Quase dois anos depois das mortes no Meco, continuam as praxes perigosas.
A abertura de um novo ano escolar é um novo começo para milhares de alunos, principalmente para aqueles que deixam o ensino secundário e têm o privilégio de entrar no ensino universitário. Mas na abertura de um novo ano escolar, há algo que continua igual, imutável: as praxes universitárias. Parece que não aprendemos nada com o passado. Os alunos mais velhos teimam em manter atividades que, mais do que humilhar os mais novos, colocam vidas em causa.
A 15 de dezembro de 2013, os portugueses foram surpreendidos com a notícia da morte de seis estudantes da Universidade Lusófona, na Praia do Meco. Naquele fim de semana, a elite da praxe daquela faculdade reuniu-se para decidir como é que aquelas almas iluminadas iriam praxar os futuros caloiros.
Tal tarefa, devido à sua enorme complexidade, era merecedora de uma reunião secreta e os elementos do COPA, essa organização sinistra que administra em nome próprio a praxe universitária, tinham de se encontrar num fim de semana. O Deus do movimento praxista, esse ser magnânimo, identificado como ‘Dux’, iria praxar os seus lugares tenentes, ou seja, os responsáveis da praxe de cada um dos cursos da Lusófona, para que os laços de solidariedade académica fossem reforçados e a total obediência ao ‘Dux’ fosse demonstrada.
Servia ainda o encontro para que aquele diretório definisse as atividades futuras a que iriam submeter os caloiros. As coisas, como todos sabemos, correram pessimamente. Num ‘passeio’ noturno à Praia do Meco, todos os jovens presentes, à exceção do ‘Dux’, perderam a vida, afogados, às mãos de uma onda traiçoeira.
Muitas foram as críticas à praxe e à forma como se perderam aquelas seis vidas. Os pais daqueles seis jovens iniciaram uma autêntica cruzada, querendo ver o ‘Dux’ responsabilizado na Justiça. O problema dos pais é identificar o crime cometido por João Gouveia, o homem por detrás do ‘Dux’, e, pior, provar que existiu um crime e comprovar a responsabilidade do sobrevivente como autor do mesmo. Uma tarefa muito difícil.
Pessoalmente, como várias vezes escrevi, acredito que é impossível imputar o cometimento de um qualquer crime a João Gouveia. Posso não concordar com nada do que ele fez naquela noite, posso até não acreditar na sua versão dos factos, mas isso não quer dizer que ache que seja possível provar que naquela noite ocorreu um crime e que o responsável foi o ‘Dux’. As decisões tomadas pela Justiça eram previsíveis e consentâneas com a realidade dos factos apurados.
É duro, mas é assim. Mas sempre pensei que, apesar do destino mais provável do processo ser o arquivamento, as mortes daqueles seis jovens não fossem em vão e que se tirassem ensinamentos para o futuro.
NADA SE APRENDEU
Infelizmente, enganei-me. Basta passar no Jardim do Campo Grande, defronte às instalações da Lusófona, ou junto a qualquer outra universidade portuguesa, para assistir às humilhações a que os caloiros são submetidos. Ali se veem alunos devidamente paramentados, com enormes colheres de pau (símbolo da autoridade máxima da praxe) nas mãos, acompanhados de outros que ostentam estandartes, a vergarem os inocentes que chegam à faculdade. Estes arautos da sapiência universitária sentam-se depois nos bancos de jardim e dão aulas de saber de experiência feita aos novos estudantes.
Mas a prova de que nada mudou aconteceu há poucos dias, numa praxe na Praia de Faro que acabou mal para uma aluna de Biologia da Universidade do Algarve. A jovem de 19 anos teve de ser transportada para o Hospital de Faro em coma alcoólico. Segundo o testemunho de um membro da Comissão de Praxe – que num sinal de enorme coragem preferiu manter o anonimato – o incidente aconteceu durante o ritual de batismo do caloiro, ritual esse que marca o fim das praxes e, no qual, as chamadas ‘bestas’ passam a ‘caloiros’.
Este ritual é considerado perfeitamente normal, mas desta vez correu mal. Segundo este líder praxista, neste ritual as ‘bestas’ enterram-se a si próprias na areia, ficando a aguardar a sua vez de serem batizados pelos padrinhos. Enquanto estão enterrados, várias bebidas alcoólicas são lhes enfiadas "pela goela abaixo". Quando a praxe termina, as ‘bestas’ já transformadas em ‘caloiros’ desenterram-se, vão à água, molham-se, terminando aí o ritual. No caso desta jovem deram-lhe uma tal quantidade de álcool que entrou em coma alcoólico, sendo necessário chamar uma ambulância. Porém, antes, levaram-na à linha de água para o ritual ficar completo. Acontece que a jovem aluna não se recorda de coisa alguma, muito menos de ter ido à água. Uma primeira constatação é que se esta praxe tivesse ocorrido na Praia do Meco, o resultado certamente teria sido mais dramático, pelas caraterísticas do mar.
Registe-se uma mudança para já; neste caso a Universidade do Algarve, o Ministério da Educação e o Ministério Público, contrariamente ao que aconteceu no Meco, foram céleres a abrir os respetivos inquéritos no sentido de apurar responsabilidades. Pelo menos nesta matéria aprendemos alguma coisa. Mas tendo em conta o processo da Praia do Meco e as suas conclusões, será possível apurar responsabilidades criminais?
Neste momento, é impossível responder com certeza a esta pergunta, já que a investigação se iniciou há pouco tempo e não dispõe ainda de resultados definitivos. Contudo em teoria, acredito mais na possibilidade de existir um apuramento de responsabilidades individuais neste caso do que no do Meco. Mas sendo a lei igual, porquê esta minha posição? Vejamos.
No caso Meco não existem testemunhas, a não ser o principal suspeito, o ‘Dux’. A sua versão é a única e, como todos sabemos, é impossível de ser desmontada ou contrariada. Neste momento temos pelo menos duas versões: a de João Gouveia, de que tudo o que aconteceu foi um terrível acidente, e a dos pais dos jovens que perderam a vida, que acusam o ‘Dux’ de homicídio por negligência. Mas a versão dos pais dos jovens, por mais que acreditemos nela, é impossível de ser demonstrada em tribunal. Eles acham que foi assim porque sim, por pura convicção. Mas faltam provas.
Pelo contrário, relativamente ao que se passou na Praia de Faro, existem várias testemunhas. Assim, para além de alguns elementos da Comissão de Praxe estarem identificados, também a vítima está viva. Todos os jovens que estavam a ser submetidos à mesma praxe estão identificados. E existem terceiras pessoas, banhistas que assistiram a tudo na praia e que estão identificados.
Existe assim um manancial de informação muito superior ao que existia no caso do Meco. Nenhum dos elementos da Comissão de Praxe pode arranjar uma teoria que não corresponda ao que se passou. Outra diferença diz respeito aos intervenientes. No Meco, um era o ‘Dux’, mas os outros eram finalistas ou tinham já terminado os seus cursos. Conheciam a praxe a fundo. Dificilmente se poderá sustentar que existia uma dependência hierárquica formal destes elementos relativamente ao ‘Dux’.
No Algarve, a situação é completamente diferente. O grupo de alunos que estava a ser praxado tinha acabado de entrar na universidade. Não tinha o mínimo conhecimento da vida universitária. No site na Associação Académica do Algarve está o regulamento da praxe, em que se afirma que quem não se deixar submeter àqueles rituais será severamente punido, nomeadamente, será banido dos convívios universitários e impedido de vestir o traje académico. Assim, a dependência hierárquica destes jovens estudantes relativamente aos membros da Comissão de Praxe é bem mais relevante e efetiva. Acredito muito mais na possibilidade de existir um apuramento de responsabilidades em Faro do que no Meco.
Mas a tristeza é que nada mudou e a probabilidade de no futuro ocorrerem outras mortes em praxes é forte, muito forte mesmo.
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