O novo livro de John le Carré é um retrato cruel do Brexit, das manobras de Putin e Trump – e do fim do mundo.
Nat regressa a Londres vindo de um posto consular em Talin, Estónia. Antes disso percorrera lugares como Moscovo, Trieste, a Alemanha, Áustria, Checoslováquia, Hungria, a lista perde-se em nomes e geografias. Está à porta dos 50 e deixa para trás uma carreira de espionagem, disfarce, controlador de agentes duplos e de informadores, especialização em contraespionagem soviética e russa, cargos de fachada em embaixadas britânicas pelo mundo, operacional no terreno, dissimulação – em Londres, viverá uma espécie de reforma antecipada com a sua mulher, Prue, uma advogada de renome especializada em direitos civis, e Steff, a filha rebelde, tipicamente ‘millennial’, que não lhe perdoa os serviços prestados a Sua Majestade. Tudo seria perfeito (inclusive a sua paixão pelo badminton) se não fosse requisitado, pelos seus serviços, para chefiar uma operação de vigilância (coisa que faz, com a colaboração de uma jovem destemida dos serviços secretos, Florence) a um suspeitíssimo oligarca ucraniano.
Oligarcas ucranianos e russos em Londres não são uma raridade. A capital britânica está cheia deles, investindo em imobiliário, banca, tecnologia – e em tudo o que mexe. ‘Orson’, este ucraniano, é uma peça a ter em atenção: os seus investimentos incluem Miami, Zermatt, a Madeira, o Mar Negro – e o circuito habitual dos oligarcas, que vai desde férias em Sochi, na Rússia, em Lisboa, a um apartamento de luxo londrino. E, mostremos um pouco da história, à sua presença num jantar na embaixada russa de Londres para apoiantes do Brexit, durante o qual terá doado cerca de um milhão de libras para a causa.
Até que conhece Ed, um jogador de badminton atrevido e arrogante, desafiador, horrorizado com Trump e o Brexit, aparentemente solitário.
É John le Carré do melhor. Melhor do que ‘Um Legado de Espiões’, seu livro anterior, com a vantagem de revisitar os grandes momentos de tensão dos seus romances: confrontos diretos; explicações pormenorizadas sobre o mundo da contraespionagem; dissimulação ao rubro; uma viagem tensa a Karlovy Vary (a antiga Carlsbad, na República Checa) para visitar um antigo agente soviético, Arkady, que passara por Bruxelas, Berlim, Belgrado, Chicago ou Trieste; descoberta de Sergei Borisovich Kusnetsev, um agente russo ‘adormecido’ que nunca se sabe se é agente duplo ou triplo; a aparição diabólica de Anastasia ("uma mulher tão bonita que podia acreditar em Deus"), vinda do topo da hierarquia da espionagem russa; operações de vigilância e controle com alta tecnologia; referências a Vladimir Putin ("um espião de quinta categoria transformado em autocrata") – e o papel decisivo de Ed, o jogador de badminton, que é uma espécie de sismógrafo dessa Inglaterra sitiada entre o Brexit, as manobras de Donald Trump e os interesses de Putin.
Em certos momentos, John le Carré toma decisões espetaculares na sua narrativa. A principal delas é não nos deixar respirar, o que só se pode atribuir a um talento extraordinário para o equilíbrio – entre uma história imparável e os momentos de introspeção de Nat, o antigo espião que nunca deixará de sê-lo, as revelações sobre a verdadeira natureza da cumplicidade anglo-americana numa Europa em chamas, desagregada, capaz de atirar borda fora pelo menos um século de trabalho na ligação entre a Inglaterra e o resto da Europa.
É um romance de sombras e de personagens incendiárias. Sobre todas as personagens, no entanto, paira a restante obra de John le Carré: é impossível ler este livro sem pensar nos anteriores, nos cenários de grande tensão de uma obra construída para nos alertar sobre os demónios da política e do confronto, da razão e da traição.
Como se escreve a certa altura, "se espiarmos o tempo suficiente, o espetáculo volta ao princípio". É esse o segredo absolutamente maravilhoso dos seus livros: construídos como uma peça de ourivesaria, capazes de prender os leitores mais desatentos, e sem nunca perder de vista a nostalgia da velha espionagem, quando bons e maus se encontravam em algum lugar para conciliações esporádicas.
O problema é que, com Trump, o Brexit e Putin, todos os demónios andam à solta. Este livro é uma magnífica descrição desse tempo conturbado.
Pequeno dicionário para ler John le Carré
Pequeno dicionário para ler John le CarréA CASA DA RÚSSIA. Depois de ver o filme, a interpretação de Sean Connery, no papel do editor inglês Barley Blair, nunca mais sairá da retina – nem a de Michelle Pfeiffer, ou a de Lisboa, cenário inicial e final. Em tempos de perestroika, este é um livro sobre paixão, traição, idealismo russo, ‘realismo diplomático’ e o amor que sobrevive ao tempo.
CIRCUS – O MI6, enfim.
Os serviços secretos britânicos.
O nome deriva da morada em Londres, Cambridge Circus.
CONNIE SACHS – Antiga beleza do Circus, com a idade ficou marcada pela artrite e pela solidão (apenas morigerada pela companhia de um cão velho e doente – e pelo consumo de álcool): "Era uma mulher enorme, estropiada e arguta, filha de um professor catedrático, ela própria de algum modo uma académica e conhecida pelo pessoal da velha guarda como a Mãe Rússia". A maior analista de assuntos soviéticos do Circus na época
de Smiley.
GEORGE SMILEY. A primeira aparição de George Smiley, espião dos espiões, é em ‘Chamada para a Morte’ (1961, adaptado ao cinema por Sidney Lumet, com James Mason), uma investigação policial sobre o alegado suicídio de Samuel Fennan, funcionário dos serviços de informação sobre quem há de recair suspeitas de espionagem
"a favor do inimigo". A até agora derradeira é em ‘Um Legado de Espiões’, publicado em 2017: um homem quase centenário, discreto, solitário – visitado de vez em quando pela sua mulher – e frequentador de bibliotecas. É um anti-James Bond. Em tudo. Onde Bond é operacional, Smiley é conspirador e organizador, cerebral e sentimental; onde Bond é mulherengo, Smiley é inábil e traído por Ann, a sua mulher; onde Bond é ‘divertido’, Smiley é melancólico, apaixonado por poesia do barroco alemão, bibliófilo, sócio de clubes soturnos, contemplativo. A sua figura é definitivamente marcada pela genial interpretação de Alec Guinness nas séries televisivas (infelizmente, os filmes são medíocres, incluindo o que tem Gary Oldman no papel de Smiley).
‘A Toupeira’, ‘O Ilustre Colegial’ e ‘A Gente de Smiley’ são os livros decisivos, e não se pode compreender a literatura de espionagem sem os ler – e entrar neles para nunca mais sair.
GERENTE DA NOITE. Jeremy Pine é uma figura apagada e discreta, gerente do turno da noite em hotéis na Suíça ou no Cairo – mas acaba recrutado como espião para denunciar um traficante de armas perigoso e com ligações à elite política londrina. Na série de televisão, Tom Hiddleston faz um bom papel, tal como Hugh Laurie (esse mesmo, o Dr. House).
KARLA – Inimigo, adversário e alma gémea de Smiley, Karla (nome de código) é o cruel e misterioso chefe do Centro de Moscovo, o KGB. É a sua grande obsessão. Os três livros centrais de Smiley (‘A Toupeira’, ‘O Ilustre Colegial’ e ‘A Gente de Smiley’) são conhecidos como "a série Karla". É ele que recruta Haydon e, entre outras coisas, lhe ordena que seduza Ann, para perturbar e castigar George.
É o Grande Inimigo, o mandante de crimes sem fim, o cérebro implacável. Mas Smiley não o odeia; sabe que ele é o outro lado daquele espelho em que um espião recusa olhar-se.
MAGNUS PYM. Em ‘Um Espião Perfeito’, um dos seus melhores livros (há uma série de televisão
da BBC), o britânico Magnus Pym retira-se para a sua casa clandestina, numa praia holandesa, e decide abandonar a carreira. Para isso, reconstrói a sua memória, recorda os seus casos e tenta eliminar a sua passagem pelo mundo. Belíssimo.
O ALFAIATE DO PANAMÁ. Andy Osnard (Pierce Brosnan no filme de John Boorman) é um agente do MI6 que procura conspirações no Panamá, onde encontra um alfaiate (Harry Pendel, no filme Geoffrey Rush, casado com Louise, aliás Jamie Lee Curtis) que lhe vende informações falsas. O tema já tinha sido usado por Graham Greene, em ‘O Nosso Agente em Havana’, mas Le Carré empresta-lhe uma aura de atualidade pós-perestroika.
O ESPIÃO QUE SAIU DO FRIO. A história do espião Alec Leamas (no cinema, interpretado por Richard Burton) é provavelmente a mais famosa de todos os livros de John le Carré: um operacional que quer "sair do frio", ou seja, abandonar a carreira, mas tem um caso decisivo de "infiltração & extração" na antiga RDA. George Smiley paira sobre toda a história como uma penumbra distante, tal como a Guerra Fria, o Muro de Berlim e as caves onde se desenhou parte da história da Europa dos últimos cem anos.
O FIEL JARDINEIRO. Justin Quayle é uma espécie de resumo das grandes personagens de Le Carré: discreto, de segunda linha, sempre na sombra, ninguém dá nada por ele. É apenas a pessoa que é ‘permitida’. Mas, diante da morte da mulher, Tessa (que denunciava os crimes das grandes farmacêuticas em África), Justin enceta uma grande operação de vingança. O filme, de Fernando Meirelles (com Ralph Fiennes e Rachel Weisz), é bom – mas não tem a densidade dramática, sentimental e poética de um livro escrito em modo de filigrana.
PEREGRINO SECRETO. Conjunto de narrativas de médio fôlego – todas elas geniais: é uma espécie de reunião de talentos da época de George Smiley (ele próprio aparece, claro) para contar histórias de espionagem aos alunos dos serviços secretos ingleses. Algumas dessas histórias são tão perfeitas e de uma beleza tão incongruente que mereciam serem transformadas em romance.
PORTUGAL. Há sempre Portugal em grande parte dos livros de John le Carré, embora não ao nível de ‘A Casa da Rússia’. Na série televisiva ‘A Toupeira’ há inclusive uma cena lisboeta, num restaurante, com Amália Rodrigues. Tanto mafiosos russos e ucranianos, como antigos agentes do MI6 em busca de repouso e tranquilidade, vêm para Portugal (Algarve e Madeira), e John le Carré situa Portugal algures como uma referência passageira ou (o caso de ‘A Casa da Rússia’) um lugar onde se pode viver feliz. Mas é só de passagem, calma.
SINGLE & SINGLE. Um dos livros mais desvalorizados de Carré, infelizmente. É – a partir
do ambiente de um escritório de advogados londrino – um retrato impiedoso da forma como a Rússia se transformou numa república autocrática nas mãos de oligarcas criminosos e sanguinários, milionários e cruéis.
UM HOMEM MUITO PROCURADO. Smiley nunca esquece Berlim, nem Hamburgo, nem a Alemanha – onde se passa esta história, nos escombros do islamismo radical. Há um bom filme com Philip Seymour Hoffman (no papel de protagonista principal, Tommy Brue) sobre a teimosia e a desilusão dos espiões. O livro é de primeira ordem.
UM LEGADO DE ESPIÕES. Neste livro, Peter Guillam, uma criação espiritual e operacional
de George Smiley (o seu papel em ‘A Toupeira’ e ‘O Ilustre Colegial’ é decisivo), retira-se para uma reforma tranquila em França – mas os serviços secretos chamam-no a Londres para prestar contas sobre uma história passada (a de ‘O Espião que Saiu do Frio’). Os atuais incumbentes do MI6, higienizados e cruéis, querem ‘transparência’ e tentam eliminar a herança das gerações anteriores, que culpam de todos os pecados do mundo. Há uma aparição de Smiley, que vale pelo livro quase todo.
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