Ao contrário de quase todo o País, Dona Ester, minha mãe, não via vantagens no sentimentalismo dos poetas românticos. Também contra o que era hábito nas senhoras daquele tempo, que liam romances mais ou menos morais, consagrados à família, ao casamento e aos dramas da educação dos filhos, Dona Ester, minha mãe, era leitora de Cesário Verde – que ela considerava poder ter sido um antídoto para várias gerações, caso fosse estudado nas escolas – e conservava o discreto mau hábito de folhear Jane Austen (por snobismo, gostava de ‘Mansfield Park’) e preferia Charlotte (a de ‘Jane Eyre’) a Emily Brontë (a de ‘O Monde dos Vendavais’).
Visto assim, isolado, este retrato é injusto: minha mãe não era literata nem admiradora da Marquesa de Alorna. Era filha de um médico especialista em tuberculose (uma doença do romantismo e dos pobres) e conheceu o velho Doutor Homem, meu pai, num serão de ingleses do Porto. Os meus avós, paterno e materno, foram contemporâneos em lugares distintos da cidade: um no Instituto Industrial e Comercial do Porto, outro na Escola Médico-Cirúrgica. Ambos foram monárquicos e desligados do mundo: um, administrador de quintas de ingleses no Douro, era admirador (e amigo de visita em Barca d’Alva) do bucolismo de Guerra Junqueiro, que quis exterminar os monárquicos à bomba; o outro queria ter vivido antes do seu tempo para ter curado Júlio Dinis (de quem herdara o lugar na escola do Hospital de Santo António), que queria converter os miguelistas pelo choro.
Nesse serão, no final dos anos de desconcerto da República, logo a seguir à I Guerra, disse- -se mal dos alemães, provaram-se um ‘vintage’ e um ‘tawny’, apresentaram-se discretamente filhas e filhos, pendurou-se um novo retrato do rei Jorge V e ouviram-se os acordes das canções da época. Mesmo sem baile, soaram as melodias de ‘In My Merry Oldsmobile’, de Billy Murray, ou de uma modinha brasileira da época, ‘Alvorada das Rosas’.
Dona Ester, minha mãe, viu naquele então jovem e vaidoso, a promessa de que a não maçaria com sonetos; o velho Doutor Homem, meu pai, que gostava de ópera (teve de esperar até eu nascer para assistir à ‘Aida’ na inauguração do Teatro de São João), tanto como de poesia inglesa, teve a sabedoria de saber disfarçar, tanto como ela de fingir-se enganada. Herdei esse temperamento: melancólico por vício, disfarço por motivos de saúde, como os antepassados que sobreviveram à democracia.
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