tantos anos quantos os que partiu para aquela Angola colonizada pelos compatriotas. “Hoje, um país que regrediu muitos anos, mas onde já se vive com muita esperança. Está-se a fazer um esforço muito grande para recuperar a escolaridade e a saúde.”
Acontece que nada parece imediato num país totalmente devastado pela guerra. “Angola é de facto muito rica. Ultimamente tem tido um PIB admirável, com base num crescimento muito grande. Porém, a aplicação dessa riqueza ainda não se vê.
“Certamente estão a fazer alguma coisa – estradas, escolas, empreendimentos –, mas todos queremos ver um bocadinho mais de celeridade nesse trabalho”, observa o bispo.
Apesar de todo esse investimento ser a pedra de toque para a melhoria das condições sociais dos angolanos, a economia sofre ainda o revés dos lóbis na alta esfera decisora (e política). “Segundo me dizem, a corrupção é uma instituição internacional. E Angola não está isenta dessa instituição. Sei de uns senhores que foram lá estudar a hipótese de investimentos e um deles disse-me: ‘Olhe que há muito onde investir, mas há que dar ‘mata-bicho’ em vários escalões e depois o saldo positivo fica muito pequeno.’”
A ENTRADA NO SEMINÁRIO
José Moreira dos Santos tinha 11 anos quando o pai morreu. Sem governo ficavam os negócios de madeiras e resinas daquela família abastada. Nascido na freguesia de Mata Mourisca, em Pombal, parte pouco depois para o seminário. A mensagem do pregador sagrado Jerónimo de Souto contagiou-o, a ele e a outros miúdos da sua escola. Quando tomou o hábito, em 1944, passou a ser chamado Francisco (o nome do pai) da Mata Mourisca (a sua freguesia). Entretanto, dos seis irmãos, os dois homens partem para o Brasil e o bispo, em 1967, para Angola. Já as três irmãs casam-se e permanecem na aldeia. Mas Mata Mourisca já não parece conseguir ser o José da sua aldeia. “Ainda pensei voltar definitivamente, mas inclino-me a ficar no Uíje. É difícil desprender-me. Tenho lá uma congregação, Mensageiro de Cristo, que não quero abandonar.”
Os esforços foram sempre grandes. “Uma guerra civil são dois exércitos a destruir o próprio país (até três, como foi o caso de Angola até uma dada altura)”, recorda o bispo. Pelo meio, a Igreja sentia-se a definhar “nos 15 anos do marxismo”. A Igreja sobrevivia de ajudas externas – principalmente da Europa e de instituições como a Caritas, da qual o próprio bispo chegou a ser presidente em Angola. “Com o acabar da guerra compreende-se que as pessoas sintam menos motivação para ajudar Angola. Sabem que Angola é rica – dizem-no claramente – e então sentem menos motivação para ajudar. Mas eu costumo dizer, é verdade, “Angola é um país rico de gente pobre”. Ainda não acabou o tempo de precisarmos de ajuda do exterior.”
É por isso que Mata Mourisca tem muita fé, uma esperança enorme de que a Cimeira África-Europa – uma das grandes bandeiras de José Sócrates durante a Presidência da União Europeia – seja a luta pela consolidação da paz em Angola e pela implantação da democracia no continente africano. “Gostaria que levassem África primeiramente a viver a paz em todos os países. Porque a grande tragédia de África são as guerras civis. Em vez de investir em armas, investir em tractores, enxadas, catanas e instrumentos da lavra. Deus queira que tenham coragem para mudar a linha de investimento.”
Apelos que o bispo nunca se cansou de fazer, “promovendo o diálogo entre MPLA e UNITA, nas homílias, em estudos e em outras atitudes, como os congressos nacionais, intitulados ‘Pro Pace’, em 2000, para apelar ao diálogo e ao fim da guerra. Outro há dois anos, intitulado ‘Construtores de Democracia’, em que participou o nosso actual Presidente da República, Cavaco Silva”. Aliás é fazendo fé na “amizade” entre o presidente angolano, José Eduardo dos Santos, e o homólogo português que Mata Mourisca arrisca dizer que se fizeram os maiores esforços para unir os dois países.
OS ANOS 60 E 70
Recuando no tempo, na década de 60, dom Francisco da Mata Mourisca viaja para Angola para inaugurar a Igreja de Nossa Senhora de Fátima dos Capuchinhos. Ficou maravilhado com o progresso de Luanda. Não hesitou quando foi nomeado bispo de Carmona (hoje Uíje) e de São Salvador do Congo. Encontrou um país de mentalidade aberta. “Os portugueses tinham uma visão mais aberta do Mundo, dos problemas.” O choque dá-se no final dos anos 70. “Guerra é guerra. Houve realmente ameaças e praticamente um temor colectivo entre os portugueses. Poucos tiveram a coragem de ficar. Penso que foi mau para eles, mas em Portugal refizeram as suas vidas. Já os angolanos contaram-me que desceram na qualidade de vida.” A economia perdeu-se. As casas, estradas, pontes, infra-estruturas foram destruídas.
A guerra estendeu-se a todo o país, mas com focos realmente arrasadores no Norte e no Sul do país. “Depois de a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) perder a Jamba, foi ocupar as bases da FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) no Norte – quando a FNLA deixou a guerra, praticamente todos os seus membros passaram para o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e para a UNITA. Nos últimos anos da guerra, o Norte foi flagelado pela guerra de uma forma especial.”
CONTRIBUTO PARA O FIM DA GUERRA CIVIL
Nas homílias, D. Francisco Mata Mourisca introduzia o tema da concórdia entre o MPLA e a UNITA. Com o mesmo empenho, esteve envolvido em congressos nacionais que tentavam colaborar para o fim da guerra civil.
José Moreira dos Santos nasceu a 18 de Outubro de 1928, na freguesia de Mata Mourisca, Pombal. Filho de um abastado comerciante de madeiras e resinas (entre outros negócios) e de uma doméstica, passa uma infância muito ligada aos dois irmãos – que mais tarde emigram para o Brasil – e às três irmãs, todas casadas e filhas da aldeia até hoje.
Aos 11 anos, o pai morre e a família não tem condições para se impor na força dos negócios. Dois anos mais tarde, por influência do pregador sagrado – que foi à sua escola –, Jerónimo de Souto, decide entrar no seminário preparatório do Porto. Ordenado sacerdote, foi professor no seminário de Vila Nova de Poiares. Depois, passou para o Porto, para o seminário de Filosofia. Mais tarde, viaja para Salamanca, Espanha, para estudar Teologia Dogmática.
Tomou o hábito em 1944, emitiu a profissão simples em 1945 e a profissão perpétua em 1949. Recebeu a ordem sacerdotal três anos mais tarde. Foi o segundo comissário provincial entre 1961 e 1967. Altura em que o Papa Paulo VI o nomeou bispo de Carmona (a província do Uíje) e de São Salvador do Congo, ambas em Angola.
Chegou a ser presidente da Caritas de Angola, entre outros cargos de renome, e fundou a congregação Mensageiro de Cristo. Pertence à Ordem dos Frades Menores Capuchinhos.
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