Irmandade acompanha todos os anos os funerais de uma centena de pessoas sem família.
Octávio e Isabel não se conheceram. Seguiram o seu caminho, fizeram as suas escolhas, viveram as suas vidas e, um dia, essas vidas chegaram ao fim. Para ambos. Octávio morava em Lisboa e tinha 86 anos. Morreu a 15 de novembro último. Isabel tinha 40 anos e residia em Rio de Mouro, Sintra. Morreu a 16 de janeiro deste ano. Não se conheceram, mas cruzaram-se no dia 9 de março, no cemitério do Alto de S. João, em Lisboa. Uma urna depois da outra, uma oração depois da outra, uma cova ao lado da outra. Meia hora bastou para enterrar estes dois corpos. Sem família, sem amigos, sem lágrimas. Quase sem ninguém. Quase.
Maria Generosa Gonçalves estava lá. Tem 76 anos e é voluntária da Irmandade de S. Roque, associação de fiéis que tem como uma das suas ‘obras de Misericórdia’ precisamente enterrar os mortos. Generosa de nome, generosa nos atos. Tem dois filhos e seis netos, família que já se habituou a partilhar a atenção desta enfermeira aposentada. "É ato de voluntariado. Pobres coitados que não tiveram quem lhes fizesse o funeral." Com um raminho de flores na mão, Generosa tinha como missão naquela segunda-feira acompanhar os funerais de Octávio e de Isabel. Mas não apareceu sozinha.
Maria Trindade, de 79 anos, e Maria de Jesus Nunes, de 74 anos, vizinhas e amigas, também voluntárias, foram com ela. Cada uma com as suas flores. Estiveram na capela, ouviram a oração de encomendação das almas ora para Octávio ora para Isabel, seguiram as carrinhas funerárias, ouviram uma segunda oração por cada um dos mortos. E despediram-se quando os caixões baixaram à cova e a terra os comeu. Em nenhum destes rostos havia tristeza, simplesmente resignação e misericórdia. A nenhuma destas voluntárias interessa saber quem eram os mortos. Sabem apenas que a sua presença faz falta naquela hora.
Sozinhos na última viagem
"Lisboa tem estas características. As pessoas vêm, perdem o contacto com os seus e acabam sozinhas. Todos os anos fazemos mais de uma centena de acompanhamentos de funerais de pessoas que não têm ninguém.
Contrariamente ao que se pensa, a maioria dos que morrem sozinhos não é sem-abrigo. É alguém que se afasta da família, foi abandonado pelos filhos, isola-se em casa e acaba por perder todos os contactos e, quando chega ao momento da última viagem, não há ninguém para o acompanhar. Há histórias muito tristes."
António Balcão Reis , 81 anos, é um dos voluntários da Irmandade de S. Roque que tem essa nobre missão de estar lá para acompanhar os mortos nessa última viagem. Fez carreira na Marinha e chegou a almirante. Quando passou à reserva continuou a atividade como engenheiro naval no mundo civil. "O acompanhamento em si não é triste. Exige preparação, disponibilidade mental e psicológica para o fazer. Nunca me senti abatido pelo facto de estar a acompanhar um funeral. É um momento de alegria, em termos cristãos. Faz-se sem amargura."
António Balcão Reis explica que o enterro dos mortos faz parte da missão da Irmandade de S. Roque – são 14 as obras de misericórdia que a Irmandade pratica – de dar a todos um funeral digno do ponto de vista humano e espiritual. A maior parte dos voluntários disponíveis para este serviço são reformados. "Quem está no ativo tem dificuldade em fazer este acompanhamento. Por isso é feito, sobretudo, por reformados. Mas a profissão de reformado é cada vez mais solicitada para apoiar os filhos e os netos."
É que este reformado não está propriamente em casa a ver as horas a passarem. "Como é que mato o tempo? O tempo é que me mata a mim", brinca. António Balcão Reis é casado com Maria Alzira, a grande companhia da sua vida, também de 81 anos, tem quatro filhos e 11 netos. É o mais novo de cinco irmãos. Um já não está entre nós, mas há três irmãs, solteiras, que vivem juntas. A mais velha tem 98 anos. "Tenho de lhes dar uma assistência permanente, na doença, nas fraquezas." A sua atividade principal são os netos, mas tem outros compromissos, designadamente com o setor dos transportes da Sociedade de Geografia de Lisboa e com a Academia da Marinha, onde se desloca com frequência para conferências, ora para assistir, ora para ser orador.
Leonor Almeida, 76 anos, reformada do setor bancário, também faz parte da lista de voluntários da Irmandade de S. Roque que têm alguma disponibilidade para o acompanhamento dos funerais daqueles a quem a sorte abandonou.
"Ser voluntária é ser tudo. Basta abrir o coração e partilhar tudo o que é bom seja com quem for, com os idosos, com as crianças. Até com os mortos há relacionamento." Leonor é viúva, tem dois filhos e três netos, mas ao contrário de António, cada funeral a que assiste é uma cruz no seu coração. "Faço este serviço com a maior das dignidades e capacidades que tenho, mas o que me preocupa são as crianças sem nome. Ainda em agosto fiz o funeral de um bebé de 29 dias. Fez-me muita confusão. Disseram que ficou na maternidade Alfredo da Costa, onde tinha nascido. E mais nada. Pobrezinho." Por isso, Leonor não os deixa descerem à cova sem um ‘batismo’. "Tenho dado muitos nomes às pessoas que não têm ninguém e que nem sequer um nome têm. Chamo-lhes Pedro, João, David, sempre um nome bíblico."
Urna com crucifixo e oração
No resto do País, o funeral das pessoas cujos corpos não foram reclamados está dependente de acordos.
Geralmente, quem solicita a realização destes funerais são os hospitais ou gabinetes de Medicina Legal quando já não têm espaço nos frigoríficos e não podem manter os corpos à sua guarda. Segundo o Ministério da Justiça, o número de cadáveres por reclamar ronda os 20 por ano, em todo País. Não existe limite de tempo definido na Lei do Direito Mortuário para considerar um cadáver na situação de não reclamado. Na expectativa de que possa vir a ser reclamado, permanece na Delegação ou Gabinete de Medicina Legal, por um período superior a 30 dias. O funeral é requerido quando não há mais espaço nas câmaras frigoríficas. Regra geral, estes corpos não podem ser cremados.
Funerárias pagam
Este serviço enquadra-se no chamado funeral social que as empresas são obrigadas a disponibilizar. Está tabelado e custa 412 euros. Segundo Paulo Moniz Carreira, da Servilusa, "o funeral social é solicitado por pessoas sem recursos económicos ou entidades que têm indigentes a seu cargo ou abandonados em estabelecimentos hospitalares ou equipamentos sociais". A Servilusa faz 400 funerais destes por ano.
A requisição de funerais sociais tem maior incidência em Lisboa. "Não importa como viveram, importa é que são pessoas humanas." Fernando Sampaio, capelão do Hospital de Santa Maria, foi o sacerdote que encomendou as almas de Octávio e de Isabel e destaca "a forma humana" como a Irmandade de S. Roque se despede destas pessoas. "É muito bonito. Ao fazer o acompanhamento dos mais pobres e dos mais marginalizados, estamos a dar um significado à morte. Isto torna as coisas mais humanas. Nesta sociedade do descartável, dignificamos a nossa vida reconhecendo estes irmãos, pobres e marginalizados, como humanos na morte."
Descartável é também a palavra usada por José Carlos Garrucho, psicólogo clínico, para descrever o abandono dos idosos: "Atualmente, tudo é descartável, tudo é sem compromisso. Neste momento, a nossa sociedade subvaloriza brutalmente os idosos. Não têm uma utilidade, são um custo. As famílias têm objetivos, têm exigências e os velhos não estão incluídos. São tidos como uma tarefa e uma preocupação. Não são um recurso, são um desafio e um fator de stress. A velhice está em desvalorização. Não temos forma de valorizar os velhos porque neste contexto de mercado os velhos perderam o mercado."
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