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Miguel Araújo: "Cada um tem de fazer aquilo que a vida pede"

Depois da parceria com António Zambujo, Miguel Araújo está de regresso aos coliseus mas com convidados.

15 de outubro de 2017 às 12:15
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Miguel Araújo encanta no Coliseu

De miúdo tímido passou a um dos mais conhecidos autores e intérpretes da música portuguesa. Só no ano passado, mano a mano com António Zambujo, encheu 28 vezes o Coliseu dos Recreios, um "feito improvável e inexplicável" até para o próprio   Miguel   Araújo.   ‘Giesta’   é   o seu   terceiro   disco   a   solo,   gravado em casa entre a correria para muitos espetáculos.

Um disco que cheira à morada   dos   avós   e   brinca   com   as memórias de infância. Traz à baila a banda dos tios, o embaraço da primeira escrita, a orfandade dos ídolos   de   adolescência   -   de   Axl   Rose aos Nirvana -, tudo o que inspirou e fez de Miguel Araújo o músico que hoje é. É isso que vai levar na mala para os concertos que se avizinham nos coliseus - Porto a 3 e 4 de novembro e Lisboa a 11 do mesmo mês - mas vai sobretudo levar os amigos para com ele partilharem o palco e o sucesso   presente:   Rui   Veloso, Kappas, André Tentúgal, Catarina Salinas,   Os   Azeitonas,   Ana   Bacalhau, João Só e Ana Moura.

O que podemos esperar destes concertos dos coliseus?

Vão passar sobretudo pelo repertório do novo disco, ‘Giesta’, que ainda tem pouco tempo, mas vão ser diferentes, sobretudo pelas parcerias com os convidados que vou ter em palco e pelas músicas que vamos tocar juntos. São músicas que habitualmente   não   fazem   parte   dos meus espetáculos porque não tenho os intérpretes ali comigo. Foi essa a razão   de   os   juntar. Vou tocar, por exemplo,   ‘Ciúme’, que escrevi para o disco a solo da Ana Bacalhau, e outros temas que partilho com os outros   convidados.   Também   vou tocar   um   inédito   que   escrevi   há pouco tempo.

E este novo disco, ‘Giesta’, de que nos fala?

É um disco muito pessoal que fala muito da minha infância. É conceptual. Ou melhor, o conceito passa pela casa da minha avó, que foi o sítio onde cresci. A casa dos meus pais era em frente – nós morávamos todos   na   mesma   rua   –   mas   quando eles iam para o trabalho, eu ia para a casa da minha avó. Era uma casa muito cheia, um universo riquíssimo de onde vieram as minhas primeiras memórias de infância e todas aquelas impressões que nos ficam para a vida.

É um disco muito pessoal, certamente...

Sim. Por outro lado, foi um disco que foi gravado em casa porque eu tinha uma   agenda   de   concertos   tão preenchida que não tinha qualquer hipótese de ir para estúdio. Então, montei um estúdio em casa e ia gravando. Acordava, tomava o pequeno-almoço, levava os meus filhos à escola e depois ficava por ali a trabalhar no disco. Acabou por ser um processo   muito   agradável   e   acho que isso reflete-se no disco, embora não   soe   a   um   disco   artesanal.   Ou seja: não é um disco de baixa fidelidade ou tecnologia, porque o equipamento foi idêntico ao de estúdio. Não é uma coisa rasca. O conceito é que é mais familiar.

E tem andado a ensaiar afincadamente para estes espetáculos ou com tantos concertos que fez no último ano já nem sequer é preciso?

A   maior   parte   das   canções   não   é preciso   ensaiar,   mas   as   parcerias sim. Tenho feito como sempre fiz: aproveito que o pessoal do Cineteatro de Estarreja é supersimpático e deixam-nos ir para lá fazer o ensaio geral durante dois ou três dias.

Foi na casa dos avós que despertou para a música?

Sem dúvida. O meu primeiro contacto com a música foi através dos meus tios que tinham uma banda e que costumavam ensaiar em casa da minha avó. Nos primórdios da banda, eu andava a gatinhar no meio deles. Depois a banda fez uma pausa e, mais tarde, quando retornou, já eu andava no meio deles a tentar tocar. No final dos anos 80, devia ter uns dez anos, comecei a querer tocar e formei uma banda ‘clone’ da dos meus tios com os meus primos.

O que tocava nessa banda?

Agarrei primeiro o baixo, porque era o   que   sobrava   na   tal   banda,   mas o   que   eu   queria   mesmo   era   tocar guitarra.

Era mais para o reguila ou mais para o tímido?

Era definitivamente mais para o tímido e introspetivo.

Como começou a escrita de canções?

Muito   cedo.   Mas   durante   muito tempo só escrevi na perspetiva das canções (agora mais recentemente é que comecei a escrever crónicas e outras coisas). E também não eram propriamente poemas. A poesia é uma coisa que se basta a si própria, a letra de uma canção não. Precisa da música para se revelar. Mas durante os dez primeiros anos não consegui escrever   nada   de   jeito.   Escrevia e deitava fora. Aprendi por tentativa e erro. Ficava quietinho e sozinho no meu quarto a escrever e,   embora não se aproveitasse nada, acho que fui ganhando uma certa ginástica de mão. De maneira que, quando comecei a escrever umas letras mais aceitáveis, já tinha uns dez anos de tentativas.

Estudou para outra coisa que não música?

Tirei o curso de Gestão de Empresas   na   Universidade   Católica   do Porto, mas nunca exerci, até porque os Azeitonas surgiram ainda no tempo em que estava na faculdade. Não foi uma tomada de decisão, foi uma coisa que foi acontecendo   naturalmente.   O   fim   do curso coincidiu com a altura em que a música começou a pedir mais tempo e acabei por meter um ano sabático.   Só   que,   depois   disso,   a música pediu ainda mais tempo. O ‘gap year’ dura já há 16 anos.

Por acreditar que é mais feliz assim do que a gerir uma empresa qualquer?                 

Cada pessoa tem de fazer aquilo que a vida lhe pede. A minha vida toda conduziu-me para a música e eu dediquei-me   a   ela   sem   pensar   nas consequências. Se calhar é por isso que, quando chegou a hora, a música cobrou-me a minha vida toda. Não é uma questão de bem-estar individual… é o que tem de ser feito, possivelmente porque sou mais útil nisto do que noutra coisa qualquer.

Porque saiu de Os Azeitonas? Deixou de se encaixar no todo?

A falta de tempo. Em 2015 e 2016 cobraram-me   muito,   cobraram   da minha saúde até. Chegou a um ponto em que era mais o tempo que Os Azeitonas estavam parados à minha espera do que as vezes que eu podia estar com eles. Portanto, aconteceu o que naturalmente acontece nestes casos. Eles deixaram-me seguir o meu caminho e eu também os deixei livres para seguirem o deles.

Em que zona do Porto cresceu?

Na Maia.

E   como   é   que   um   portuense   de gema vê agora este Porto tão renovado e cheio de turistas?

Acho que o facto da Ryanair ter voos para   o   Porto   foi   uma   coisa   ótima para a cidade. Começou-se a renovar a Baixa e a cidade ficou muito mais bonita. Eu hoje vou à Baixa do Porto   e   deslumbro-me   tal   e   qual como   os   turistas.   Vou   de   vez  em quando e está sempre tudo diferente desde a última vez que lá passei, para melhor. Até porque ainda me lembro do deserto que a cidade era antigamente. Claro que percebo os problemas do imobiliário e das pessoas que lá moram, mas tem, apesar disso, muitas coisas boas.

Como é que uma pessoa que anda sempre de um lado para o outro a tocar, sempre em cima de um palco, observa os problemas reais?

É isso. Observando. E alguns saltam à vista, quando viajo pelo País: por exemplo, a questão da desertificação. Somos um País pequeno e tão mal distribuído! Veja-me a infelicidade   que   é   nascer-se   num   sítio onde se tem tudo, mas onde não se pode ficar o resto da vida porque não se tem trabalho. É uma tragédia. Tenho a certeza que, se os nossos   antepassados   regressassem agora e vissem a forma como organizamos   o   nosso   território   achariam de certeza que somos muito estúpidos. Há vinho,   há fruta,   há mármore,   há   azeite   no   interior, mas depois todos têm de ir para Lisboa porque no fundo andamos todos a correr atrás dos mesmos cursos e dos mesmos empregos. Às vezes, empregos em multinacionais estrangeiras   que   não   sabemos   de quem são ou a que se dedicam verdadeiramente. E depois acaba-se a trabalhar   numa   coisa qualquer. E mediante   todas   essas   condições, será que esses empregos depois nos fazem realmente felizes? Tenho um ou dois amigos que vivem da fruta, mas é muito raro isso acontecer.

Se fosse político e chegasse ao poder, qual a primeira coisa que mudava no nosso país ?

Não tenho qualquer vocação para político, portanto também não faço a mínima ideia sobre o que faria. É como se me perguntasse o que faria se fosse toureiro... também não fazia a mínima ideia. Nunca tive qualquer vocação de liderança. Sou uma pessoa mais contemplativa e melancólica e não tenho jeito para andar a mandar em pessoas.   Para além disso, acontece ainda uma outra coisa engraçada: de todos os meus amigos que tinham imenso jeito para liderar, nenhum deles foi para a política. A razão é muito simples e reflete um pensamento que é muito comum na minha geração: a política não é uma coisa   minimamente   atrativa   para uma pessoa de bem. É o que eu penso, sem querer estar a ofender os políticos, nem ninguém que tenha aspirações políticas. Mas é a realidade. Uma   pessoa   de   bem   não   vai   fazer realmente nada para a política a não ser arranjar chatices...

Para se meter em caldeiradas, como se diz em Lisboa...

Como sou do Porto, seria mais para me meter em ‘sarrabulhos’.

O que é que o tira do sério?

Não há muita coisa que consiga tirar-me do sério, até porque eu sou muito calmo e muito zen. Todavia... há uma coisa que é realmente capaz de me deixar profundamente enraivecido e frustrado: é a minha falta de perícia para alguns daqueles afazeres domésticos mais tipicamente   masculinos,   como consertar   qualquer   coisa   que   se partiu,   mudar   uma   lâmpada   ou   a bricolage em geral. É nessas alturas que perco a calma toda e deixo de ser a tal pessoa zen. Sou capaz de ficar enraivecido por uma coisa tão simples como tentar tirar uma coisa da mala do carro e ela não estar a sair. Fico mesmo muito irritado. Pareço um animal. Depois, geralmente, é a minha mulher que me chama à razão.

E o que o faz rir?

Há muita coisa que me faz rir. Os meus amigos, porque têm aquele sentido de humor inteligente que eu adoro. Com a minha mulher também, porque ela também tem esse sentido de humor. E, claro, com os meus filhos. Gosto de me rir quando estou com os meus filhos.

Que idades têm eles?

Cinco e três anos. São dois rapazes. E daqui a um mês, precisamente, nasce uma menina.    

E já escreveu canções a pensar neles, com certeza.

Já. Neste último disco tenho uma canção que se chama ‘Acalanto’ e que foi feita a pensar neles. Logo no meu primeiro disco também tinha ‘Capitão Fantástico’. Nessa altura só tinha ainda o Joaquim, o mais velho. E não era propriamente uma canção sobre os filhos, mas antes sobre a relação que eles têm com a mãe. Não havia ainda tantos filhos como agora, mas julgo que era já a paternidade a falar - neste caso, a compor - mais alto.

Sente que a paternidade o mudou muito nos últimos anos?

Claro. Antes de ter os meus filhos não tinha qualquer preocupação na vida.   Quer   dizer,   tinha   aquelas preocupações imediatas e quotidianas, preocupava-me com os meus pais, mas não havia nenhuma coisa com que realmente valesse a pena preocupar-me. Depois deles nascerem tudo muda. Aliás, só percebi verdadeiramente   a   preocupação que   os   meus   pais   tinham   comigo depois de ser pai. Antes dos filhos, vivemos   eternamente   no   ventre materno, depois de virem os filhos é que a vida começa a doer. Agora é um estado de vigília permanente, é um sono leve. É por isso que os pais se   gastam   mais   depressa   e   ficam cheios de cabelos brancos. Em contrapartida percebi e ganhei o sentido   da   vida:   nada é   melhor   do   que viver em função deles.

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