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"Faço trading pela mesma razão que o Messi joga futebol"

Gary Stevenson foi um muito bem sucedido funcionário do Citibank de 21 anos. Aproveitou a crise de 2008 para fazer muito dinheiro a vender e a comprar divisas. Hoje em dia prega no YouTube contra a desigualdade.

20 de julho de 2025 às 01:30

Filho de um empregado dos Correios, distribuiu jornais, foi rapper de grime – um estilo de música eletrónica que apareceu em Londres no início deste século - e trabalhou numa loja de sofás. O talento para a matemática permitiu-lhe ganhar o Trading Game, e um estágio no Citibank — um dos maiores bancos do mundo, no centro de Canary Wharf, na City de Londres. Tinha apenas 20 anos quando lá estagiou, em 2006. A partir de 2008, o ano da derrocada do Lehman Brothers, antecâmara da crise financeira mundial, Gary Stevenson ganhou milhões para o Citibank e para ele próprio (em bónus) como trader, a comprar e vender divisas. Defendia que a economia e o consumo não iriam recuperar por mais baixas que fossem as taxas de juro porque o dinheiro e ativos das classes mais baixas estavam a ir para os ricos. Hoje tem um canal de YouTube (@garyseconomics) e aos 38 anos, desempregado desde 2014, promove a sua biografia ‘O Jogo dos Milhões’. Partes do livro parecem um cruzamento entre os universos de Patrick Bateman e Gordon Gekko, mas em Canary Wharf, na City de Londres. A parte do sangue é metafórica e relativa à crise financeira de 2008, que ajudou o trabalho deste antigo funcionário do Citibank. Em Portugal até já foi entrevistado por Mariana Mortágua.

Qual é a sua memória mais antiga sobre dinheiro?

Quando era muito pequeno darem-me uma moeda para ir ao posto de abastecimento de combustível comprar uma limonada para a família e a acerta altura, não sei como, perdi a moeda. Procurei o dinheiro debaixo dos carros, nas bocas dos esgotos, em todo o lado, absolutamente angustiado. Fartei-me de chorar. Acho que desde muito cedo estive consciente de que a minha família era pobre. A questão do dinheiro fez-me ter pequenas ocupações desde pequeno.

Portanto aos 21 anos, a ideia era fazer dinheiro…

Muito antes dos 21. Na verdade era uma espécie de obsessão.

Porque é que decidiu escrever este livro?

Estou muito preocupado com a economia, pois acho que as coisas vão ficar piores. Tenho pensado muito sobre como posso contribuir para melhorar esta situação. Primeiro trabalhei como voluntário entre 2014 e 2015 em Londres, depois criei um site e regressei à universidade em 2017-2019. Logo depois comecei a escrever nos jornais e criei um canal de YouTube. Mas ainda não tinha usado muito da minha história pessoal…

Porquê?...

Não queria que pensassem: ‘Ah, o ricaço do Gary!...’ Hoje em dia já não se coloca… Todos sabem. Atenção: estou orgulhoso do que consegui. Um dia recebi uma chamada da pessoa que agora é o meu agente, a dizer-me que devia escrever um livro. Uma coisa de não ficção sobre economia. E eu disse-lhe: ‘Isso é aborrecido’.  Ainda em 2022, um editor ligou-me com o mesmo assunto, e acabei por enviar os primeiros carateres escritos. Fizeram contrato comigo imediatamente. E de repente pensei – 'se a Penguin Books [editora inglesa fundada em 1935] dá tanto dinheiro por isto, é porque é bom. Era também uma oportunidade de robustecer o canal de YouTube.

Não deixa de ser irónico que na fase de ativista anti-desigualdade, acabe por ganhar dinheiro com um bestseller sobre sua vida no Citibank…

A verdade é nada funciona se não ganharmos dinheiro. No caso, se o livro não funcionasse comercialmente também não funcionava politicamente.

Qual é o seu propósito?

Para mim é, apenas, parte de um projeto político maior.

Qual projeto político?

Ajudar a parar com a desigualdade, a pobreza, o empobrecimento da classe média. No caso do livro nunca quis que fosse explicitamente político, mas mais como uma novela da minha vida. Eu não era uma pessoa com consciência política quando era mais novo. Mas percebi que a determinada altura também contribui para o colapso da sociedade. E isso politizou-me. Portanto, percebi que o melhor era mostrar o que fiz e não pregar ideias.

Votou em Keir Starmer [atual primeiro-ministro eleito pelo Labour]?

No último ano votei nos Verdes. Não tenho um partido político. Antes tinha votado nos democratas liberais, depois comecei a votar no Labour porque me parecia um partido com melhores propostas no combate à desigualdade. Pertenço a vários grupos de pressão que querem influenciar o governo a fazer alguma coisa – mas não temos sido muito bem-sucedidos.

Como era um dia típico de trabalho no Citibank?

Há 15 anos acordava entre as 5 e as 5h30, ia ver os emails, para ver se tinha escapado alguma coisa, tomava o pequeno-almoço e um duche rápido, e ia de bicicleta para o escritório. Chegava punha os fones, abria os sistemas e começava a trabalhar com grandes volumes de dinheiro, numa sala enorme, com muita gente, parte dela aos gritos. Na altura estava nos pícaros e achava que era o maior.

O que quer dizer com ‘achava que era o maior’?

Fazia montes de dinheiro. O meu PnL (Profit and Loss ou seja, Lucro e Perda) era bestial. Estive no top trade desse ano. Era muito popular.

Quanto dinheiro ganhou?

No 2011 mais de dois milhões de dólares, mas foi o meu melhor ano. Cheguei a fazer dinheiro à conta do terramoto no Japão, por exemplo. No íntimo sabia que alguma coisa não estava bem.

Num mundo de desigualdades (como já referiu) e onde os regimes autoritários crescem, como vê o futuro?

Infelizmente, a pobreza vai continuar a crescer, a instabilidade financeira igualmente. Os muito ricos continuarão a ser muito ricos, cada vez mais. O preço dos bens de consumo e das casas continuará a crescer e os políticos serão cada vez mais populistas e sectários porque percebem que as pessoas estarão cada vez mais zangadas porque os seus padrões de vida estão em queda. Acho que é já claro que a extrema-direita ou a nova direita, como lhe queiram chamar, conseguiu apresentar-se como o motor da mudança. De um modo geral, na Europa ocidental temos a tradição da alternância entre os partidos do centro – esses partidos estiveram no poder durante os últimos 30 ou 40 anos e falharam. As pessoas querem algo novo e para muitos essa novidade está na extrema-direita, que estão a começar a ganhar eleições – dos EUA à Itália, Hungria e Polónia. Acho que vão ganhar as próximas eleições no Reino Unido, e que será apenas uma questão de tempo para chegarem ao poder também na Alemanha. Temos de ver o que eles vão fazer, nomeadamente em relação à desigualdade. A maioria destes partidos são apoiados por milionários, que quererão cortar nos impostos e é por isso, que eu acho que as coisas vão ficar piores. Neste momento, a extrema-direita é uma coisa nova, mas em breve vão estar no poder – não acho que tenham sucesso. O que teremos é uma alternância entre a extrema-direita e a direita, com risco de no final resvalarmos para o fascismo e pior, para outra guerra. É difícil não nos lembrarmos dos anos 1920, 1930. Temos de arranjar novas ideias. Temos de combater a desigualdade. Temos de taxar menos os trabalhadores. Estou a tentar ser parte desta nova voz.

Como é que vê pessoas como Javier Millei [presidente da Argentina]?

Não acho que se seja bem-sucedido, embora saiba que a economia argentina estava em muito mau estado. Não tenho opiniões formadas sobre se deve haver mais ou menos estado. Estou simplesmente focado na redistribuição e muito cético em relação à possibilidade da melhoria generalizada dos padrões de vida das pessoas. Os muito ricos continuarão a tirar mais e mais.

Qual foi a coisa mais estúpida que fez Donald Trump no exercício das suas funções?

[Huuuum…] O que se passa é que acho que Trump quer é poder e riqueza para ele próprio e nisso tem sido muito bem sucedido, desde o esquema com as criptomoedas à forma como consegue safar-se das acusações judiciais. De maneira que, de acordo com os padrões do próprio Trump, não acho que ele seja estúpido ou tenha feito alguma coisa de estúpido porque as coisas estão a dar certo para ele.

É uma pessoa rica?

Não tão rica como Trump. Mas sim.

Como é que ganha dinheiro hoje em dia?

Na realidade, ainda faço trading, mas não é o meu trabalho. Aplico o meu dinheiro. Eu faço tranding pela mesma razão que o Messi joga futebol – é aquilo em que ele é bom. O que faço de diferente é educar o público para a economia através dos meus vídeos no YouTube. É preciso uma mudança.

BI

Economista nascido em 1986 e formado na London School of Economics e com mestrado em Oxdord, foi trader do Citibank. Atualmente é conhecido por ser Youtuber e fazer crítica à desigualdade social e ao sistema financeiro global. O livro 'Jogo de Milhões' foi editado em Portugal pela 'Lua de Papel'. 

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